A Eco Nordeste finaliza, neste fim de outubro, o projeto de conteúdo jornalístico multimídia sobre a maior área de expansão agrícola no Brasil, o ma.to.pi.ba. Em reportagens especiais, matérias, web stories, podcasts e newsletters, mostramos muitos problemas, como desmatamento, mudanças climáticas, grilagem e violações de direitos, mas também contamos histórias de pessoas, comunidades e instituições que apresentam caminhos para pensar como conciliar conservação, justiça socioambiental e climática e a produção agrícola no País.
Conversamos com especialistas, institutos de pesquisa e organizações da sociedade civil e fomos a campo para conhecer os territórios e os modos de vida das comunidades tradicionais que vivem na região. No coração do Brasil, nossa equipe de reportagem saiu da zona de conforto e mergulhou em um bioma até então pouco abordado na Eco, o Cerrado, que ocupa 91% dos 73 milhões de hectares que compõem o Matopiba.
Em janeiro, realizamos nossa primeira incursão ao sul do Maranhão. Estivemos no município de Balsas, um dos mais ricos do agronegócio, com mais de 200 mil hectares plantados de soja e líder no ranking de desmatamento do Cerrado em 2022, com 24 mil hectares desmatados.
Em dez dias, nossa repórter Alice Sales viu de perto os impactos socioambientais causados pelo agronegócio e as pressões exercidas pelas fazendas produtoras de commodities sobre lideranças, famílias e comunidades ameaçadas. Por outro lado, também o trabalho de pessoas que por meio da arte, do turismo sustentável e do plantio de mudas de espécies nativas estão agindo para manter florestas em pé e nascentes preservadas.
Em junho, foi a vez da repórter Camila Aguiar empreender mais uma jornada de dez dias de apuração em campo, desta vez no Oeste da Bahia. A região é considerada a parte mais antiga e consolidada do Matopiba e abriga o município campeão de desmatamento do Cerrado em 2023, São Desidério, com 40 mil hectares desmatados.
Encontramos mais casos de conflitos entre grileiros e comunidades tradicionais, a resistência de quilombolas à construção de uma ponte ferroviária que integra a infraestrutura do Matopiba e a delicada questão da água nesta região cujos rios integram a bacia hidrográfica do Rio São Francisco. Esses e muitos outros temas foram abordados nos mais de 50 conteúdos publicados entre janeiro e outubro.
Desmatamento e mudança
climática são os principais desafios
Nessa jornada, ampliamos nossa rede de parceiros e fontes, com os quais aprendemos sobre as principais características e questões que envolvem a história, a população, a economia, a cultura e a natureza dessa região do País. Encontramos muitos opostos: destruição e abundância, violência e comunhão, riqueza e pobreza, injustiça e luta. Apesar da bandeira econômica em defesa do agronegócio, é inegável que por onde ele passa deixa um rastro do polo negativo da equação.
Não é à toa que a região do Matopiba foi a principal responsável pelo desmatamento no Cerrado em 2023, quando o bioma ultrapassou os números da Amazônia. Parece até uma relação óbvia: se vai plantar, tem que desmatar. Mas não é bem assim, como nos explica André Guimarães, diretor executivo do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam):
“A agropecuária no Brasil é em sua maior parte não irrigada. Ela depende dos ciclos naturais de chuva, que vêm exatamente pelas florestas. São elas que estabilizam o clima local, que fazem circular a umidade e que permitem uma certa previsibilidade nas chuvas, o que é importante para a agricultura e a pecuária. Quando a gente remove florestas, altera demais o ambiente e a paisagem, acaba agravando os impactos das mudanças climáticas, que localmente se dá através de alterações dos regimes de chuvas, como temos visto com as enchentes e secas. Então, não há nenhuma incompatibilidade, pelo contrário, o agronegócio tem que entender que é dependente das condições naturais de chuvas que são dadas por florestas e que, portanto, preservá-las é bom para o agronegócio”.
Como uma floresta “de cabeça para baixo”, um aspecto da grandiosidade do Cerrado está embaixo da terra. Suas raízes profundas alcançam os lençóis freáticos que armazenam a água das chuvas propiciadas, em grande parte, pelos rios voadores da Amazônia. Isso garante a sobrevivência da vegetação nos períodos de seca e é dessa riqueza subterrânea que nascem oito das doze principais bacias hidrográficas do País.
Délcio Rodrigues, diretor executivo do Instituto ClimaInfo, explica que essa característica também inverte a lógica do estoque de carbono como conhecemos nas florestas tropicais como a Amazônia. Enquanto nestas a maior parte está estocada acima do solo, nos troncos das árvores, no Cerrado são as raízes que desempenham esse papel, podendo alcançar até 15 metros de profundidade e guardar até cinco vezes mais carbono do que nas partes aéreas das árvores. E completa:
“Um estudo feito por cientistas de 21 diferentes centros de pesquisa mostrou que o Cerrado estoca, em média, 143 toneladas por hectare de carbono abaixo do solo. Para efeito de comparação: uma floresta tropical intacta, como a Amazônia, estoca em média de 140 a 200 toneladas de carbono por hectare na parte aérea das árvores. Além do carbono liberado no desmatamento, há também o carbono das atividades humanas implantadas na área desmatada. Isso está levando a uma mudança no padrão das emissões do bioma”.
É de se esperar que, sendo líder do desmatamento no Cerrado, o Matopiba também seria campeão nas emissões de CO2 no bioma. É o que mostram os dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG). Dos 135 milhões de toneladas de CO2 emitidos por desmatamento no Cerrado entre janeiro de 2023 e julho de 2024, 80% vieram da fronteira agrícola – um total de 108 milhões de toneladas, o equivalente a 50% das emissões totais do setor de transportes.
