Sobre os eolianitos, dunas cimentadas ou cascudos do Nordeste do Brasil

As dunas cimentada são nomeadas cientificamente como eolianitos, que descreve todas as areias acumuladas pelo vento que foram solidificadas e apresentam feições rochosas | Foto: Alexandre Medeiros Carvalho

Por Vanda Claudino-Sales
Geógrafa
Professora associada aposentada da Universidade Federal do Ceará (UFC)
Professora visitante da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA)
vcs@ufc.br

No segmento litorâneo oeste do Nordeste do Brasil, ocorrem dunas cimentadas, conhecidas cientificamente pelo termo eolianito, o qual descreve todas as areias acumuladas pelo vento que foram solidificadas e apresentam feições rochosas. Formam-se em geral desde regiões equatorianas até os 40º de latitude, em zonas áridas e semiáridas dessas regiões, particularmente em zonas costeiras com grandes acumulações de areias biogênicas (isto é, areias de origem biológica, oriundas por exemplo de recifes de coral), sendo importantes elementos na conservação das linhas de costa (PYE, 1983).

A zona costeira do Nordeste brasileiro é rica em eolianitos. A plataforma continental interna adjacente à costa entre o Maranhão e Paracuru (Ceará) é uma das mais ricas do Nordeste brasileiro em areias bioclásticas, sobretudo oriundas de algas vermelhas coralíneas (KOWSMANN et al., 1979), o que ajuda a explicar a concentração de eolianitos nesta área.

O caráter litificado dos materiais dos eolianitos propiciou sua preservação ao longo do tempo, desde a sua formação. Os níveis mais resistentes ou friáveis da rocha, no entanto, facilitaram a ação erosiva do vento e da chuva, contribuindo para o aspecto descontínuo de distribuição que eles apresentam. As estruturas sedimentares nos depósitos litificados exibem formas de relevo ruiniforme (semelhantes à ruínas), essencialmente produzidas por abrasão eólica (erosão gerada pelo vento), caracterizados pela presença de sulcos orientados na direção do vento principal, com segmentos de vertentes íngremes e cristas bastante irregulares, como observadas por Carvalho et al. (2008) e Claudino-Sales (2002) (Figuras 1 e 2).

Os eolianitos no litoral do Ceará são conhecidas pelos nativos sob a denominação de “cascudos”, em razão da rigidez que apresentam comparativamente aos demais depósitos eólicos. Estão distribuídos em faixas oblíquas ao longo da costa, numa distância que varia de 3 a 6 km da linha de costa. Eventualmente o limite externo desses depósitos situa-se a uma distância de não mais que algumas dezenas de metros do oceano, muitas vezes ocorrendo na faixa de praia, quando se apresentam à disposição do ataque das ondas (Figura 3).

Figura 1. Eolianito no litoral de Amontada, Estado do Ceará. Verificar a existência de feição descontínua no topo da geoforma | Foto: Foto: Movimento Salve o Cascudo

Nas dunas cimentadas comumente estão presentes raízes litificadas, como resultado de um processo de substituição parcial da matéria orgânica por carbonato de cálcio, indicando terem sido as dunas fixadas por vegetação costeira antes de sofrerem o processo de cimentação (CARVALHO et al., 2008).

Figura 2. Relevo semelhante à ruínas (ruiniforme) emoldurando eolianitos em Amontada | Foto: José Stênio Burgos

Figura 3. Dunas cimentadas no contato direto com as ondas do mar, em Amontada | Foto: José Stênio Burgos

Os eolianitos constituem um tipo distinto de paleodunas (CLAUDINO-SALES e PEULVAST, 2002), os quais apresentam características bastante peculiares, como a preservação de estruturas sedimentares e a ausência de vegetação contemporânea. Constituem uma unidade geológica recente, holocênica, com estruturas e composição de características especiais que fornecem importantes informações sobre a história climática e sedimentar das áreas nas quais ocorrem (CARVALHO et al., 2008).

Os eolianitos são uma unidade geológica rara no Brasil, ocorrendo apenas no Nordeste do País. Uma característica marcante dos eolianitos é o excelente estado de conservação de suas estruturas deposicionais internas, o que é de grande auxílio para interpretações morfodinâmicas remetentes à época de sua gênese.

