Em novembro de 2014, quando boa parte dos açudes do Sertão Central do Ceará secaram, o São Mateus, em Canindé, ainda alimentava a população | Foto: Eduardo Queiroz

Antonio Rocha Magalhães
Economista
Ex-Secretário de Planejamento do Ceará
armagalhaes@gmail.com

Canindé – CE. Os rios são organismos vivos, cheios de vontade. Às vezes correm com muita raiva, às vezes deslizam tranquilos como se estivessem sozinhos no mundo. Eles mudam constantemente e desenvolvem relacionamentos com o meio ambiente local, as pessoas, os animais.

Hoje vou falar de um rio da Caatinga, no Semiárido cearense: o Rio Canindé. Como tantos outros que nascem na Caatinga, o ruma para o Atlântico e permite que, às suas margens, se desenvolva uma civilização, comunidades, fazendas, modos de vida, histórias, sofrimentos.

O Rio Canindé é o rio da minha infância, onde eu ia brincar nas suas areias frias da noite e, todo dia, ia pegar água para abastecer os potes na cantareira da nossa casa. É também o rio das nossas pescarias, nas épocas de cheias, e das nossas experiências de atravessá-lo a nado.

O Rio Canindé faz parte da Bacia Hidrográfica do Curu, que tem 8.534 km2 e a forma de uma árvore invertida. O Rio Curu deságua no Atlântico, no meio do litoral do Estado do Ceará, entre as cidades de Paracuru e Paraipaba, a 85 Km de Fortaleza no rumo oeste. O leitor pode ver a imagem da Bacia do Curu no site da Secretaria de Recursos Hídricos do Ceará (SRH). Basta colocar essa imagem de cabeça para baixo, para ver que ela tem a forma de uma árvore.

O Rio Canindé é o principal afluente do Curu, pela margem direita. Por sua vez, o Rio Caxitoré é o principal afluente pela margem esquerda. O Curu propriamente dito nasce na Serra do Machado, ao sul de Canindé, e percorre 195 Km até o mar. Segundo o Pacto das Águas, existiam, em 2008, 818 açudes de todos os tamanhos na Bacia do Rio Curu, dos quais 229 cobriam uma área superior a 5 ha.

Dos 13 principais, apresentados pelo Pacto, quatro se situam no município de Canindé: São Mateus, no Rio Canindé; Salão, no Riacho Salão; Souza, no Riacho Juriti; e Caracas, no Riacho Longá. A construção de todos esses açudes se deu em decorrência de secas acontecidas no Estado, visando em primeiro lugar a criar empregos para os atingidos e, ao mesmo tempo, assegurar a oferta de água em épocas secas.

Os riachos que alimentam esses açudes são afluentes do Rio Canindé e, consequentemente, do Curu. O Açude General Sampaio, que foi construído em decorrência da seca de 1932, não é abastecido pelo Rio Canindé, embora seja importante para fornecer água suplementar a esta cidade, por meio de aqueduto. O General Sampaio se localiza diretamente no Rio Curu, antes que este receba as águas do Rio Canindé.

Imagino descer pelo leito do Rio Canindé, a partir da Serra de Mariana até o Açude do Pentecoste, pelo menos. Isso seria possível na época em que o rio está seco, ou seja, na maior parte do ano, especialmente nos meses entre julho e dezembro.

Com isso, poderia ver o leito, suas areias, as cacimbas. Seria possível ver as margens, as vegetações, as grandes oiticicas que fazem sombra e protegem as margens, os acidentes geográficos. E seria possível ver as intervenções humanas, as comunidades e casas, as fazendas, as cidades.

Com um pouco de imaginação, poderia ver o rio “funcionando”, as pessoas pegando água para beber, dando de beber aos animais, tirando areia para suas construções, vivendo a vida das fazendas e comunidades nas margens direita e esquerda, administrando o gado nos currais, preparando a terra para a agricultura. Nos locais onde o rio foi barrado por açudes públicos, veria o que tem nas margens, as vazantes e os foros e também as casas de veraneio.

