Congo, no Cariri paraibano | Foto: manodecarvalho
Pesquisas na região mais árida do Brasil, o Cariri paraibano, alimentam bancos de dados internacionais e farão parte de estudo global sobre microclima.
- Informações são necessárias para estudo das mudanças climáticas e restauração da Caatinga.
- Paraíba, com 27,7%, tem a segunda maior área estadual proporcional em desertificação na Caatinga.
- Como vive a população no Cariri? Que ameaças as pessoas, a vegetação e os animais enfrentarão em um cenário de aquecimento global?
Por Márcia Dementshuk
Colaboradora
Há um consenso superior a 99% na literatura científica atual em apontar a origem humana das mudanças climáticas desde meados do século XX, segundo estudo publicado em 19 de outubro de 2021, pelo Institute of Physics (IOP Science). Quando se fala em “literatura científica” significa publicações de pesquisas submetidas à revisão por outros cientistas e aceitas pela comunidade. Ou seja, os especialistas não debatem mais se as ações humanas contribuem ou não para o aquecimento global. A maioria expressiva concorda que sim.
Evento de dimensões globais, na Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática de 2021 (COP26), representantes de 200 nações estarão reunidos, entre 31 de outubro e 12 de novembro, em Glasgow, na Escócia, para discutir sobre como as pessoas irão, em cada território, reduzir as emissões de gases que aumentam o efeito estufa. Sim, pois é consenso que o problema é causado pela influência humana.
A Crise Climática é um tema que deverá entrar com mais intensidade na pauta dos veículos de notícias e redes sociais nas próximas semanas, mas não poderia jamais sair dos trending topics. As consequências do aumento da temperatura serão sofridas de formas diferentes em cada local, causando mais problemas para pessoas pobres que nem têm responsabilidade pelas emissões de gases.
É sobre tudo isso que trata a reportagem “Do ka’ kiriri à ka’pûer: O lugar silencioso que foi mata branca e hoje é capoeira”. A narrativa conduz para o interior da Caatinga, no Cariri paraibano, onde o Brasil é mais árido, a população convive com grandes desafios e qualquer desajuste nos termômetros para cima significa menos água, mais solo infértil e menores possibilidades de sobrevivência com dignidade.
A reportagem foi produzida a partir de uma expedição científica pela região, coordenada pelo professor doutor Bartolomeu Israel de Souza, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Um grupo de pesquisadores monitora as condições microclimáticas na região, uma contribuição relevante para estudos de desertificação do solo, recuperação da vegetação e criação de modelos ambientais para a região, considerando as mudanças climáticas. Por meio de pessoas como Selminho, Vinícius ou José Canário, esse é um convite para conhecer melhor um pedaço do Brasil e entender porquê falar sobre sustentabilidade é tão importante.
‘Lugar silencioso’
No “Lugar Silencioso” cabras e bodes parecem chorar. O filhote, comendo a folhinha do arbusto, chama pela mãe, bééé. No criadouro de aves, vinte mil pintos piando ao mesmo tempo é ensurdecedor. Em oficinas improvisadas nas salas das residências, as máquinas de costura também são ouvidas de longe, emendando tecidos para fazer peças que serão fornecidas no polo de confecções em Santa Cruz do Capibaribe (PE). A enxada mexe a terra para receber a palma forrageira; investir na agricultura é um risco grande, a menos que se tenha uma várzea no terreno, de onde se pode retirar água. No lugar não mais silencioso, pelas rodovias rangem motores a diesel de caminhões impulsionam cargas de água, madeira ou bentonita.
Em cada um dos 29 municípios do Cariri paraibano, na cidade ou no sítio, a população defende seu sustento. O caririzeiro dá lições diárias de sobrevivência. Convivência com a seca? Muito além disso, viver no lugar mais árido do Brasil é um desafio constante desde a época em que agrupamentos de índios cariris se deslocavam pelos lajedos, chamando a região por “Mato, (Lugar) Silencioso”, uma variação do tupi, ka’a = mato, kiri’ri = silencioso (no sentido de desabitado).