Origem dos eolianitos do Nordeste Brasileiro

Os fatores de formação dos eolianitos são em tese os mesmos de dunas costeiras em geral, porém com uma particularidade fundamental, que é a dependência de aporte biogênico carbonático. Este aporte propicia-se pela presença prévia ou contemporânea de plataformas com baixo suprimento de sedimentos terrígenos, favorecida sob clima quente e relativamente seco (MCKEE e WARD, 1983), como é o caso das condições que caracterizam o litoral do Nordeste do Brasil, mormente no seu segmento oeste. Cerca de 80% das datações de eolianitos indicam que eles foram formados particularmente no intervalo de tempo situado entre 8.000 e 3.200 anos atrás, sendo os mais próximos à linha de costa mais antigos que os mais distantes (ARIAS, 2016; ARIAS et al., 2015; CASTRO e RAMOS, 2006).

Dentro de um ciclo evolutivo quaternário, Carvalho et al. (2008) sintetizam da seguinte foram as etapas necessárias à acumulação e cimentação do material:

  1. Acumulação de carbonato biogênico (fragmentos de conchas, carapaças de organismos) em ambiente marinho raso e litorâneo.
  2. Rebaixamento relativo do nível marinho, resultando em recuo do mar. Dessa forma, os sedimentos da plataforma continental, rica em carbonatos biogênicos, ficaram expostos à ação do vento.
  3. Os ventos removeram os sedimentos com grande conteúdo de carbonatos biogênicos da plataforma continental descoberta e os transportaram para a zona costeira, onde eles, misturados com outros sedimentos, formaram dunas.
  4. Com a descontinuidade da regressão marinha, as dunas cessaram a migração, e foram estabilizadas, ficando sujeitas à ação das chuvas: as águas pluviais dissolveram os fragmentos de conchas e carapaças biogênicas existentes no depósito. Dessa forma, infiltrou na duna água rica em carbonato de cálcio dissolvido
  5. Próximo da superfície, a temperatura mais elevada do ar promoveu evaporação da água, que ascendeu por capilaridade: os carbonatos dissolvidos na água, que não são voláteis, cristalizaram-se nos poros das areias, endurecendo os materiais. Nesse processo, eles acabaram atuando como um cimento, que solidificou os sedimentos das dunas

Uma vez cimentados os pacotes eólicos, o vento, agente natural incansável, começou a erodi-los, fato que se processa até hoje. Nesse contínuo desgaste provocado pelo vento – ao qual as dunas cimentadas impuseram certa resistência – surgiram formas curiosas, que lembram ruínas de construções antigas, caracterizando assim o relevo ruiniforme exibido pelos eolianitos. Os eolianitos são, assim, recentes, se colocarmos em análise a longa história evolutiva da Terra, de cerca de 4,6 bilhões de anos. Mas eles são, por outro lado, antigos quando comparados às brancas dunas móveis atuais que os circundam e que caracterizam o litoral do Nordeste brasileiro.

Dessa forma, os eolianitos são testemunhos de condições eustáticas e climáticas completamente diferentes da atual, representando elementos que recontam essa história natural de forma extremamente rica, e deveria ser preservado como elemento geológico/geomorfológico fundamental da zona costeira cearense. Por essa razão, o Serviço Geológico do Brasil (CPRM), por meio da Comissão Nacional de Sítios Geológicos e Paleontológicos (Sigep), definiu os eolianitos do Ceará (CARVALHO et al., 2008) como um geossítio, ou seja, um sítio do patrimônio geológico nacional, que deveria passar por preservação obrigatória.

Os eolianitos, uso e ocupação do solo

Os eolianitos se sobressaiam entre as dunas móveis que os cercam. Essa condição de material endurecido parece ter funcionado como área de apoio importante para os grupos de índios nômades que se deslocavam pelo litoral cearense antes do período de colonização portuguesa.

Com efeito, há evidências de formação de fogueiras antigas sobre o material litificado, havendo, no entorno das fogueiras, antigos artefatos humanos, demonstrando que a área era alvo de utilização por parte dessa população, provavelmente para refeições durante paradas, pois deveriam servir de abrigo para proteção contra os fortes ventos, entre translados na zona costeira (CARVALHO et al., 2008) (Figura 4). Na atualidade, a população de praianos considera essas feições como partes integrantes do dia-a-dia litorâneo, e continuam usando-as como elemento de contemplação, contato com natureza e identidade cultural.

Figura 4. a) Registro de fogueiras e b) fragmentos líticos compondo sítios arqueológicos eólicos com ocorrências de cerâmicas na região costeira de Itapipoca, Ceará | Fonte: Carvalho et al., 2008

A crescente ocupação e urbanização do litoral do Nordeste, que vem se dando de forma extremamente danosa ao meio ambiente, em função inclusive da recente flexibilização da legislação ambiental decretada pelo Governo do Estado do Ceará em particular, vem colocando em risco a continuidade da existência das dunas de forma geral e de eolianitos de forma particular (Figuras 5 e 6).

