Metade do Cerrado está alterada por atividades humanas, revela estudo

Foto aérea colorida de extenso platô coberto de vegetação nativa de Cerrado com uma área desmatada ao centro sendo preparada para receber agricultura. No horizonte céu azul sem nuvens

Oeste da Bahia é uma das áreas de substituição do Cerrado por monocultura | Foto: Eduardo Cunha

Um estudo recém-divulgado pelo MapBiomas Brasil, uma rede colaborativa da qual o Instituto de Pesquisa Ambiental (Ipam) faz parte, revela dados alarmantes sobre a conservação do Cerrado. Entre os anos de 1985 e 2023 foram desmatados 38 milhões de hectares, o que deixou o bioma com cerca de metade de sua cobertura original. Os índices representam uma perda de 27% na vegetação original do Cerrado, que hoje tem 48,3% alterados por atividades humanas. 

O estudo aponta, ainda, que nos últimos seis anos o Cerrado perdeu 5 milhões de hectares de vegetação nativa, dos quais 72% se deram nos estados do Matopiba. A divisa agrícola entre os  estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia abriga 47,8% da vegetação remanescente do Cerrado e tem sido o principal foco de desmatamento, onde todos os estados têm pelo menos um município com mais de 30% de perda de vegetação nativa entre 2008 e 2023. 

A pesquisa revela que os municípios com as maiores perdas no período são: Bom Lugar, MA (-70%), Praia Norte, TO (-51%), Sampaio, TO (-48%), São Domingos do Maranhão, MA (-45%) e Brejo de Areia, MA (-45%). 

De acordo com Dhemerson Conciani, pesquisador do Ipam e colaborador do estudo, a região do Matopiba, em particular, apesar de ter uma área que cobre em torno de  35% do território do Cerrado, concentra quase metade de toda a vegetação nativa que ainda está em pé.  Ao atentar para o desmatamento recente, dos últimos cinco, seis anos, observa-se que 70% do desmatamento do Cerrado ocorreu no Matopiba.

Ameaça às reservas de água

Ele alerta: “A maior parte das nascentes das principais bacias hidrográficas estão no Cerrado e, uma vez que essa vegetação nativa é suprimida, afeta no  armazenamento dessas águas, que se encontram nas nascentes e lençóis freáticos. Corremos o risco de termos um déficit de água nos outros biomas, como por exemplo a Amazônia.”

O pesquisador destaca o fato de que em termos de tamanho das áreas, as que estão sendo desmatadas atualmente no Matopiba são tão extensas quanto as observadas na Amazônia. “Em termos de velocidade, o quanto é devastado por dia e por hora, acaba sendo uma devastação mais acelerada do que a que se observa na Amazônia, e mais rápido do que se observa em outras áreas de todo o Planeta. No sudoeste asiático por exemplo, onde há muito desmatamento associado às florestas tropicais”, completa. 

Para Dhemerson Conciani, pesquisador do Ipam que colaborou com o levantamento, o Matopiba tem se consolidado como uma das maiores e mais rápidas frentes de desmatamento do Planeta: “é uma região sensível e fundamental para a segurança hídrica e climática por abrigar os maiores remanescentes contínuos de vegetação savânica e campestre do País. Parte dessa vegetação está protegida em unidades de conservação e territórios comunitários, mas a maioria se concentra em áreas privadas, tornando-a vulnerável ao desmatamento”.

Os dados revelam ainda que nos anos avaliados pelo estudo, a pastagem e a agricultura foram os usos que mais se expandiram no bioma, com aumentos de 62% e 529%, respectivamente, o que comprova que o agronegócio é o principal responsável pela devastação do bioma conhecido como o “berço das águas”. A outra metade, que ainda permanece em pé, corresponde a 101 milhões de hectares, representando 8% de toda a vegetação nativa do Brasil.

Atualmente, 26 milhões de hectares do Cerrado estão ocupados pela agricultura, dos quais 75% são destinados ao cultivo de soja. Quase metade da área cultivada com o grão no País ocorre no bioma, o que totaliza 19 milhões de hectares. 

Sobre a dinâmica de uso da terra, Bárbara Costa, analista de pesquisa do Ipam, explica que “o desmatamento, impulsionado principalmente pela expansão da pastagem e da agricultura, continua sendo a maior ameaça ao segundo maior bioma do País” e que apesar de observada uma tendência recente de diminuição das áreas de pastagem, de 2014 a 2023, “o avanço da agricultura foi significativo, não apenas pela intensificação das atividades agrícolas em áreas já convertidas, mas também pela abertura de novas áreas, especialmente para o cultivo de soja”. Essas transformações, segundo ela, se concentram principalmente em terrenos planos e elevados, como os planaltos e chapadas.