A doutora Catarina Buriti, pesquisadora do Instituto Nacional do Semiárido (Insa), explica que a ocupação humana no Cariri, especialmente a partir do início do século XIX, teve ligação forte com a agricultura e pecuária – plantações de algodão, criação de caprinos – com técnicas que se perpetuam até hoje e que provocam desgaste do solo. “Consequentemente, a erosão vem e o solo não se recupera mais”.
Antigamente, as fazendas eram grandes e, excluindo o quadrado sacrificado para a agricultura, sobravam mais terras de mata seca preservada. Passadas algumas gerações, as fazendas se dividem em sítios, os sítios em módulos, e as famílias de agricultores plantam e criam animais nos espaços à disposição, empregando o manejo que aprenderam com os antepassados em lugar de técnicas sustentáveis atualizadas.
O estrago no solo aumenta e, em 2019, os satélites usados pelo Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis), na Universidade Federal de Alagoas (Ufal), registraram na Paraíba uma área total degradada de 27,7%, em relação à área total do Estado, sem contabilizar onde estão construídas as cidades. O alerta é para os 7,1% das áreas que estão em estágio “muito forte”, na Paraíba, concentradas em um corredor que vai do Cariri, ao sul, até o Seridó, ao norte do Estado.
Outro mapeamento, realizado pelo MapBiomas, aponta 280 mil hectares de áreas suscetíveis à desertificação em 45 municípios da Paraíba, entre 1985 e 2020. Nesse mesmo período, a Caatinga perdeu 10% da sua cobertura vegetal e ganhou pressão das atividades humanas: aumento de 1.456% da área de agricultura; crescimento de 145% da área de infraestrutura urbana e aumento de 48% na área de pastagem no bioma.
“Esses núcleos em desertificação servem como um exemplo triste sobre o futuro das localidades que ainda têm alguma chance de recuperação, mas continuam sendo exploradas sem manejo sustentável”, completa Catarina, ao ressaltar a biodiversidade da Caatinga, também do tupi, ka’a = mata, tinga= branca. Na delimitação do Semiárido, 13% estão em estágio avançado de desertificação. Alagoas é o Estado mais atingido, com 32% do território degradados em algum nível, em relação à área do Estado.
Ou seja, nessa perspectiva, Catarina Buriti e outros pesquisadores concordam que a pressão humana tem grande participação no processo de desertificação, o que se soma à falta de água nos períodos de seca e outros fatores.
‘Catimbó do Carcará’
Selminho, Antônio Francelmo, voltou do Rio de Janeiro há pouco mais de um ano. Trabalhava como porteiro em um condomínio. Ele é natural de Cabaceiras, considerado o município mais árido do Cariri paraibano. Depois de casado, mudou-se com a esposa para o Sudeste, onde pensava ser melhor para viver. Mas seu sogro faleceu e deixou um sítio em Caraúbas, próximo de Cabaceiras, o Sítio Salgadinho. A vantagem é que no sítio passa o leito de um riacho, afluente do Rio Paraíba, que nem sempre tem água, mas a vegetação mantém a várzea úmida, com água no subsolo. Uma raridade na localidade.
A vantagem de ter um poço com água é irrigar uma pequena plantação de algodão, hortaliças, árvores frutíferas, palma forrageira, macaxeira, jerimum, uma variedade de alimentos que Selminho vende para os vizinhos.
“Semana passada fiz um curso sobre o plantio da palma consorciada. Vou plantar a palma com algodão. Fiz curso de cortes especiais, porque a gente mata o animal e não sabe dividir as partes. E também um de silagem, para se preparar para o período da seca. Aprendi como triturar a forragem e fazer o processo de fermentação para alimentar os animais; antes se usava lona, agora tem uns sacos térmicos, próprios”, conta o agricultor, numa menção a técnicas mais eficientes dos que as usadas pelo seu sogro.
“No Rio de Janeiro, eu trabalhava num prédio ao lado de onde morava o general Mourão (Hamilton, o vice-presidente). No meu bloco, morava o médico da Seleção Brasileira de futebol, doutor Mauro Pompeu. Ele conversava muito comigo e dizia: ‘Antônio, não vou negar a você que eu tenho dinheiro, mas não tenho tranquilidade’. E eu aqui, – retomou Selminho – com essas terras? Amo esse lugar.”
Naquele entardecer, no Sítio Salgadinho, a lua despontou redonda, dourada, no horizonte. A primavera estava “a dois dias de distância” e o pior período de seca do ano começaria no Semiárido.