A questão ambiental e climática é um ponto crítico para o qual devem olhar com atenção os governos, mas também as empresas do agronegócio. Isso porque, embora a região expanda cada vez mais sua capacidade de produção de grãos, a superexploração da água põe em risco até mesmo o sucesso dos negócios.
Um estudo recente, liderado por cientistas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), revelou que o impacto do uso excessivo de recursos hídricos pode comprometer até 40% da demanda por irrigação de terras agricultáveis entre 2025 e 2040. Há uma sobrecarga no aquífero Urucuia e nos corpos d’água superficiais da Bacia do Rio Grande, no Oeste da Bahia, que têm mais de 90% da água retirada destinada à irrigação na fronteira agrícola. Em outra matéria, também mostramos que na região a irrigação consome sete vezes mais água do que as cidades, segundo pesquisa do Instituto Mãos da Terra (Imaterra) em colaboração com a Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Caminhos e oportunidades
Um Comitê-Gestor presidido pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) está responsável pela elaboração do Plano de Desenvolvimento Agropecuário (PDA) do Matopiba. Desde novembro de 2023, quando foi reeditado o decreto que dispõe sobre o Plano, já foram realizadas duas reuniões e foram criados os grupos técnicos que estão trabalhando na elaboração de estratégias, ações e metas para a fronteira agrícola. José Carlos Polidoro, secretário do Comitê, prevê que a publicação do Plano seja realizada em 2025.
Um dos pontos a ser atualizado é a delimitação da região, com a inclusão ou retirada de municípios, que até agora somam 337. A redução do desmatamento e a produção agroindustrial também são investimentos para alcançar o “desenvolvimento agropecuário com base na sustentabilidade agroambiental e gestão territorial”, como diz a nova versão do decreto. Polidoro explica que não é necessário avançar para novas áreas:
“Nosso plano é desmatamento zero e estimular que os proprietários das terras, produtores e investidores avancem sobre as áreas com pastagem degradada para aumentar a produtividade nessas áreas, com produção de carne, leite e outros derivados, e também converter essas áreas para produção agrícola e florestal. Nossos programas são para que o produtor rural opte por não abrir novas áreas porque ele tem áreas já abertas que podem se tornar produtivas. Por isso estamos trabalhando com o PDA, o Plano Nacional de Conversão de Pastagens Degradadas, o Plano Nacional de Fertilizantes, o Plano Nacional de Logísticas. Todas essas políticas estão extremamente integradas, então significa que nós vamos conter o desmatamento legal por ele se tornar desnecessário. Nós temos mais de 40 milhões de hectares de pastagem degradada que podem se transformar em agricultura”.
Em mais um de nossos conteúdos, também mostramos como os incentivos financeiros podem ajudar a reduzir o desmatamento legal, com mecanismos de remuneração para os proprietários que protejam áreas além da porcentagem mínima estabelecida pelo Código Florestal. Enquanto na Amazônia a legislação limita a 20% o permitido para ser desmatado em propriedades privadas, no Cerrado a permissão é de até 80%. Um exemplo de incentivo financeiro desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) é o Conserv, que compensa médios e grandes produtores rurais por conservarem o excedente de vegetação nativa.
Para Délcio Rodrigues, diretor executivo do Instituto ClimaInfo, “a criação de unidades de conservação e a demarcação de terras indígenas são iniciativas que também podem ter um efeito bastante positivo, já que todos os levantamentos comprovam a eficácia desses territórios para a preservação ambiental”.
O combate ao desmatamento ilegal segue sendo um grande desafio, já que representou metade da perda de vegetação no Cerrado em 2023, conforme estimativas do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Mesmo nos casos das supressões de vegetação autorizadas, um estudo do Climate Policy Initiative (CPI) em parceria com a PUC-Rio mostrou que existe um descontrole na gestão do desmatamento legal na região do Matopiba.
Povos tradicionais ensinam
sobre práticas sustentáveis
Dedicada a uma abordagem focada em soluções e experiências positivas, nossa equipe de reportagem encontrou muitas histórias de pessoas, comunidades, instituições e projetos inspiradores quando o assunto é conservação e sustentabilidade. Na dianteira desses grupos, estão os povos tradicionais. Maristela Crispim, editora-chefe da Eco Nordeste e coordenadora do Projeto ma.to.pi.ba., conclui:
“O Projeto ma.to.pi.ba. foi a melhor oportunidade para trazer à tona muitas histórias sobre as belezas e riquezas da sociobioecoconomia daquele território que foi designado pelo governo como uma fronteira agrícola, mostrar a violência deste avanço e que há oportunidades de desenvolvimento em bases mais sustentáveis. Ele considerou, inclusive, a existência e a importância de políticas públicas neste sentido. Espero que nossa equipe tenha conseguido plantar uma semente de esperança por dias melhores para toda a população que vive e trabalha na região”.
Projeto ma.to.pi.ba.
Denominado com as sílabas iniciais dos quatro estados que abrange – Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia –, o Matopiba inclui 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais desses três Estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho e algodão.
O Matopiba tem 73 milhões de hectares em três biomas: Cerrado ( 66,5 milhões de hectares, o equivalente a 91% da área), Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a 7,3%) e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.
Este conteúdo faz parte do Projeto ma.to.pi.ba., uma ação multimídia da Eco Nordeste, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Com início em janeiro de 2024, traz matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo em que aborda os problemas socioambientais, a iniciativa multimídia aponta experiências que têm dado certo na região, seguindo a linha editorial de jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.
O projeto é executado por uma equipe premiada composta pelas repórteres Alice Sales e Camila Aguiar, com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação geral da jornalista Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação, Flávia P. Gurgel é responsável pelo design; Isabelli Fernandes, edição de podcasts; e Andréia Vitório faz o gerenciamento das redes sociais.