Infelizmente, o rio se encontra descaracterizado quando passa pelas cidades, como acontece em Canindé. Aí ele mudou parcialmente de leito e, a par de estar seco na maior parte do ano, foi contaminado com os restos de lixo e de esgotos. Canindé é a maior cidade da bacia, dispondo de um comércio muito movimentado por causa do turismo religioso – um neologismo para significar as romarias de nordestinos em busca de milagres de São Francisco das Chagas.

Ainda que contínuas administrações municipais tenham pregado a necessidade de sanear o rio e de dotar suas margens urbanas de infraestrutura amigável, com passeios, iluminação, arborização e saneamento, tudo isso ainda não saiu do papel. Infelizmente, as cidades, e não apenas Canindé, contribuem cada vez mais para poluir o leito do rio e tornar suas águas impróprias para uso humano.

A degradação é um problema geral, tanto nas zonas rurais como urbanas. O desmatamento das margens e de áreas da bacia ocorreram ao longo de todo o percurso. Com o desmatamento vem a perda de habitat, a redução da biodiversidade, a perda de solos, a erosão do rio, a introdução de plantas invasoras e a redução da produtividade agrícola.

Uma viagem ao longo do rio permitiria a identificação e localização dos mais variados problemas, com dados suficientes para a busca de soluções. Muitas dessas soluções não dependem necessariamente de investimentos públicos, mas sim de mudança de comportamento das comunidades urbanas e rurais.

Essa destruição causada pelo ser humano, em particular o desmatamento dos diversos tipos de Caatinga, a destruição das matas ciliares, a mineração de areia no leito do rio, a erosão e a sedimentação dos caminhos de água e dos reservatórios, tudo isso seria documentado. Seria triste ver o leito do rio como depositário de todos os rejeitos oriundos dos aglomerados humanos em seu percurso.

Em Canindé, ver-se-ia à margem esquerda a suntuosa Basílica de São Francisco das Chagas, que atrai romeiros de todas as partes do Nordeste e do Brasil. Mas no próprio leito também se veria o lixo hospitalar, os esgotos, os sacos de plástico, as sujeiras que derivam do consumo humano, os focos de mosquitos que causam doenças transmissíveis como dengue, chikugunya e zika.

Esse percurso também permitiria ver as intervenções positivas feitas pelos humanos, como as cisternas de placa, que estão em frente até mesmo dos casebres isolados do meio rural. E também os barramentos, feitos para preservar a água nas épocas secas, tanto grandes como pequenos.

Os pequenos sistemas de abastecimento de água para comunidades, promovidos pelo Projeto São José. Os assentamentos, promovidos pelos órgãos de reforma agrária, tanto do estado como da união. Os poços nos terrenos sedimentares e, um pouco mais distante, nas áreas de rochas cristalinas que em suas fissuras abrigam pequenos acúmulos de água subterrânea.

Poder-se-ia ver os cultivos de hortaliças e as pequenas ações de agricultura irrigada, utilizando a água das cacimbas cavadas no leito do rio. Seria possível ver as margens, a vegetação da Caatinga, as grandes árvores que ainda teimam em continuar nas margens dos rios, distante das cidades.

Perto de Canindé, por exemplo, havia as oiticicas, que tanto protegiam as ribanceiras como também forneciam grandes sombras – um alívio para o sol quente do sertão, um abrigo para os romeiros – e até mesmo para suplementação de renda, quando o seu óleo ainda era aproveitado e exportado. Será possível ver os currais de gado, se ainda existirem, e as pequenas criações.

Finalmente, será possível ver e sentir a magnanimidade da natureza que foi colocada à disposição dos seres humanos e que, particularmente após a colonização portuguesa, vem sendo degradada e reduzindo continuamente a sua capacidade de suporte para a vida.

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