A manhã seguinte reservou uma surpresa maior. A plenitude da mata branca, galhos sem folhas vistos da rodovia, estava guardada pela lua cheia quando o sol nasceu. Na maldição do “Feitiço de Áquila”, lobo e águia se reconheceriam em formas humanas. “O nome do filme na Roliúde Nordestina de Cabaceiras seria ‘Catimbó do Carcará’”, comenta o professor doutor Bartolomeu Israel de Souza, caririzeiro, do Departamento de Geociências da UFPB e coordenador de um conjunto de pesquisas nessa região.
Catimbó é uma referência popular para feitiço, magia, mas a palavra é antiga e de origem tupi, Ka’a = mato, como em “caatinga”; e timbó tem o sentido de vapor, fumaça, ou “torpor”. Remete às atividades cultuais africanas e indígenas. O carcará é o típico falcão do Nordeste.
Em cenário da vida real, outra ave é o produto da criação de mais um empreendedor caririzeiro, no município de Ouro Velho, divisa com Pernambuco. Vinícius Fernandes trabalha no aviário que construiu com o pai há 24 anos. Seu pai faleceu, mas deixou como herança o pioneirismo desse negócio na cidade.
Vinícius trabalha em parceria com o produtor de matriz e com o abatedouro. Toda a semana, 100 mil ovos são incubados até o pinto nascer. A genética é aprimorada constantemente. Vinícius recebe 20 mil aves com até cinco dias de nascimento e trata do crescimento, usando técnicas e produtos atualizados. Em 45 dias as aves estão prontas para o abatedouro. A cadeia produtiva de criação de aves movimenta a economia de cidades no Cariri e em outra região da Paraíba. No último censo feito por encomenda dos produtores, Sumé, Ouro Velho e Monteiro, todos no Cariri, alojam mais de 500 mil aves.
“Essa é a melhor região do Brasil para criar frango, porque é seco. O calor é necessário nos primeiros 30 dias de vida dos pintos nas últimas semanas ventiladores expulsam o calor. E a temperatura alta evita a criação de uma bactéria comum nesse tipo de criação. Por isso, não usamos antibióticos nem hormônios aqui. Em 45 dias saem 50 toneladas de carne daqui”, conta Vinícius.
Os produtores reclamam da dificuldade para obter crédito e da exorbitância paga em impostos. A empresa de Vinícius paga 35 mil reais no total de impostos por mês. “Eu tenho água aqui no sítio e capacidade para produzir 200 mil frangos por mês, mas não consigo crédito para crescer”. O sítio de Vinícius também é próximo de fonte de água, insumo essencial para a maioria das atividades econômicas.
“Uma coisa tão simples, um poço de água, quando não tem, não tem vida com dignidade. A partir do ano 2000, as políticas para o gerenciamento dos recursos hídricos começaram a funcionar por aqui, as cisternas, a perfuração de poços”, explica Paulo Jorge Fernandes Freitas, irmão de Vinícius, secretário municipal da Agricultura.
Esses exemplos ocorrem em sítios onde tem água que viabiliza a produção. Mas a maioria da população não dispõe do recurso precioso. Por isso, a situação mais corriqueira é ver as famílias morando na zona rural, tirando o sustento de um trabalho executado na cidade, para terceiros, como os filhos do agricultor José Canário Neto, em Coxixola. Ele está aposentado, depois de trabalhar no Rio de Janeiro, em Recife e na prefeitura de Coxixola, último emprego.
Os filhos, com suas famílias, que moram em casas próximas, seguem a mesma “trajetória profissional”. Hoje eles criam poucos animais e plantam palma forrageira para alimentá-los. José Canário mostrou o tronco grosso de um mandacaru centenário, roído pelas cabras durante a seca em 2013. Sem alimento, os animais lutam contra os espinhos e encontram o conforto do vegetal amargo, mas ainda úmido, do cacto.
A alguns quilômetros dali, no distrito de Pindurão, entre Camalaú e Congo, as mulheres entram pela noite costurando peças de roupas encomendadas por empresas do polo de confecção, em Santa Cruz do Capibaribe (PE). A produção de renda renascença também é famosa nesses municípios, especialmente no Congo.
