Foto aérea colorida de extensa área plantada com monocultura de soja tendo ao fundo vegetação nativa de cerrado composta por palmeiras e árvores esparsas sob um céu azul coberto de nuvens cinzas
Imagem aérea do Parque Estadual do Mirador, no Maranhão, unidade de conservação desmatada | Foto: Camila de Almeida

Entre janeiro de 2023 e fevereiro de 2024, mais de 34 mil hectares de vegetação nativa dentro de Unidades de Conservação do bioma Cerrado foram perdidos. Dados da plataforma Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) Cerrado, levantados pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), revelam que 30.831 hectares (cerca de 88%) desse desmatamento aconteceu no Matopiba, região de expansão da fronteira agrícola brasileira entre os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. 

Em áreas que deveriam estar protegidas pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Snuc), fauna, flora, bacias hidrográficas e o equilíbrio de ecossistemas estão sob risco com a proximidade de áreas de monocultura e pecuária. Criação de planos de manejo, ações de restauração ecológica, regularização fundiária de territórios tradicionais e incentivos à iniciativa privada para a conservação são apontados por pesquisadores e organizações da sociedade civil como caminhos para conter as ameaças ao bioma considerado “berço das águas” do País.

As Unidades de Conservação, principalmente de proteção integral, têm sido uma grande resistência na fronteira do Matopiba, porque o desmatamento está muito acelerado ao redor delas e isso acaba respingando para dentro

Ane Alencar
Diretora de Ciência do Ipam

A Diretora de Ciência do Ipam, Ane Alencar, explica que “as Unidades de Conservação, principalmente de proteção integral, têm sido uma grande resistência na fronteira do Matopiba, porque o desmatamento está muito acelerado ao redor delas e isso acaba respingando para dentro”. Desse modo, ela afirma que seria importante haver uma governança muito clara e bem estabelecida para conseguir conter as práticas ilegais, com a implantação dos planos de manejo e a efetividade na fiscalização.

Por outro lado, também defende que é necessário criar mais incentivos à iniciativa privada para a conservação, já que o Cerrado é um bioma dominado por imóveis rurais, ou seja, propriedades privadas. É o caso, por exemplo, do projeto CONSERV, programa que remunera financeiramente produtores rurais da Amazônia Legal por manterem áreas de vegetação nativa para além da reserva obrigatória determinada pelo Código Florestal.

O levantamento mostra que as Unidades de Conservação mais afetadas pelo desmatamento foram o Parque Nacional (Parna) das Nascentes do Rio Parnaíba e a Estação Ecológica Serra Geral do Tocantins. Ambas ficam localizadas bem na região de fronteira entre os quatro estados do Matopiba e têm como vizinho o Parque Estadual do Jalapão, importante destino turístico com exuberantes belezas naturais.

Foto colorida com céu azul e nuvens brancas sobre uma queda d'água que forma correnteza em um rio margeado por vegetação de cor verde
Parque Nacional Nascentes do Rio Parnaíba, no Piauí, uma das áreas do Matopiba desmatadas | Foto: ICMBio

No último ano, o Parque Nacional das Nascentes do Rio Parnaíba perdeu 7.908,7 hectares de vegetação. Pode parecer pouco diante da sua área total que, segundo o plano de manejo, possui 749.774,18 hectares. No entanto, 30% (2.627,9 hectares) desse desmatamento aconteceu somente no mês de janeiro de 2024, o que acende um alerta sobre o contexto local mais recente.

O analista ambiental e gestor do Parque Nacional das Nascentes do Rio Parnaíba, Janeil Oliveira, afirma desconhecer o desmatamento apontado pelos dados do Ipam. “Não vimos esse desmatamento no Parque em janeiro deste ano. Acho que esses dados não estão de acordo com a realidade porque o limite da unidade sofreu alteração em 2015, talvez estejam usando bases de dados anteriores, ainda”, argumenta.

Segundo Oliveira, essa alteração aconteceu numa área onde realmente houve o avanço da pressão do agronegócio, que foi subtraída dos limites do Parque.  Por outro lado, a delimitação da unidade de conservação cresceu na porção oeste, o que resultou num saldo positivo de aumento de 20 mil hectares na superfície total. Com uma “história complexa”, o Parque teria sido criado no mesmo período de expansão das monoculturas na região, no início dos anos 2000, e dentro da área já haviam vários imóveis rurais.

O Ipam explica que, sim, utiliza em seu levantamento o limite atual do Parque e que é possível haver alguma margem de incerteza na interpretação das imagens de satélite para identificar o que são de fato áreas desmatadas ou apenas reflexos da sazonalidade da vegetação.

