Por Vanda Claudino-Sales
Geógrafa
Professora associada aposentada da Universidade Federal do Ceará (UFC)
Professora visitante da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA)
vcs@ufc.br
Dunas costeiras são formas de relevo criadas pela ação do vento, que mobiliza areias disponíveis nas praias e as acumulam na forma de cômoros de alturas variadas, no interior da zona costeira. Elas podem ser móveis (com migração contínua das areias), fixas (associadas à presença de cobertura vegetal costeira, que imobiliza os sedimentos) e semi-fixas (com encostas ou dorsos parcialmente móveis, parcialmente fixos). Dentre esses tipos de dunas se situam as dunas parabólicas.
As dunas parabólicas têm forma em meia lua, ou croissant, com braços dispostos longitudinalmente à direção do vento principal, antecedendo o corpo principal da duna (Figura 1). Tais tipos de dunas potencializam a formação de geoambientes e ecossistemas particulares, pois no seu interior comumente ocorrem lagoas, formadas pela deflação, que evoluem com o vento removendo areias até atingir o nível do lençol freático, o qual então aflora.
As dunas parabólicas no Nordeste e no Estado do Ceará apresentam um processo evolutivo bastante singular e complexo. Elas derivam em geral de mudanças morfológicas, engendradas por mudanças climáticas, pelas quais passam as dunas barcanas, que representam formas dunares bem mais frequentes na zona costeira cearense.
Em função de mudanças climáticas naturais, que foram comuns ao longo da história geológica recente, a cobertura vegetal – que tende a se desenvolver mais em épocas úmidas e assim fixar dunas, e a se desenvolver menos em épocas mais secas, assim permitindo a migração de dunas -, são os elementos finais responsáveis por essas mudanças morfológicas (Duran e Herrmann, 2006). Tal processo pode ser apreciado a partir da análise da Figura 2.
A mudança de forma, de barcanoide e barcana para parabólica, resulta, em outras palavras, de processo de estabilização de dunas móveis, o qual, ao seu término, implica na geração de um novo ecossistema – de uma nova fauna e flora – nas áreas de ocorrências (Tsoar et al, 2009). Como elementos constituintes de campos de dunas parabólicas, ocorrem lagoas interdunares perenes e intermitentes, olhos d’água e áreas alagadas e alagáveis. Essa situação transforma essas dunas em importantes ecossistemas, caracterizados como ambientes refúgio para espécies animais da zona costeira semiárida, adquirindo assim uma importância ambiental sem paralelo.
Ocupação
Fortaleza, quando da chegada dos portugueses, nos anos 1500, era um só campo de dunas parabólicas e barcanas de grande expressão. Mas, a cidade cresceu, do ponto de vista urbano, às custas da destruição do seu patrimônio e paisagens naturais. Riachos, córregos, cobertura vegetal nativa, campos de dunas e praias, foram simplesmente desaparecendo ao longo do processo evolutivo histórico de sua malha urbana. Nesse percurso histórico, o campo de dunas foi sendo reduzido paulatinamente.
A partir da década de 1970, a destruição ampliou-se, por meio de desmatamento e terraplanagem, visando a construção de vias de circulação, edifícios residenciais e até uso das areias na construção civil. Apesar da diminuição dramática da paisagem dunar, que coloca as dunas em Fortaleza em situação de remanescentes residuais, a destruição dos terrenos de dunas continua ocorrendo (Meireles, 2012; Pinheiro, 2009). Na atualidade, restam os setores da Praia do Futuro, Cidade 2000 e Praia da Sabiaguaba, no Litoral Leste da cidade, como últimos remanescentes de terrenos dunares não completamente degradados, o que representa algo em torno de 17% da cobertura original (IBAMA, 2018: SEMACE, 2015).
As dunas do Cocó, Cidade 2000 e Praia do Futuro são classificadas como parabólicas, do tipo fixas e semi-fixas (Claudino-Sales, 2002, 1993). Essas dunas parabólicas são do tipo ‘hairpin’ – literalmente, parabólica ‘grampo-de cabelo. Tais feições são assim denominadas em razão da grande expressão espacial que apresentam os braços da duna, que se prolongam por várias centenas de metros, até quilômetros, em direção ao interior do continente: os sedimentos retirados da zona central pela deflação acumulam-se no front da duna, promovendo assim a sua contínua migração em direção ao interior da zona costeira.
A idade das dunas do Litoral Leste de Fortaleza – isto é, a idade de fixação das areias – foi estimada, a partir de datações por termoluminescência (~1m), como da ordem de 1.900 +/_ 250 anos (Claudino-Sales, 2010). Essa datação afina a obtida anteriormente na Praia do Pecém (40 Km de Fortaleza) por Maia (1998) e no Porto das Dunas por Tsoar et al (2009), que indicaram idade da ordem de e 1.700 anos.