Mas o que chama a atenção nas rodovias do Cariri paraibano é ver os caminhões carregados de troncos. Nada perto do tamanho das toras amazônicas – seriam galhos, comparados às tais – mas é parte da vegetação catingueira destinada a queimar em fornos de cerâmica ou gesso. Nessa região, para o lado de Pernambuco, está o polo gesseiro do Araripe, o maior do País. “Há madeira certificada, como da algaroba, permitida para derrubadas. Mas o que vemos, muitas vezes, nesses caminhões, são os troncos de algaroba por fora, com troncos de árvores nativas, proibidas para extração”, explica o professor Bartolomeu de Souza.
Cariri paraibano integra rede mundial
de monitoramento microclimático
O panorama da desertificação no Cariri paraibano pode ficar ainda pior, de acordo com a avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) de 2021 para o nordeste brasileiro. As mudanças no clima provocarão aumento da temperatura do ar e do nível de aridez; as chuvas serão mais concentradas e mais intensas.
Como será conviver no Cariri paraibano nessas condições, onde mais de 114 mil pessoas estarão sujeitas aos impactos (IBGE)? “Depende das decisões que tomarmos hoje, como sociedade”, responde o professor Bartolomeu de Souza, que coordena um conjunto de pesquisas na região.
“Uma coisa é certa: o que já perdemos da Caatinga é resultado da forma como essas terras foram usadas. Estamos estudando a possibilidade de as mudanças climáticas terem, de alguma forma, influenciado na agressividade do último período de seca, cujos piores anos foram por volta de 2012 até 2017. Essa é considerada pelos especialistas como a pior seca do século. Mas buscamos ainda por evidências científicas da decorrência do aquecimento global”, explica.
Para o professor, é possível recuperar áreas em algum nível de degradação, mas é preciso conhecimento e informações, o que se obtém por meio de pesquisas. Hoje em dia, os recursos tecnológicos permitem avanços mais ousados a partir dos estudos de pesquisadores clássicos na área da Geografia que estiveram no Nordeste brasileiro nas décadas de 1950 a 1970, como Aziz Ab’Saber, Vasconcelos Sobrinho, Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro, ou Edmon Nimer.
A partir de um projeto para estudos do microclima no Cariri paraibano, enviado para o Ministério do Meio Ambiente em 2014, o professor Bartolomeu, com a equipe de pesquisadores, montou uma rede de estações meteorológicas convencionais em 12 localidades do Cariri, com características distintas.
Os sítios de Selminho, de Vinícius e José Canário alojam estações. Os aparelhos coletam dados de hora em hora sobre a temperatura do ar a 1,5m de altura, do solo a 10 cm de profundidade, velocidade e direção do vento, quantidade de chuva, umidade e ponto de orvalho. Começaram a coletar dados em 2017: desde então, geram 525.600 variáveis por ano.
Em 2020, uma parceria com a rede de pesquisa internacional SoilTemp, da Antwerp University, na Bélgica, permitiu a instalação de mais cinco estações de geotermômetros, um aparelhinho que se passa por um arbusto pequeno, uma planta herbácea, e absorve as condições do clima a 10 cm de altura do solo, e da temperatura do solo a 10 cm de profundidade, igual ao que uma plantinha dessas absorveria. Armazenam dados a cada 15 minutos.
Neste momento, os trabalhos científicos no Cariri adquirem caráter internacional, ao integrar a rede SoilTemp, de pesquisas microclimáticas, da qual participam estudiosos em mais de 60 países. Todos os dados obtidos no Cariri, desde 2017, são enviados para o banco de dados internacional.
“São esses estudos microclimáticos que permitirão uma previsão de como as diversas regiões no mundo sofrerão os impactos das mudanças climáticas, inclusive o Cariri paraibano. Também trarão informações para fazer ações de reflorestamento acertadas. O relatório do IPCC traz um estudo com base em dados amplos, com imagens de satélites com resolução de 30 metros, importantes para uma visão global e temporal. Mas em cada localidade há elementos específicos que vão desde o tipo de solo, vegetação, quantidade de chuva, até a maneira como o solo foi usado pelas pessoas”, explica Bartolomeu.