Mas, a se considerar o Plano de Gestão Costeira do Estado do Ceará, que determina que essas feições devem ser preservadas, nenhuma atividade destrutiva deveria ser instrumentalizada nos campos de eolianitos. Dessa forma, é urgente que as autoridades tomem medidas no sentido de coibir a atividade como forma de impedir não apenas a destruição desse duna cimentada em particular, mas também como forma de explicitar e exemplificar a intervenção legal no sentido de garantir a preservação e integridade dessas feições ao longo de toda a área em que ocorrem.

Figura 5. Trator destruindo dunas móveis e sobretudo eolianitos no litoral de Icaraí de Amontada, Ceará, em 23 de abril de 2020 | Fotos: Movimento Salve o Cascudo

Figura 6. Destruição parcial do “Cascudo de Fogo” (eolianito, duna cimentada) em Icaraí de Amontada, Ceará, em 23 de abril de 2020 | Foto: Movimento Salve o Cascudo

O caráter frágil dos eolianitos é demonstrado pela suscetibilidade à erosão eólica e à ação antropogênica que eles apresentam. É necessário implantar medidas concretas para sua preservação, dependentes de estudos específicos que possam definir métodos de proteção contra a erosão e, especialmente, contra o avanço da urbanização, da ocupação ilegal e da construção destrutiva, assim como medidas que envolvam o interesse das comunidades situadas no entorno dessas geoformas.

Referências Bibliográficas

ARIAS, V.E. 2016. Fatores controladores de sistemas eólicos costeiros carbonáticos: os eolianitos quaternários do Piauí e oeste do Ceará. Dissertação de Mestrado, Instituto de Geologia, Universidade de São Paulo.

ARIAS, V.E.; GIANNINI, P.C.F; CAGLIARANI, R.; MENDES, V.R. 2015. Morfologia, fácies deposicionais e cronologia dos eolianitos quaternários do litoral do Piauí e oeste do Ceará. Anais do XV Congresso da Associação Brasileira do Quaternário, Porto Alegre, p. 438-440.

BROOKE, B. 2001. The distribution of carbonate eolianite. Earth-Science, vol.55, p. 135-164.
CARVALHO, A.M.; CLAUDINO-SALES, V; L.P, CASTRO, J.W.A 2008. Eolianitos de Flecheiras-Mundaú, Costa Noroeste do Estado do Ceará; Brasil. IN: CPRM. Sítios Geológicos e paleontológicos do Brasil, n. 118.

CASTRO, J.W, RAMOS, RRC. 2006. Idade das dunas móveis transversais no segmento entre Macau e Jericoacoara – litoral setentrional do Nordeste brasileiro. Arquivos do Museu Nacional, Rio de Janeiro, vol. 64(4), p.361-367.

CLAUDINO-SALES, V. 2005. Os litorais cearenses. IN: SILVA, J.B.; DANTAS, E.W.C. Ceará: um novo olhar geográfico. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, p. 78-88.

CLAUDINO-SALES, V.C. 2002. Les littoraux du Ceará. Géomorphologie de la zone côtière de I’Etat du Ceará: du long terme au court terme. Thèse de doctorat, UFR de Geographie, Université Paris-Sorbonne, Paris.

CLAUDINO-SALES, V.; PEULVAST, J.P. 2002. Dune Generation and Ponds on the Coast of Ceara State (Northeast Brazil). IN: ALLISON, RJ (ed.). Applied Geomorphology: Theorie and Practice. New York: Wiley and Son, p.443-463.

KOWSMANN, R.O.; COSTA, M.P.A. 1979. Sedimentação quaternária da margem continental brasileira e das áreas oceânicas adjacentes (Final report). IN: Petrobras (ed). Série Projeto REMAC 8. Rio de Janeiro, p. 55-76.

MCKEE, E.D.; WARD, W.C. 1983. Eolian environment. IN: SCHOLLE, P.A. BEBOUT, D.G.

AND MOORE, C.H (eds). Carbonate Depositional Environment. Newy York: AAPG Memoir, vol. 33, p.131-170.

PYE, K. 1983. Formation and history of Queennsland coastal dunes. Z. Geomorphol; suplle.bd.45:175-204.

Quer a apoiar a Eco Nordeste?

Seja um apoiador mensal ou assine nossa newsletter abaixo: