Mais de um ano após o início das obras, crescem as reclamações sobre os riscos do banho de mar. Especialistas avaliam impactos da ocupação desse que é um dos cartões postais de Fortaleza.
Texto: David Medina e Lívia Priscilla
Fotos: David Medina
Edição: Maristela Crispim
Fortaleza – CE. Na cidade dos verdes mares, os moradores têm uma relação orgânica com o litoral. O mar da Capital alencarina é fonte de sustento, de contemplação, de lazer e atrai milhares de turistas todos os anos. No entanto, essa relação vem sendo abalada devido às obras de requalificação da Beira-Mar. A equipe da Eco Nordeste conversou com frequentadores e especialistas sobre como essas intervenções têm interferido na ocupação desse que é o principal cartão-postal de Fortaleza.
Entre as ações do projeto realizado pela Prefeitura, está a engorda do aterro já existente, na Praia de Iracema, e a criação de um novo aterro entre as avenidas Rui Barbosa e Desembargador Moreira, avançando 80 metros mar adentro. Juntos, os trechos somam dois quilômetros de extensão. Após a conclusão dessa etapa, em novembro de 2020, frequentadores relatam que o banho na região ficou mais perigoso, sobretudo pelo desnivelamento abrupto na costa e pelas ondas mais intensas.
Princípios de afogamentos têm sido mais frequentes, a exemplo do que passou a estudante Rafaele Braga, 19, em 2020. Ela relata que, após entrar no mar acompanhada de duas amigas, mesmo com a água no nível da cintura, foram surpreendidas por uma corrente que as fizeram perder contato com o solo e afundar sob fortes ondas. “Tudo aconteceu de uma forma inesperada. De uma hora para a outra a gente não conseguia nadar a ponto de voltar para a areia. Graças à ajuda de quem estava por perto e dos guarda-vidas conseguimos nos salvar”, conta a jovem, que sempre frequentou a região e agora evita a orla da Praia de Iracema para o banho.
Dinâmica costeira
Não só a engorda da faixa de areia como também a construção de novos espigões são soluções de engenharia bastante conhecidas para evitar processos erosivos ao longo das áreas litorâneas. Entretanto, são tipos de intervenções que inevitavelmente tendem a causar impactos ambientais, como avalia Jeovah Meireles, professor do Departamento de Geografia e pesquisador dos programas de Doutorado em Geografia e em Desenvolvimento e Meio Ambiente da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Além dos fatores oceanográficos e atmosféricos, um dos motivos para o aumento da declividade e da força das ondas nessas intervenções está relacionado ao tipo de sedimento arenoso utilizado nas obras. No caso da Praia de Iracema, explica o pesquisador, foram remanejadas areias proveniente de dunas, cuja granulação é mais grosseira se comparada aos sedimentos que naturalmente se depositam vindos dos rios e das marés.
“Quanto mais grosseiros forem os sedimentos, mais inclinado será o perfil de praia. Além disso, as variações das marés e das ondas derivadas da ação dos sedimentos e do ângulo que as ondas batem na faixa de praia são associadas à formação de cristas e cavas na zona anti-praia, o que altera o ângulo de ataque das ondas, formando fortes correntes de retorno que podem arrastar os banhistas para dentro do mar”, alerta Jeovah.
Responsável pelo diagnóstico que complementou o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) da obra a pedido do Ministério Público Federal (MPF), Fábio Perdigão, coordenador do Laboratório de Gestão Integrada das Zonas Costeiras da Universidade Estadual do Ceará (Uece), reconhece que já era esperado haver diferença de altura considerável entre o nível atual do aterro e o antigo nível da praia, após a conclusão da intervenção, tendo em vista que esse é um resultado comum em aterramentos.
Por esse motivo, o pesquisador indicou à Prefeitura que era necessário reforçar a equipe de salvamento aquático e espalhar placas de sinalização para alertar a população, uma vez que, em decorrência do desnível e da maior profundidade, as ondas chegam com alto potencial energético à faixa de areia, representando riscos aos banhistas.
O que esperar
Essa situação tende a melhorar com o passar do tempo, aponta Perdigão: “Espera-se que o próprio trabalho das ondas e a variação sazonal após o primeiro e o segundo ano das obras amenizem esse desnivelamento, retirando a areia de cima e levando para baixo, fazendo com que o perfil de praia se torne mais suave naturalmente, muito semelhante ao que era antes na obra. A partir daí, a praia irá assumir sua feição definitiva, já sendo possível observar uma pequena suavização”.