É difícil recuperar áreas degradadas na Caatinga, é caro, trabalhoso e tem pouca água à disposição. Os esforços para conhecer as condições do clima e do solo são úteis para reflorestar a mata. Entender o que a mudinha precisará para resistir às intempéries do clima ajudará em seu crescimento.
Assim, os dados colhidos nas estações meteorológicas são imprescindíveis para o projeto de doutorado desenvolvido pelo físico Renan Aversari Câmara, pela UFPB, orientado pelo professor Bartolomeu. Renan está construindo um dispersor de sementes, um “eco foguete” que lançará as sementes em áreas do Cariri.
A literatura informa que a temperatura ideal do solo para germinar as sementes na Caatinga é até o máximo de 30º C. Com o conhecimento desta temperatura e outras informações pelos dados das estações e geotermômetros, Renan pode escolher os lugares onde as sementes terão mais chance de brotar. Elas são preparadas especialmente para resistirem até chover e germinarem. Os testes em campo com as sementes preparadas já iniciaram.
Temperaturas do solo variam em até 5ºC
entre áreas desertificadas e preservadas
Os locais onde as estações meteorológicas foram instaladas revelam os contrastes do bioma. Algumas estão em áreas onde só brotam o velame e a malva-branca, únicos arbustos que se desenvolvem no solo castigado. Nada mais brota. Essas são as características das áreas em desertificação.
“Quando chove, esse mato fica verde e dá a impressão de ter vegetação. Mas outras espécies têm grandes dificuldades de brotar nesses solos”, revela professor Bartolomeu. Virou “Ka’a pûer”, capoeira, “mato que foi”. Importante: área desertificada não é igual a deserto. Ele alerta que o deserto é característica de um local onde chove em média 250 mm por ano. No Semiárido, a média de chuvas é maior, mesmo no Cariri paraibano. Apenas em alguns municípios a escassez alcança esses níveis, em secas mais prolongadas. O problema da desertificação do solo é quando ele perde os nutrientes e não é mais fértil.
Algumas estações estão em meio a árvores que alcançam 5 metros de altura. É o caso do geotermômetro na APA das Onças, em uma das encostas da Serra do Paulo, município de São João do Tigre. Em meio à Caatinga, uma ilha de Campos Rupestres onde se encontram inclusive espécies vegetais da Mata Atlântica. As diferenças entre as temperaturas do solo a 10 centímetros de profundidade de uma estação para outra chegam a 5ºC.
“Essa diversidade é desconhecida pela maioria das pessoas. Há muitas ilhas como esta, especialmente nas encostas dos lajedos, onde a água da chuva escorre e se acumula. São refúgios para a vida animal”, explica o professor. E ainda demostram resquícios históricos de quando a região era coberta por uma vegetação típica de Mata Atlântica. Essas presenças são prova disso.
Olhando para as árvores altas e frondosas da Serra do Paulo, o professor doutor Jonas de Souza, da UFPB, derruba o mito que diz que o tamanho e a densidade da vegetação da Caatinga estão relacionados com a temperatura: “pensava-se que em lugares mais frios e com mais chuva se teria uma vegetação mais alta. Mas hoje, tendo mais informações em mãos a partir das pesquisas, conseguimos ver que o porte da Caatinga está mais relacionado com o nível de degradação do que com a parte climática. Em áreas altas tem mais vegetação porque são de difícil acesso, por isso são mais conservadas, não foram usadas para pastagem de animais ou plantações. Em Cabaceiras, onde a altitude é inferior e chove menos, há árvores de grande porte, preservadas.”
Na fazenda Pitombas, que antigamente integrava a grande fazenda Capitão Mor, em São Sebastião do Umbuzeiro, as terras foram usadas, em meados do século passado, para plantações do algodão. Na casa grande da propriedade o caseiro mostra uma fotografia antiga de Sebastião Salgado feita na fazenda, retratando a colheita. Atualmente, os herdeiros mantém criação de ovinos e caprinos com técnicas sustentáveis e matrizes com DNA fortalecidos para resistir ao ambiente. A vegetação se recupera e a serapilheira cobre o solo onde está a instalada uma das estações de monitoramento.