Área afetada apresenta conflitos

Paulo Rogério Gonçalves, da Associação Alternativas para a Pequena Agricultura do Tocantins (Apato), conta que há um conflito com relação à regularização das terras ocupadas dentro do Parque. “A gente acompanhou esse processo de desmatamento. O que acontece ali é que foi criada essa Unidade de Conservação mas nunca foi regularizada a questão das terras. Existe um monte de pessoas que se dizem proprietários e nunca foram indenizados pelo Estado”, afirma. 

Junto ao Parque Nacional das Nascentes do Rio Parnaíba, está a Área de Proteção Ambiental da Serra da Tabatinga. Segundo Paulo, “o agronegócio invadiu toda a área e ela está totalmente destruída pela monocultura de soja”. Ele também cita a existência, naquelas proximidades, de comunidades quilombolas como a do Povoado do Prata, que reivindica a demarcação de seu território. A Associação chegou a denunciar um desmatamento que afetou a comunidade e “a informação que chegou é de que tinha parado. Não temos certeza se havia algum tipo de licença ou não do Estado para o desmatamento, mas parou”, complementa.

Desde 1992, a Apato realiza o trabalho de Assessoria Técnica e Extensão Rural (Ater) com comunidades rurais do Tocantins e tem uma posição clara sobre o assunto: “Os verdadeiros donos das terras são as comunidades quilombolas, que têm esse direito constitucional e o Estado precisa regularizar seus territórios. Entendemos que as Unidades de Conservação vão ter que adequar os seus limites com base nisso”. Naquela região, existem outras dez comunidades quilombolas que também têm Unidades de Conservação sobrepostas aos limites de seus territórios tradicionais.  

O gestor do Parque também cita as comunidades de Taboca, Brejinhos e Macaco, no município de Alto Parnaíba (MA), que já existiam antes da criação da Unidade de Conservação. As duas últimas se autodeclaram quilombolas e têm seu território sobreposto ao Parque. Oliveira explica que: “Até um tempo atrás, o entendimento de grande parte do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) era de que as áreas que estão dentro das unidades de proteção integral deveriam ser desocupadas. Hoje estamos caminhando para outro entendimento, em que há compatibilização. Áreas quilombolas e indígenas podem ser consideradas áreas protegidas e no futuro os territórios poderiam ter uma gestão compartilhada com o ICMBio”.

A mesma situação acontece no Maranhão, onde o desmatamento ligado ao agronegócio avançou nas bordas do Parque Estadual do Mirador. A professora Roberta Lima, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Questões Agrárias (Nera) da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), acompanha a região desde 2015 e afirma que a pressão exercida pelo cultivo de cana-de-açúcar e soja também traz problemas de assoreamento e contaminação por agrotóxicos nos dois rios que emolduram o parque – Itapecuru e Alpercatas.

O conflito com comunidades tradicionais também está presente. Existem cerca de 70 pequenos povoados familiares, autodenominados “Tapicuruzeiros”, que já viviam na área quando o Parque foi criado. “Quando a gente fala em desmatamento dentro do Parque, normalmente eles é que levam a culpa. A Secretaria vai pra cima dos pequenos produtores, embargam roças familiares, aplicam multas. O Estado os trata como invasores, com repressão policial”, conta Roberta. São aproximadamente 300 famílias que vivem ali sem estradas, energia elétrica, escolas ou qualquer outro tipo de serviço público.

Áreas em processo de degradação

Segundo Alexandre Bonesso Sampaio, pesquisador da Rede Biota Cerrado e do ICMBio, mais de 25 mil hectares nas UCs federais do Matopiba precisam ser restaurados e ainda existe pouco investimento para isso na região. No bioma Cerrado, o maior desafio é controlar as espécies de gramíneas plantadas para pastagem na pecuária.

Denominado com as sílabas iniciais dos quatro estados que abrange, Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, o Matopiba inclui 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais desses três Estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho e algodão.

O Matopiba tem 73 milhões de hectares em 3 biomas: Cerrado ( 66,5 milhões de hectares, o equivalente a 91% da área), Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a 7,3%) e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.  

Este conteúdo faz parte do Projeto Ma.to.pi.ba., uma ação multimídia da Eco Nordeste, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Com início em janeiro de 2024, traz matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo que aborda os problemas socioambientais, a iniciativa multimídia aponta experiências que têm dado certo na região, seguindo a linha editorial de jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.  

O projeto é executado por uma equipe premiada composta pelos repórteres Alice Sales e  Camila Aguiar, a fotógrafa Camila de Almeida, com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação geral da jornalista Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação, Flávia P. Gurgel é responsável pelo design; Isabelli Fernandes, edição de podcasts, e Andréia Vitório faz o gerenciamento das redes sociais.

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