Já para Jeovah Meireles, o perfil de praia da área do aterro é condizente com as condições ambientais e as intervenções ali realizadas. Portanto, não é possível afirmar que ocorrerão acomodações significativas pela dinâmica natural a ponto de reconfigurar o nivelamento da praia e a energia das ondas que atingem a faixa de areia. “À medida que as ondas passam a quebrar apenas quando se aproximam da praia, devido à topografia elevada artificialmente, ocorre o desmoronamento da areia, conservando aquela declividade e formando uma parede bem mais elevada devido à erosão”, salienta.
Os pesquisadores concordam que a obra deve ser constantemente monitorada. Uma vez concluída, é fundamental que toda a região siga passando por rigorosos estudos técnicos nos próximos anos, a fim de garantir projeções eficazes sobre possíveis impactos ambientais para nortear ações de conservação da infraestrutura. “Os espigões da Praia da Caponga, por exemplo, já foram reconstruídos diversas vezes, uma vez que as rochas ficam constantemente submersas pela areia. Por isso a importância de um orçamento anual para a manutenção e supervisão dessas intervenções, o que é sempre precário em todo o nosso litoral e sobretudo na cidade de Fortaleza”, lembra Jeovah.
Atendendo às recomendações do MPF, Fábio Perdigão fez o acompanhamento da obra para avaliar os impactos após o primeiro ano da conclusão. Os últimos levantamentos foram realizados em novembro de 2020 e entregues à Prefeitura em dezembro. “Agora é necessário que se continue monitorando os resultados da obra por pelo menos mais dois anos, principalmente sobre a configuração do perfil de praia para seguir alertando os banhistas sobre a inclinação da orla”, aconselha o pesquisador.
O que diz a Prefeitura
A Eco Nordeste entrou em contato com a Secretaria Municipal da Infraestrutura (Seinf) para questionar se o desnivelamento abrupto na costa foi uma consequência prevista no projeto de requalificação e sobre como é feito o monitoramento dessa situação, evitando acidentes com banhistas. A Seinf orientou que as respostas fossem obtidas com a Guarda Municipal de Fortaleza. Em nota, a Guarda afirmou: “A Inspetoria de Salvamento Aquático trabalha de forma preventiva, orientando os banhistas para desfrutarem de um banho de mar seguro e em salvamentos, em caso de ocorrência de afogamentos. Não temos propriedade para falar a respeito de questões técnicas e de infraestrutura de obras”.
A Guarda Municipal também informou a quantidade de resgates feitos pelas equipes da Inspetoria de Salvamento Aquático nos últimos anos. Foram realizados 213 resgates em 2019 e 108 em 2020. Não foram registrados afogamentos fatais. Cabe ressaltar que essa redução em 2020 é influenciada pelo contexto de pandemia e isolamento social. Segundo a Guarda, são três guardas por posto, os quais podem ser acionados todos os dias, das 8h às 17h. As equipes estão distribuídas em sete pontos da orla: na Barra do Ceará, Carapebas, Ponta Mar, Luzeiros, Praia de Iracema e Náutico, com distância média de 800 metros entre cada unidade de salvamento.
A equipe da Eco Nordeste visitou o local no dia 14 de janeiro de 2021 e constatou que, ao longo da faixa de praia, entre a Rua João Cordeiro e a Avenida Rui Barbosa, um trecho de aproximadamente 850 metros, foram fixadas quatro placas de alerta aos banhistas sobre a profundidade da praia, além da disponibilização de uma cabine para o guarda-vidas. Para o especialista Jeovah Meireles, essa estrutura não é suficiente. “Faltam placas sinalizadoras, não há zoneamento seguro específico para os banhistas, tampouco uma presença contínua do poder público com os salva-vidas, o que gera impactos que podem causar afogamentos”.
Sobre o andamento das obras de requalificação da Beira-Mar e os benefícios para a população, em resposta, a Seinf enviou matéria do dia 11 de janeiro de 2021, publicada no site da Prefeitura de Fortaleza. Segundo o Município, 90% da obra já foi executada e a previsão de conclusão é em junho de 2021. A reforma prevê ampliação do calçadão, aumento de vagas de estacionamento, quiosques de alimentação e bebidas, entre outros. Nas informações oficiais da Prefeitura, como benefícios dessas intervenções, destacam-se a ampliação das opções de lazer e esporte bem como o fortalecimento do turismo.
