Pôr do sol entre árvores
Pôr do sol no sertão do Ceará | Foto: Alice Sales
Homem branco de cabelos brancos usando óculos quadrados, camisa xadrez e casaco preto
Antônio Rocha Magalhães é economista e foi secretário de Planejamento do Governo do Ceará

Por Antonio Rocha Magalhães
Economista
Ex-Secretário de Planejamento do Ceará
armagalhaes@gmail.com

As coisas que são ditas aqui não são típicas apenas da Região da Caatinga. São, em verdade, características da espécie humana, com nuances de cada ambiente. Entretanto, foi no sertão que vi isso. Em particular, no sertão do Ceará.

A verdade e a mentira são, para os sertanejos, conceitos absolutos, válidos por si mesmos (embora isso possa ser discutido hoje). A religião nos ensina isso e os dez mandamentos nos obrigam. A palavra dada por um homem ou por uma mulher deveria ser cumprida ao pé da letra. A primeira obrigação de uma mulher era a de seguir as ordens do seu marido ou do seu pai. Era uma sociedade terrivelmente machista. O conceito de um homem dependia de ele ser cumpridor de sua palavra, para o bem ou para o mal. Para isso, não havia necessidade de contratos e de reconhecimento de firmas. Isso não é o mesmo que dizer que essa era uma sociedade menos burocratizada, porque os direitos do povo não existiam.

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Mas nem tudo tem de ser feito ao pé da letra, porque há nuances locais a serem observadas. Por exemplo, no sertão a justiça era feita tradicionalmente pelos donos do poder. O grande proprietário sempre pôde determinar quem é inocente e quem é culpado e pôde dar abrigo a quem tinha malfeitos em outros lugares. Ali, ninguém tocaria neles. Mais que isso: eles próprios estavam acima de qualquer lei. Para isso, ele mantinha o poder local, num sistema que envolvia acordos tácitos com o poder da província e o poder federal.

A questão de honra se sobressaia, altaneira. Assim como Deus fez uma aliança com Abraão e o símbolo dessa aliança era um pedacinho do couro do pênis de cada homem, que deveria ser circuncidado no oitavo dia de vida, o homem do sertão tinha a sua honra ligada ao hímen da mulher. Se alguém rompesse esse hímen, o mínimo que deveria fazer era casar-se imediatamente. Muitas vezes, ainda que aceitasse o casamento, o ofensor era assassinado, em nome da honra da família, e a pobre mulher passaria o resto da vida carregando a sua cruz.

A paisagem do sertão, nos meses secos, é desolada e triste. Os galhos sem folha são pequenos fantasmas expostos ao sol, incapazes de oferecer uma sombra que pudesse servir de abrigo. Com exceção das oiticicas, que só ocorrem em margens de rios, e dos juazeiros, não há sombras na época da seca. Assim, a Fazenda era uma prisão de onde não se poderia escapar.

Assim se mantinha esse esquema de poder onde a verdade, a justiça e a honra pertenciam ao dono de terra. Ai de quem tentasse romper um desses elos.

Como essas questões continuam sendo tratadas?

Devemos dar graças a quem de direito porque vivemos em uma sociedade mais aberta, embora isso não signifique desconhecimento dos problemas históricos.

O passado, pelo que conhecemos, foi muito pior do que o presente.

O Estado começou a se fazer presente localmente (embora isso ainda não tenha sido alcançado plenamente). O sistema judicial tem seus problemas atualmente, mas funciona e não está escancaradamente a serviço do poder local. Existe infraestrutura, é fácil o deslocamento para qualquer lugar. Melhoraram os níveis educacional e de saúde e reduziu-se a dependência que o povo tinha em relação aos donos da terra.

As dificuldades são ainda extremas, ainda vivemos em um país que é campeão de desigualdades, o meio ambiente está sendo destruído.

Podemos agora discutir com mais profundidade o que entendemos como verdade. Alguns acham que esse é um conceito totalmente relativo, o que no extremo significaria que não existe algo que seja verdade absoluta. Por exemplo, uma fé é verdadeira para os seus seguidores, mas não é necessariamente verdadeira para os seguidores de outra fé ou para os que não tem fé. E assim por diante.

A justiça alcança agora mais do que antes, a população, e não depende apenas das relações locais de poder. Qualquer pessoa agora pode lançar mão da justiça, se sentir que seus direitos estão ameaçados.

Talvez a revolução maior tenha acontecido no conceito de honra. A revolução social e, particularmente, a revolução feminina aconteceu no prazo de duas gerações. Os pais que sofreram a mudança pagam duplamente: tendo sido criados no regime antigo, criam os seus filhos no novo regime.

O corpo da mulher a ela, e só a ela, pertence. Essa é a regra geral.

Essas transformações ocorreram em todo o ocidente, no Brasil todo, não apenas no sertão.

A vida no sertão não é a mesma, embora ainda tenha as paisagens e os pores de sol mais bonitos que se possa imaginar. Ainda é o lugar para se voltar.

1 Comentário
  1. Muito verdadeiro esse seu artigo, doutor. Peguei essa geração de criação mais rígida onde a virgindade feminina era o grande pendor da honra, não só dela, mas da família. Uma mulher desonrada, se não fosse desposada pelo mal feitor, ficava falada pelo resto da vida e dificilmente contrairia matrimônio com outra pessoa. Tempos terríveis, sem dúvida, mas substituídos por tempos de muita promiscuidade sexual no sertão, que também não é o ideal, pois traz doenças e maternidade precoce. Digamos que avançamos mais da conta e um meio termo seria melhor. Também a justiça. Está certo que não estamos mais nos tempos do mandonismo local e a justiça avançou sertão adentro com sua estrutura física e pessoal, onde cada cidadezinha do interior tem o seu fórum. Na minha General Sampaio tem um. Mas vejo com preocupação a penetração do crime organizado e do tráfico de drogas que está pulverizando famílias e destruindo juventude, um fenômeno que no meu tempo não havia e estamos falando de uns trinta e cinco atrás, que foi quando sai do interior. Nem tem tanto tempo assim.

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