O grau de alteração antrópica dos resquícios dunares nas Dunas do Cocó, Cidade 2000 e Praia do Futuro não permite mais identificar toda a riqueza dos recursos hídricos superficiais e vegetacionais que antes caracterizavam esse sistema dunar. Essa riqueza pode, no entanto, ser avaliada a partir da visualização de dunas semelhantes existentes ainda hoje no litoral de Lagoinha, Ceará (Figura 9). Em adição, trabalhos de campo realizados na área indicam a existência de olhos d’água, lagoas interdunares, áreas alagadas, cobertura vegetal desenvolvida, representando ecossistema ativo e importante no contexto da cidade (Figuras 3,4,5,6,7).
A destruição das dunas em Fortaleza vem colocando a cidade em contexto de permanente estresse ambiental, dado o elevado grau de impermeabilização dos terrenos que essa prática impõe. A impermeabilização também diminui o reabastecimento dos lençóis subterrâneos, e já é notável, em alguns setores de Fortaleza, a diminuição dos espelhos d’água de lagoas, tais como as Lagoa do Papicu e Lagoa da Precabura, por diminuição da alimentação normal a partir do subsolo.
Prejuízos
Os recursos hídricos estão assim diminuindo, desaparecendo ou sendo amplamente degradados. Considerando o fato da pequena altitude dos terrenos locais e a ausência de desnivelamentos topográficos expressivos, a ocorrência de enchentes urbanas vem sendo, então, frequente. Tais fatos implicam em desconforto urbano e prejuízos materiais, tanto para a população quanto para as estruturas urbanas (avenidas esburacadas, calçadas danificadas, galerias pluviais atulhadas por sedimentos e resíduos urbanos, alagamentos causadores de problemas de saúde pública, acúmulo e/ou distribuição de lixo urbano).
Esses problemas acabam sacrificando a população duplamente: geram incômodos enquanto estão ocorrendo e há perda de investimentos em outros setores sociais, como educação, saúde, transportes, já que recurso terão que ser redirecionados para a recuperação do que foi danificado pelas enchentes.
A retirada da cobertura vegetal em Fortaleza também é fator de extrema preocupação. O Inventário Ambiental de Fortaleza (PMF, 2002) já indicava que entre os anos 1968 e 2002, a cidade tinha perdido cerca de 70% de sua cobertura natural. Dados mais atualizados (IBAMA, 2018, SEMACE, 2015) indicam que esses números se aproximam dos 100% – com efeito, resta apenas cerca de 2,9% da cobertura vegetacional original. Isso coloca o fortalezense em contexto de baixa qualidade de vida, considerando-se que a arborização é um elemento considerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como necessário à existência de vida com qualidade boa ou aceitável.
Tais mudanças no quadro ambiental traduzem-se por modificação acentuada no clima urbano, e ilhas de calor vêm sendo detectadas em alguns bairros (MOURA, 2008). A temperatura vem também aumentando nos últimos anos, ocorrendo em algumas áreas valores estáveis de aumento da ordem de quase 4 graus centígrados (MOURA, 2008). Para se ter uma ideia da gravidade dessa situação, as modelizações do Painel Intergovenamental de Mudanças Climáticas (IPPC), da ONU, que vem realizando prognósticos e criando cenários futuros em termos de aquecimento global, indica um aumento da ordem de 1 grau para os próximos decênios, o que já implica em desastres ambientais. Ora, Fortaleza já apresenta valor três vezes maior do que o apontando para a média global pelo IPCC.
As dunas prabólicas hairpin, seus recursos hídricos e os ecossistemas que criam jamais voltarão a se desenvolver na zona litorânea de Fortaleza, em função da inexistência de espaço para acomodação de areias nos dias atuais. Na realidade, considerando-se o atual ritmo e forma de ocupação da zona costeira regional com grandes complexos turísticos e construções sem critérios ambientais, pode-se seguramente considerar que tais relevos jamais voltarão a ser produzidos em toda a extensão da zona costeira do Nordeste do Brasil. Em adição, a continuar esse ritmo de ocupação, as formas existentes fatalmente desaparecerão, perdendo-se para sempre paisagens naturais que a história geológica demandou milhares de anos para construir.
