Esta matéria da Eco Nordeste, que começa com um corajoso relato da própria jornalista, faz parte do Projeto ‘Um vírus e duas guerras’ – parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia Real, AzMina, #Colabora, Eco Nordeste, Marco Zero Conteúdo, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo.

Líliam Cunha: “A violência psicológica é invisível aos olhos dos outros, mas, para a vítima, é tão letal quanto um tiro de arma de fogo” | Foto: Adriana Pimentel

Por Líliam Cunha
Colaboradora

“Ex-namorado”. Era 19 de junho de 2017, eu estava voltando do coma quando, pela primeira vez em três anos, ouvi o homem com quem eu tinha uma relação há três anos dizer que eu era sua namorada, ou melhor, ex. Ele era o meu algoz. Mas, no auge da depressão profunda na qual ele me jogou, eu acreditava ser o meu protetor. Naquele dia em que ele, sempre ele, salvou a minha vida após quase ter me matado, mesmo sem ter encostado um dedo em mim, nós tínhamos terminado mais uma vez e, dessa vez, dizia ele, para sempre. Eu estava doente, muito doente. A depressão que me acompanhava há mais de uma década, mas que eu sempre controlei, agora me controlava.

Passava os meus dias presa na cama. Tudo me cansava. Me sentia sozinha e achava que o único lugar onde eu estava protegida era no abraço daquele homem que mentiu para mim, me enfraqueceu psicologicamente e, quando viu que eu estava no fundo do poço, puxou a corda e foi embora. É difícil explicar a dor da depressão para quem nunca a sentiu, mas ela é tão intensa que a morte era o único caminho que eu enxergava para me livrar dela. Logo eu, que sempre disse que, se me encontrassem morta, procurassem o culpado, pois eu jamais me mataria. Sim, eu tentei me matar. Duas vezes em 15 dias, não por um homem, como ouvi de algumas poucas pessoas que sabiam de verdade o que eu estava passando, mas, pelo que essa pessoa fez comigo. A violência psicológica é invisível aos olhos dos outros, mas, para a vítima, é tão letal quanto um tiro de arma de fogo.

O relato acima, em primeira pessoa, é da repórter que vos escreve e faz parte de um processo de cura, de botar para fora aquilo que machuca e, desta forma, ajudar outras mulheres a também enxergar que o medo de ser julgada pela sociedade não deve ser maior do que a vontade de viver. Nós não somos culpadas. Somos vítimas. Entender isso é muito importante para que possamos buscar ajuda.

‘Caiu do quinto andar’

Resolvi me expor após assistir pela TV o caso da médica Sáttia Lorena Patrocínio Aleixo, que caiu do quinto andar do prédio em que morava com o namorado, no bairro do Jardim Armação, em Salvador (Bahia). No dia 3 de setembro, o também médico, Rodolfo Cordeiro Lucas, namorado de Sáttia, foi indiciado por tentativa de feminicídio pela delegada Bianca Andrade, da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher (Deam), que investiga o caso e aguarda julgamento em liberdade. Testemunhos de familiares e vizinhos do casal, bem como anotações de desabafos que teriam sido escritas por Sáttia, encontradas pela Polícia no apartamento em que eles moravam, e que foram juntadas como provas, sugerem uma relação abusiva.

“Uma relação abusiva pode deixar marcas duradouras. Dentre elas destacam-se o sentimento de inferioridade e incapacidade, uma visão distorcida sobre o que é o amor, a sensação de que não merece ser amada ou até mesmo de que merece ser tratada daquela forma. Além disso, é muito comum que uma mulher que passe por uma relação abusiva e consiga dar um fim a ela não se sinta à vontade para iniciar uma nova relação amorosa, se fechando completamente para essa possibilidade por medo de viver novamente aquele pesadelo”, explica a psicóloga e psicanalista Camila Rebouças.

Risco ampliado

Além das questões de ordem psicológica, mulheres vítimas de violência têm ampliado os riscos de autolesão e suicídio. Um estudo realizado pelo Ministério da Saúde, publicado em março de 2019, no livro Saúde Brasil 2018, revelou que a lesão autoprovocada representou 40,4% do total de notificações de violência contra mulheres, sendo mais elevada entre mulheres idosas (49,9%) e adultas (47,9%).

Esse mesmo estudo apontou que o segundo tipo de agressão mais frequente entre mulheres adolescentes, jovens e adultas foi a violência psicológica. As principais vítimas deste tipo de violência, de acordo com a pesquisa do MS, são as mulheres em idade jovem (20 a 29 anos), em que o índice foi de 67,8%. Em seguida vieram as mulheres adultas (30 a 59 anos), com 65,1%, adolescentes (10 a 19 anos) com 61,7% e as idosas (+ de 60 anos), com 52,1%.

O estudo evidencia a lesão autoprovocada como um importante tipo de violência encontrado, especialmente entre as mulheres adultas e idosas. Isso porque, considerando-se as mulheres adultas com notificação de violência o risco de óbito por violências autoprovocadas e interpessoais é de 151,1 vezes maior se comparadas com mulheres adultas sem notificação. Já entre as idosas esse número é ainda mais alarmante, sendo 311,4 vezes maior em comparação com mulheres adultas sem notificação.