Pesquisas feitas no Rio Grande do Norte, coordenadas pelo professor doutor Bergson Bezerra, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), publicadas na revista Scientific Reports, e na Paraíba, em tese apresentada pela doutoranda Elloise Rachel, do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFPB, comprovaram que a mata seca preservada é um sumidouro de carbono mais eficiente do que as florestas úmidas. Por outro lado, áreas desertificadas liberam grandes quantidades de CO2, o que contribui para aumentar o efeito estufa. “Torna-se um ciclo vicioso: a degradação libera carbono, que acelera aquecimento global, o que resulta em mais degradação. Um problema decorrente das atividades humanas somadas às mudanças climáticas”, alega Bergson, em entrevista sobre a publicação do artigo.
Recuperação da Caatinga exige
mais recursos e conhecimento
Além das pesquisas sobre o microclima, outros estudos são realizados na região do Cariri por especialistas em peixes, geomorfologia de rios, vegetação… Em nível nacional, esse conjunto de projetos científicos, ligados às universidades e aos institutos de pesquisas, em andamento no Cariri, faz parte do Projeto Rio Paraíba Integrado (Ripa), financiado pela Fundação de Apoio à Pesquisa da Paraíba (Fapesq-PB). O Ripa está agregado ao Programa de Pesquisas Ecológicas de Longa Duração (Peld), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que reúne 43 locais (sítios) de pesquisas nos seis biomas e no sistema costeiro-marinho, do Brasil.
O Peld-Ripa olha para a Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba, um recurso hídrico importante para o desenvolvimento socioeconômico do Estado, cujas principais nascentes estão nas serras do Cariri paraibano. E as estações meteorológicas fornecem dados únicos em várias unidades de conservação do Alto Curso da Bacia do Rio Paraíba, uma zona de total interesse público, onde está a APA do Cariri, APA das Onças, a maior UC do Estado, a Fazenda das Almas, que é uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), além de outros sítios.
“Quando se fala em ecossistema, se considera o andamento dessa cadeia ecológica. Sem vegetação, entra-se em processo de desertificação, secam-se as nascentes, os rios e as consequências recaem sobre a população, dependente da água para o roçado e os poucos animais que cria para se alimentar”, analisa o professor Bartolomeu de Souza.
A Matemática da Modelagem Ambiental
para escrever o Cariri paraibano
Em 1623, Galileu Galilei disse que “o universo (…) está escrito em linguagem matemática, e as letras são triângulos, círculos e outras figuras geométricas, sem o que é humanamente impossível compreender uma única palavra”. A Modelagem Ambiental é uma representação matemática do ambiente.
Essa ferramenta matemática será usada nas pesquisas no Cariri paraibano, de Lukas Barbosa de Melo, mestrando no Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (Prodema)/UFPB; e Lucas Nascimento da Silva e Rivaildo Ribeiro de Souza Filho, graduandos do curso de Engenharia Ambiental da UFPB e membros do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Cientifica (Pibic), com a coordenação do professor Bartolomeu de Souza.
Os dados gerenciados pelo projeto de pesquisa em microclima no Cariri paraibano irão compor fórmulas matemáticas para criar modelos ambientais que trarão respostas sobre o comportamento da vegetação, do solo, da temperatura em um cenário de mudanças climáticas. São 12 estações meteorológicas que coletam dados diariamente, a cada hora, desde 2017 e cinco geotermômetros a cada 15 minutos, desde 2020.
Sabendo que estas pesquisas estão em fase inicial, solicitamos um exemplo do que poderá ser investigado por meio da modelagem ambiental: “Num cenário de aumento de 1,5º C na temperatura do ar, como será o comportamento da temperatura do solo, da umidade do ar e do ponto de orvalho?”
A proposta foi pegar como base os dados referentes a um dia de coleta de duas estações (uma em local degradado e outra em local com mais vegetação) e simular o aumento da temperatura do ar. De cara, os pesquisadores resistiram a esse pedido: “Não é tão simples. São muitos fatores envolvidos e estaremos distantes de uma resposta científica mais acertada.”
Deixando isso bem claro, chegamos a um exemplo que serve para mostrar como a pesquisa será conduzida e a quantidade de cálculos empregados nessa tarefa.