Caminhos para a proteção
Nesse sentido, urge encontrar caminhos legais e jurídicos capazes de proteger em caráter definitivo esses resquícios de dunas do litoral de Fortaleza. A preservação dessas formas dunares é essencial para a manutenção do registro das ocorrências naturais da morfologia primitiva na cidade, e garantiria uma melhor qualidade de vida para a população. Em adição, as áreas preservadas forneceriam em caráter permanente um refúgio para um grande número de espécies animais da fauna costeira regional e local.
Por fim, faz-se necessário colocar que as dunas em questão, assim como os outros resquícios de dunas móveis e fixas existentes no segmento leste de Fortaleza, são absolutamente fundamentais para a manutenção do manguezal do Rio Cocó. Essa situação resulta do fato de que as dunas atuam como alimentadoras do aquífero costeiro, já que permite a infiltração das águas da chuva. O lençol subterrâneo, por sua vez, fornece a necessária água doce que o manguezal exige para sobreviver.
Assim, com a eventual erradicação das dunas do litoral leste da cidade de Fortaleza, seria inexoravelmente decretado o fim do ecossistema manguezal. Dada a importância desse ecossistema para a existência de espécies de animais aquáticos (peixes, crustáceos, mariscos) e continentais (aves, mamíferos, répteis) da área litorânea, de importância inclusive econômica (pesca, por exemplo), percebe-se a necessidade peremptória de preservação desse campo de dunas residual.
Preservadas, essas áreas poderiam representar um excelente espaço para a realização de atividades educativas, voltadas para a conscientização da dinâmica da natureza, para a valorização da geodiversidade e biodiversidade regionais, e para o crescimento, tão necessário, da consciência ecológica no seio da comunidade local. Seriam ainda uma alternativa, se bem organizadas e planejadas as possibilidades de usos, para atividades de contemplação da natureza, realização de atos lúdicos e eventos associados com geoturismo.
Diante do exposto, indicamos como urgente, necessário e positivo a criação de lei municipal e estadual que indiquem de forma definitiva a preservação das dunas do entorno da Cidade 2000 e da Praia do Futuro, nas áreas indicadas para tal.
Na verdade, o processo já se encontra em andamento: o movimento “Fortaleza pelas Dunas” está elaborando projeto de lei que será encaminhado para a Câmara Municipal de Fortaleza e para a Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, a partir de iniciativa popular. Ou seja, serão coletadas assinaturas da população de Fortaleza e dos demais municípios do Estado, na perspectiva de não depender da “boa vontade” dos políticos, e ter o projeto aprovado pela demanda da população.
Esse processo, que terá início brevemente, certamente chegara até você! Assim, se você for solicitado a assinar o documento que encaminhará o projeto de lei, não hesite, assine e divulgue! Fortaleza, pelas dunas, precisa de você!
Referências bibliográficas:
Claudino-Sales, V. (2010). Paisagem dunas em área urbana consolidada: natureza, ciência e política no espaço urbano de Fortaleza. Sociedade e Natureza 22:447-459
Claudino-Sales, V.; Peulvast, J.P. (2002). Geomorfologia da zona costeira do Estado do Ceará. In: Dantas, E.W.C. (org). Litoral e Sertão: Natureza e Sociedade no Nordeste Brasileiro. Fortaleza: Expressão Gráfica, p. 46-59.
Claudino-Sales, V. (1993). Cenários Litorâneos: Natureza e Ambiente na Cidade de Fortaleza. Dissertação de Mestrado, Universidade de São Paulo.
Davis, R. (2006). Evolving coasts. Berlin: Spring-Verler.
Duran, O.; Herrmann, H.J. (2006). Vegetation against Dune Mobility. Physical Review Letter, 97:1888-1891.
Maia, L. P. Procesos Costeros y Balance Sedimentário ao lo largo de Fortaleza (NE-Brasil). Implicaciones para una gestão adecuada de la zona costera. 1998. 192f. Tesis (Doctoral en Geología) – Universitad de Barcelona, 1998.
Meireles, A.J. (2012). Geomorfologia Costeira: funções ambientais e sociais. Fortaleza: edições UFC.
Moura, M. O. (2008). O clima urbano de Fortaleza sob o nível do campo térmico. Dissertação de mestrado, Departamento de Geografia, UFC.
Pinheiro, M. V. (2009). Evolução geohistórica das dunas de Fortaleza. 2009. 210p. Dissertação de Mestrado, Departamento de Geografia da UFC, 2009.
PMF (2002). Prefeitura Municipal de Fortaleza. Inventário Ambiental de Fortaleza.
Tsoar, H.; Levin, N.; Porat, N.; Maia, L. P.; Herrmann, ; Tatumi, S.; Claudino-Sales, V. (2009). The effect of climate change on the mobility and stability of coastal sand dunes in Ceará State (NE Brazil). Quaternary Research, 71: 217-226.