Acervo com quase mil fósseis traficados é devolvido ao Cariri cearense pelo governo francês

Pessoas (uma mulher banca de cabelos ruivos e óculos e três homens brancos, dois usando óculos) seguram duas partes de uma pedra com um grande fóssil incrustado sobre uma mesa com toalha azul. Atrás deles há mais quatro homens, sendo três brancos e um negro

Fóssil de um pterossauro exposto durante cerimônia de devolução realizada na Normandia, na França | Foto: Geopark Araripe

Por Alice Sales
Colaboradora

Santana do Cariri – CE. Dentro de poucos dias chegarão ao Brasil 998 fósseis retirados ilegalmente da Bacia Sedimentar do Araripe, importante sítio paleontológico localizado na região do Cariri cearense, nas divisas entre o Ceará, Pernambuco, Piauí e a ParaíbaAs peças, que possuem importante valor científico, estão vindo da França, onde faziam parte do acervo de uma empresa de leilões virtuais. A coleção chegou à Europa por meio do tráfico e está sendo devolvida ao Cariri após investigação e processo judicial tocado pelo Ministério Público Federal (MPF), que perdura desde 2013. Entre os fósseis há um pterossauro em ótimo estado de conservação. 

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A cerimônia de devolução foi realizada na Normandia, no norte da França.  As peças, além de raras,  remetem à natureza do Período Cretáceo da Chapada do Araripe (de 144 milhões a 65 milhões de anos atrás). Dentre os fósseis recuperados, há exemplares de peixes, tubarões, raias, pterossauros, insetos, tartarugas, lagartos, plantas e espécies diversas que ajudarão a compreender melhor o processo evolutivo na região.

Não há dúvidas de que os fósseis pertencem à Chapada do Araripe. Sobre isso, o pesquisador Álamo Saraiva,  biólogo e coordenador do Laboratório de Paleontologia da Universidade Regional do Cariri (Urca), explica que a matriz dessas peças, ou seja, a rocha onde estão cravados os fósseis, só existe na Bacia Sedimentar do Araripe, o que garante a origem do acervo. 

“O material é espetacular. São peças variadas, compostas por pelo menos duas formações da Bacia do Araripe: Formação Crato e Formação Romualdo. São organismos com uma preservação excepcional, raras e valiosas do ponto de vista científico. Além disso, certamente nesse acervo há peças desconhecidas para a ciência, o que dá à comunidade científica brasileira a oportunidade de descobrir novos capítulos da história da vida no nosso planeta. Caso esse material permanecesse na França, haveria a dificuldade de os nossos cientistas de avaliarem e estudarem esses fósseis”, destaca o cientista Allysson Pinheiro, diretor do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens, da Urca.

O fóssil de um pterossauro praticamente completo foi uma das peças do acervo que mais chamou atenção dos cientistas. O animal possui as duas asas preservadas, com detalhes dos dedos, falanges e garras, parte da coluna, costelas e crista. Esse deverá ser objeto de estudos minuciosos dos pesquisadores do Museu e da Urca.

Pedra bege com fóssil de libélula em tonalidade marrom incrustado

Fóssil de libélula em ótimo estado de conservação | Foto: Geopark Araripe

Bem científico e cultural de um povo 

De acordo com a Constituição brasileira, fósseis integram o patrimônio nacional e não podem ser propriedade de pessoas físicas, vendidos ou deixar o País. Saraiva explica que o tráfico de fósseis possui uma rede muito grande de atuação e que a prática é comum no Brasil. O contrabando começa desde os pequenos exploradores de pedra cariri e segue por meio de agenciadores para o sudeste do País, de onde são enviados para o exterior, como no caso do acervo devolvido pela França e que agora será repatriado.

O cientista atenta, ainda, para o fato de que a legislação brasileira é muito branda com relação a crimes do tipo, o que incentiva a prática: “Os contrabandistas são processados por dilapidação de patrimônio público ou por roubo simples, com penas brandas. A sociedade precisa pensar em criminalizar o tráfico de fósseis com penas mais severas”, destaca. 

O tráfico dessas peças traz grandes danos à ciência, já que, na maioria das vezes, o destino delas é serem guardadas em coleções particulares e nem todo colecionador permite que cientistas visitem o acervo para consulta, comparação e descrição desse material. “Um exemplo clássico disso é o fóssil da cabeça de um pterossauro, traficado daqui e vendido para uma coleção particular em 1997. Até hoje não sabemos o paradeiro. Esse é o único fóssil de pterossauro que tem detalhes de cores na crista. Essa peça, em particular, poderia responder muitas perguntas feitas pela ciência, nas quais as respostas são prejudicadas pelo tráfico”, enfatiza Saraiva. 

Além disso, o pesquisador defende a importância da permanência dessas peças em seus lugares de origem e reforça que, mesmo estando em uma coleção pública na Europa, estão sujeitas a perderem a identidade regional. “Essas peças precisam estar aqui, uma vez que contam a história dentro de um contexto que explica o que foi o Cariri e o nordeste do Brasil no Período Cretáceo. Além disso, o fóssil da Bacia do Araripe estando aqui, faz parte de um bem científico que passa a ser um bem cultural e de desenvolvimento sustentável da região, que fomenta o turismo científico, de aventura e cultural”.  

Essa premissa de que os fósseis possuem relação próxima com a população de seu território de origem e devem ser considerados bem cultural  de um povo é, inclusive, assegurada pela legislação brasileira. No entanto, essa não é uma leitura feita por todos os países do mundo. Há países que permitem a comercialização dessas peças e é aí onde há espaço para empresas especializadas na comercialização. “Para complicar um pouco mais, apenas em 1942 foi firmada uma legislação impedindo o comércio desse material. Sempre que a gente reivindica um fóssil fora do Brasil há a desculpa de que esse material teria saído do Brasil antes dessa legislação vigente”, comenta Alysson Pinheiro.  

As expectativas para a chegada do acervo são as melhores. A primeira preocupação diz respeito ao estado de conservação após a viagem de navio da França ao Brasil. O material, dependendo da peça, será destinado para exposição no Museu de Paleontologia Plácido das Nuvens, em Santana do Cariri, além de servir como objeto de estudo para enriquecer a formação de estudantes de graduação, de mestrado e doutorado.  

“A intenção é que a gente realize uma exposição só com o material dessa operação, em nosso museu e também em outros locais do Ceará. Ainda não temos data pra isso. Vai depender da chegada e da preparação das peças, que é um processo um pouco mais lento. Mas, assim que possível, estaremos apresentando para toda a sociedade o fruto dessa importante ação”, informa o diretor do Museu de Paleontologia Plácido Cidade Nuvens.

Pedra bege com fóssil de inseto em tonalidade marrom incrustado

Fóssil pertencente ao acervo que será repatriado | Foto: Geopark Araripe

Bacia Sedimentar do Araripe

A Bacia Sedimentar do Araripe, possui cerca de 9000 km2, e situa-se entre as divisas dos Estados do Ceará, Pernambuco, Paraíba e Piauí.  Em 2006, a região foi reconhecida como um dos 161 geoparques mundiais da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Trata-se de uma bacia interior, com destaque para as sequências mesozoicas onde se predominam os sedimentos posteriores à formação do Oceano Atlântico Sul, que aconteceu após a separação da América do Sul e África.

Ela possui afinidades litológicas e paleontológicas com outras bacias relativamente próximas, a exemplo da Bacia do Parnaíba, Bacia do Grajaú, Bacia do Recôncavo e Bacia Tucano-Jatobá, e isso mostra a magnitude dos processos geológicos envolvidos em gênese.

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