Exclusão dos moradores tradicionais
As obras de aterramento também mexem com a vida das pessoas e com os espaços da cidade. Nativo do bairro Mucuripe e assíduo na orla da Capital, o especialista em Gestão Pública Diêgo di Paula criou o Acervo Mucuripe como projeto de história e memória comunitária dos bairros e comunidades do Grande Mucuripe. Diêgo tem estudado os programas de aterramento já realizados em Fortaleza e opina que esses processos desconsideram a opinião dos moradores do entorno. “A narrativa que se coloca para nós é a da nova Beira-Mar, do novo que está chegando. Mas é uma narrativa de exclusão, até porque nunca nos colocaram dentro desse projeto”, desabafa.
Segundo ele, a orla sempre foi do nativo, do pescador, da marisqueira, da rendeira, e de todas as pessoas que dependem do mar. Assim, ele acredita que termos como requalificação, reurbanização e reordenamento trazem, no conteúdo, problemas com relação às comunidades. “O impacto para esse processo de reforma de Beira-Mar é a exclusão. A meu ver, ele nunca vai ser positivo, tanto do ponto de vista ambiental, quanto do ponto de vista humano”, comenta. Para Diêgo, a sensação é que muitos dos nativos não aguentam ver o espaço e a história de vida deles serem aterrados.
‘Da avenida não se vê mais o mar’
Já o arquiteto e urbanista Jayme Leitão acredita que a decisão de fazer uma obra na Beira-Mar e alargar a faixa de praia foi acertada. No entanto, ele considera que as decisões posteriores foram equivocadas. “Houve aqui um engano completo sobre a formatação do programa dessa reforma. O alargamento da faixa de praia era desejável, mas a condição mais importante e determinante do projeto deveria ser a busca da não ocupação da praia com construções, de modo a não prejudicar a visada do mar pelo usuário”, avalia.
Conforme o arquiteto, a ocupação da faixa de praia com construções prejudicou a convivência com o mar. “Antigamente tínhamos o hábito, quando saíamos à noite de carro, de encerrar dando uma volta pela Beira-Mar, para apreciar a tranquilidade da orla: isso simplesmente acabou. Da avenida não se vê mais o mar, e do mar não se vê a avenida”, lamenta.
Assim, o especialista considera que a medida mais importante seria demolir as construções destinadas aos quiosques antes do início das atividades comerciais. Outra solução seria alargar a avenida para o tráfego de veículos e projetar um estacionamento no subsolo em toda a extensão, proibindo o estacionamento ao nível da via, com recursos viabilizados por meio de uma Parceria Público-Privada. “O resultado seria que, ao nível da avenida, todos os transeuntes, inclusive motoristas, ganhariam o usufruto da vista de nossa praia”, analisa.
Para a arquiteta e urbanista Simone Oliveira, são pontos positivos das intervenções a divisão em ciclovias, pistas de caminhada e vias para automóveis; o acréscimo de espaços para convivência, lazer e prática de esportes; e a fiação embutida que melhora a qualidade estética da orla. Porém, como aspectos negativos, cita os impactos ambientais causados pela engorda, o novo espaço inadequado para os trabalhadores da feira de artesanato desenvolverem as atividades; e a distância entre as pessoas e o mar. “Não se vê mais o mar sem caminhar muito para isso. O aterramento resultou em pontos da praia com barrancos altos que dificultam o acesso aos banhistas”, opina.
Simone também salienta que o planejamento urbano é uma questão séria que precisa ser avaliada a longo prazo, sobretudo em áreas que passam por requalificação. “A proximidade excessiva dos prédios à orla impede que haja área disponível para espaços públicos junto ao mar. Uma legislação que permitiu a construção desses edifícios gera o argumento de que é preciso gastar muito dinheiro (público) e impactar gravemente o meio ambiente para criar novos terrenos, uma vez que as áreas já existentes atenderam a interesses privados. Paradoxalmente, esses novos espaços públicos continuam atendendo a interesses privados porque valorizam empreendimentos imobiliários próximos em uma área que já dispõe da melhor infraestrutura da cidade”, analisa.
Por isso, a profissional pondera que o local já tem intervenções o suficiente. “Tendo em vista que a Beira-Mar já é há muitos anos alvo de reformas constantes, o mais coerente seria que fossem priorizadas outras áreas para destinar novas propostas de espaços públicos”, conclui.
Consequências ambientais
A Eco Nordeste tem acompanhado a discussão sobre os impactos ambientais causados pelas obras da Beira-Mar. Confira matérias e artigo já publicados sobre o assunto:
Novo aterro da Beira Mar pode causar riscos ambientais, alerta Labomar
Obras do aterro da Beira-Mar de Fortaleza são questionadas por ambientalistas
Ativistas organizam manifesto contra o novo aterro da Praia de Iracema
Aterro não é solução para os problemas litorâneos de Fortaleza