Alerta para improdutividade

A situação no Cerrado pode piorar ainda mais caso a tendência atual de supressão dos remanescentes de vegetação nativa em áreas privadas persista. “O agravamento pode também afetar o setor agropecuário, já que o desmatamento pode contribuir para um clima mais quente e seco no bioma”, alertou Julia Shimbo, pesquisadora do Ipam e coordenadora científica do MapBiomas.

Biomas protegidos pela legislação

As áreas privadas desempenham um papel fundamental na preservação do bioma, já que essas propriedades ocupam grande parte do Cerrado. A Lei de Proteção da Vegetação Nativa (Lei Nº 12.561/2012) prevê que propriedades rurais no Cerrado mantenham ao menos 20% de sua área como vegetação nativa (são 35% na Amazônia Legal), a chamada Reserva Legal. Os dados mostram que o desmatamento se concentra nessas áreas, onde 81% (86,9 milhões de hectares) da perda de vegetação nativa do Brasil foi em áreas privadas ou áreas com CAR (Cadastro Ambiental Rural) sem registro fundiário georreferenciado, enquanto 41% da vegetação nativa no Brasil está em áreas protegidas e comunitárias. 

A preocupação também se estende à Amazônia, já que uso insustentável de terras no Matopipa, é considerada uma porteira aberta para o bioma amazônico.  Todos os municípios na fronteira Amacro (Acre, Amazonas e Rondônia) registraram perda recente de vegetação nativa, considerando o período de 2008 a 2023. Em 16 dos 32 municípios analisados, a perda ultrapassou 15%, e em seis, superou 30%. Ao contrário do Cerrado, onde apenas 18 milhões de hectares estão protegidos em Unidades de Conservação (UC), a Amazônia abriga 122 milhões de hectares em UC, além das terras indígenas e florestas públicas. Proteção em terras indígenas e florestas públicas 

Terras Indígenas

A pesquisa revela que nas Terras Indígenas (TI), menos de 1% da vegetação nativa foi perdida de 1985 a 2023. Esses territórios, que ocupam 13% do País, protegem 112 milhões de hectares de floresta. De forma semelhante, as Florestas Públicas Não Destinadas (FPND) mantiveram 92% de sua vegetação nativa no período, apesar das constantes ameaças. 

Essas florestas sob domínio público não possuem um uso específico definido e aguardam uma destinação formal pelo poder público. “O governo precisa destinar essas áreas como medida para baixar rapidamente as taxas de desmatamento na região”, destacou Paulo Moutinho, pesquisador sênior do Ipam. Apenas na Amazônia, quase 30% do desmatamento anual ocorre em áreas de FPND, de acordo com pesquisa liderada por Moutinho. “É urgente que essas terras sejam entregues nas mãos de povos e comunidades tradicionais, pois eles mantêm a floresta em pé”, reforça. 

MapBiomas

A Iniciativa multi-institucional que processa imagens de satélites com inteligência artificial e tecnologia de alta resolução em uma rede colaborativa de especialistas, universidades, ONGs, instituições e empresas de tecnologia para a criação de séries históricas e mapeamento de uso e cobertura da terra no Brasil. O Ipam é a instituição responsável pelo mapeamento da vegetação nativa no bioma Cerrado dentro da rede.

Os dados expostos nesta matéria foram divulgados nesta quarta-feira (21), durante a cerimônia de lançamento da 9ª coleção de mapas de cobertura e uso da terra no Brasil, desde 1985 a 2023 do MapBiomas. Utilizando imagens de satélite e técnicas avançadas de aprendizado de máquina, os pesquisadores mapearam todo o território brasileiro em 29 classes de uso e cobertura da terra. Neste ano, a iniciativa incluiu uma nova classe no mapeamento: os recifes de coral. 

Projeto ma.to.pi.ba.

Denominado com as sílabas iniciais dos quatro estados que abrange – Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia –, o Matopiba inclui 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais desses três Estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho e algodão.

O Matopiba tem 73 milhões de hectares em três biomas: Cerrado ( 66,5 milhões de hectares, o equivalente a 91% da área), Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a 7,3%) e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.

Este conteúdo faz parte do Projeto ma.to.pi.ba., uma ação multimídia da Eco Nordeste, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Com início em janeiro de 2024, traz matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo em que aborda os problemas socioambientais, a iniciativa multimídia aponta experiências que têm dado certo na região, seguindo a linha editorial de jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.

O projeto é executado por uma equipe premiada composta pelas repórteres Alice Sales e Camila Aguiar, com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação geral da jornalista Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação, Flávia P. Gurgel é responsável pelo design; Isabelli Fernandes, edição de podcasts; Adriana Pimentel a edição das newsletters; e Andréia Vitório faz o gerenciamento das redes sociais.

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