No dia 20 de setembro de 2021, os pesquisadores coletaram em campo os dados da temperatura do ar, a umidade do ar, o ponto de orvalho e a temperatura do solo (10 cm de profundidade), das estações em Monteiro (área degradada) e São Sebastião do Umbuzeiro (área preservada). Para esse exemplo, Lukas trabalhou com 96 variáveis iniciais, geradas em 24 horas, nas duas estações.
Para fazer as projeções, Lukas aplicou fórmulas diferentes em cada categoria. Assim, ele conseguiu saber como as outras variáveis se comportariam. Usando técnica de modelagem, o pesquisador gerou um gráfico para visualizar o resultado em cada hora do dia. As fórmulas trazem outra informação importante: o coeficiente de determinação, o “R²”.
O R² é como um “aviso”. Diz se os dados que Lukas tem são suficientes para gerar um resultado mais preciso, ou não. Quanto mais próximo de “1” for o R², mais Lukas acertou nas correlações para encontrar um resultado mais acertado.
Com o aumento de 1,5º C na temperatura do ar, a umidade do ar diminui em média 5 mm. Existem outros fatores que influenciam, mas no gráfico elaborado, o valor de R² ficou próximo de 1, o que significa que essa relação é o suficiente para entender como a umidade do ar vai alterar nesse cenário.
A relação entre a temperatura do ar e o ponto de orvalho é mais complexa, depende de outros fatores. O coeficiente de determinação, o R², em Monteiro, ficou em 0,3913, muito baixo. Precisa de outras variáveis para investigar. O mesmo se deu com relação às mudanças na temperatura do solo.
Inteligência artificial testará variáveis
É neste ponto que a pesquisa passará a utilizar técnicas de inteligência artificial. Um dos estágios é testar outras variáveis na fórmula para chegar a um R² (o coeficiente de determinação) aceitável, próximo de 1. As correlações com outros dados podem ser feitas de milhares de formas. Sem contar com a inteligência artificial seria impossível avançar.
Tendo um resultado prévio satisfatório do modelo, o pesquisador irá validar essa fórmula usando dados reais observados em campo, capturados nas estações de monitoramento. Comparando os resultados, será obtida a “acurácia” do modelo, ou seja, o grau de acerto que o modelo ambiental proposto Lukas terá. Inicia-se outro processo de investigação manipulando cenários futuros, usando esse modelo encontrado e validado com esses procedimentos.
Com esses dados será possível ter uma amostra bem próxima do real na região do Cariri paraibano, suprir a ausência de informações específicas desse local. O estudo permitirá compreender os impactos que as mudanças climáticas irão provocar no Cariri Paraibano e motivar a sociedade a antecipar o planejamento de ações para diminuir esses impactos de modo a preservar a vida animal, vegetal e humana.
E se der tudo errado? “É assim mesmo”, consola Lukas. “Tentamos outra técnica de inteligência artificial, formulamos outro modelo, até chegarmos a resultados aceitos pela comunidade científica”.
O valor “menos errado” será o “mais acertado”
O físico Renan Aversari Câmara ressalta que o problema da modelagem é que talvez nunca seja alcançada a complexidade das relações naturais. Para entender com precisão absoluta o que acontece em termos naturais, a cada grau de precisão que se avançar, tem que reduzir a escala.
Quando se estuda microclima, se faz cortes metodológicos para enquadrar o escopo de pesquisa. Nesse corte metodológico é onde reside o erro, pois é necessário relevar alguns fatores em escalas menores e maiores para chegar ao específico. Caso contrário não se dá conta de fazer um modelo específico e a ciência não avança.
Esse erro vai ser tolerado quando os cortes metodológicos não inferirem num erro tão grande quanto a escala de dados que o pesquisador pretende ter. Portanto, se a precisão dos dados que a pesquisa obtiver for superior ao erro estimado, o resultado é satisfatório. O “erro estimado” é a acurácia. É aceitar cientificamente as limitações humanas diante da complexidade da natureza.
“Na amplitude do universo, esses cortes são necessários e o fator instigante é quando se encontram outras pessoas trabalhando em outras escalas e que começam a perceber as mesmas coisas. Se os fenômenos vão se entrelaçando, significa que essas modelagens estão boas, prevendo fenômenos naturais”, instiga Renan. A contribuição da pesquisa feita no Cariri paraibano encaixa com uma pesquisa com outro escopo e vai se completando o mosaico global.