A pesquisa destaca, ainda, que a violência crônica tem sido considerada um fator de risco para lesão autoprovocada, que por sua vez é considerada fator de risco para suicídio. A publicação ressalta, também, que pesquisas realizadas na América Latina e Caribe demonstraram que um grande percentual de mulheres vítimas da violência praticada pelo parceiro íntimo informou sofrer de ansiedade ou depressão muito intensas, e teve maior probabilidade de cogitar ou tentar suicídio.

Reconheça os sinais da vítima

Além das questões de ordem psicológica, mulheres vítimas de violência têm ampliado os riscos de autolesão e suicídio | Foto: Adriana Pimentel

Segundo Camila Rebouças, é possível reconhecer os sinais de que uma mulher está sofrendo abuso psicológico: “O comportamento dela pode nos dar alguns sinais, como por exemplo, recusas a convites para sair sob a justificativa de que o parceiro não poderá ir e que, portanto, ela também não, porque ele não vai gostar ou algo desse tipo; mudanças no “humor” (uma mulher que era mais extrovertida de repente passa a ficar mais contida nos encontros sociais); distanciamento em relação à família e amigos; mudança no estilo de roupa que costumava vestir; mudanças nas redes sociais (algumas mulheres deixam de ter o seu próprio perfil para ter um perfil conjunto com o parceiro).

Além disso, Camila ressalta que é interessante observar também como essa mulher se comporta na presença do seu companheiro, ou seja, observar a interação do casal. “Ele sempre corta a fala dela? Ele a desqualifica na frente de outras pessoas? Ele censura a forma de ela falar, se comportar, se sentar, se vestir e/ou interagir? Ela pede autorização a ele para fazer determinadas coisas, como ir ao banheiro num barzinho? Lembrando que, diante de outras pessoas, o abusador tende a controlar mais os seus comportamentos por isso, os sinais podem ser mais discretos, mas perceptíveis diante de uma boa observação”, explica.

Ofereça ajuda

Acreditar que a mulher não é culpada pela violência é o primeiro passo para oferecer ajuda a uma mulher que está numa relação abusiva, diz a especialista. “Digo isso porque, infelizmente, diante da cultura machista que vivemos, muitas pessoas ainda acreditam que, de alguma forma, a mulher tem culpa, gosta e/ou merece estar naquela situação. Dito isso, uma oferta de ajuda interessante é sinalizar para esta mulher as mudanças de comportamento que você percebeu nela, assim ela saberá que alguém está acompanhando o que está acontecendo e preocupado com isso; perguntar se está acontecendo algo e de que maneira você pode ajudá-la”, orienta.

Segundo a psicóloga e psicanalista, neste momento, é de extrema importância uma escuta ativa e empática. O que significa isso? “Dar o protagonismo da fala para esta mulher e não já querer contestar, completar ou contra argumentar qualquer coisa que ela te diga. Deixe o espaço aberto para que ela fale sobre o que está vivendo. Isso ajudará a criar uma conexão e confiança. Busque entender de que maneira ela acha que você pode ajudá-la e coloque-se à disposição para, por exemplo, buscar junto com ela a ajuda de um profissional de Psicologia, se for o caso”, diz.

O perfil do abusador

Questionada se é possível reconhecer o comportamento abusivo do homem antes de se tornar mais uma vítima, a psicanalista afirma que sim. Segundo ela, na maioria das vezes, o abusador vai dando alguns sinais. Entre os exemplos, ela cita: “Um dia ele pede para você não sair com as suas amigas por qualquer que seja o motivo. Na primeira vez você cede, na segunda, na terceira, quando percebe já não faz mais programas sem a presença dele. Nas discussões, ele sempre dá um jeito de dizer que você estava errada, nunca se mostra aberto a avaliar onde está o erro dele e buscar repará-lo. É nas discussões, também, que ele tende a colocar as ‘asinhas de fora’ e os primeiros xingamentos começam a aparecer”, destaca Camila.

Ela lembra que, como muitas dessas atitudes do abusador vêm, sob a desculpa de que é por amor, pode se tornar um pouco mais difícil para a vítima perceber. “No entanto, não é incomum que amigos e/ou familiares notem alguma coisa e sinalizem à mulher. Portanto, um outro indício de que você pode estar entrando num relacionamento abusivo é se pessoas próximas a você, que se importam contigo e que te amam, te alertam sobre qualquer coisa neste sentido. Vale à pena ficar atenta a esses feedbacks”, orienta.

Sinais de alerta

  • Justifica sua perda de controle com base no amor, dizendo que perdeu a cabeça por conta de ciúmes ao algo assim
  • Alega sentir ciúmes das suas amizades, especialmente se for com outro homem. Pede para você não andar/sair mais com fulano ou beltrano
  • Critica as suas roupas mais curtas e/ou sensuais e vai com jeitinho pedindo para você trocar

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