O Nordeste brasileiro tem a chance de dar um passo significativo na transformação do cenário de geração de energias renováveis no País, permeado por casos de impactos e injustiças socioambientais. O Estado de Pernambuco é o primeiro a elaborar uma legislação específica para o licenciamento ambiental de empreendimentos eólicos e solares, que deve ser lançada em outubro de 2024. A iniciativa teve como ponto de partida a criação de um Grupo de Trabalho (GT) para subsidiar a elaboração da proposta, instituído em novembro de 2023 por meio do Decreto Nº 55.863/23.
Sob coordenação da Secretaria de Meio Ambiente, Sustentabilidade e de Fernando de Noronha (Semas), o GT teve um prazo de seis meses para a realização das discussões. O último de cinco encontros aconteceu em maio e alguns dos principais pontos discutidos foram o distanciamento mínimo entre as torres eólicas e as edificações locais, a exigência de reuniões técnico-informativas com as comunidades e a definição do porte dos empreendimentos para os quais devem ser feitos estudos de impacto ambiental. A secretária Ana Luiza Ferreira lembra que, até hoje, nenhum empreendimento de energia solar em Pernambuco tem Estudo ou Relatório de Impacto Ambiental (EIA-RIMA), “mesmo com níveis altíssimos de supressão vegetal, acima de 1.500 hectares”.
“A governadora Raquel Lyra optou por provocar uma normativa específica para empreendimentos de energias renováveis porque eles estavam causando prejuízos significativos para diversos atores envolvidos. Precisamos regulamentar e garantir que isso seja feito de forma justa, que não vamos estar descarbonizando a qualquer custo, como o de aumentar a injustiça climática. Sem criar barreiras para os empreendimentos, mas tendo como pilar fundamental a proteção das comunidades locais e dos nossos biomas. Esse é o ponto de equilíbrio a ser encontrado na normativa”, declara Ferreira.
Apresentação do Salvaguardas Socioambientais para Energia Renovável, na Semas, em fevereiro de 2024 | Foto: Tarciso Augusto (GCom / Semas-PE)
O GT reuniu representantes de órgãos do Estado, do setor empresarial, Ministério Público, sindicatos, universidades e organizações da sociedade civil. Ideias divergentes estiveram em jogo, principalmente a respeito do distanciamento dos aerogeradores, que trazem impactos de ruído e de sombras às pessoas que vivem mais próximas a essas estruturas. Durante os cinco meses após o encerramento dos encontros, até o presente momento, o governo trabalhou na definição do texto final e agora aguarda agenda da governadora para fazer o lançamento.
Em janeiro de 2024, o Plano Nordeste Potência, iniciativa que reúne quatro organizações civis brasileiras, com a parceria do Inesc e o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS), lançou um documento, também pioneiro, com sugestões de mecanismos e medidas de proteção para reduzir os impactos socioambientais gerados pela expansão das energias renováveis no nordeste brasileiro.
Intitulado Salvaguardas Socioambientais para Energia Renovável, o relatório foi apresentado ao GT criado pela Semas-PE para regulamentar o licenciamento do setor. Entre as indicações, está a de estabelecer um recuo mínimo de dois quilômetros entre os aerogeradores e as residências e locais de trabalho das populações do entorno. É o mesmo que determina o Projeto de Lei Ordinária Nº 1605/2024, em tramitação na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe).
Por outro lado, a Associação Pernambucana de Energias Renováveis (Aperenováveis) apresentou à Semas, em março, uma nota técnica expondo o posicionamento do setor empresarial. No documento, pede a flexibilização de tais distâncias por entender que “uma restrição rígida com base em uma distância pré-determinada pode prejudicar o desenvolvimento do setor eólico” no Estado. Apresenta, ainda, as distâncias estabelecidas em países como Bélgica, Dinamarca, Países Baixos e Irlanda do Norte, que são bem inferiores aos dois quilômetros. Entre outros pontos, a nota também pede a simplificação do licenciamento ambiental de empreendimentos renováveis, com avaliação caso a caso.
Sobre isso, a secretária Ana Luiza Ferreira pondera: “quando a gente fala de distanciamento mínimo, existe uma variabilidade muito grande, porque vai depender se existe floresta ou um vale entre a torre eólica e a edificação, da topografia local, do regime de ventos. Ou seja, dependendo da geografia varia muito a distância em que se têm impactos ou não. O GT se aprofundou, fez uma revisão bibliográfica de literatura e de normativas de outros lugares do mundo, para conseguir assegurar um distanciamento efetivamente seguro, ao mesmo tempo que não seja excessivo a ponto de inviabilizar a produção de energias renováveis”.
A Federação dos Trabalhadores Rurais e Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado de Pernambuco (Fetape) integrou o GT, como representante de uma das categorias mais atingidas. Além das reuniões, também participou de visitas aos complexos eólicos e solares para conhecer de perto o funcionamento dos empreendimentos e o cotidiano de quem convive com eles.
Ivanice Melo, diretora de Política para o Meio Ambiente da Fetape, afirma que a entidade reconhece a importância da transição energética, mas também defende a vida dos agricultores e agricultoras. “Com esses complexos, eles não conseguem mais plantar como antes, a sombra das torres eólicas afeta a criação dos animais, o barulho também é algo já comprovadamente negativo à saúde. Defendemos a energia renovável mas de forma que os trabalhadores tenham condições de viver”.
Ivanice também cita uma questão delicada na relação das populações locais com as empresas, referente aos contratos de arrendamento de terras. Ela conta que “eles são feitos de acordo com o interesse das empresas, sem considerar a opinião das famílias. São contratos de vinte, trinta anos, que vão atravessar gerações, passar de pai para filho, para quem estiver morando no lugar futuramente”.
Nova lei pode ser “luz no fim do túnel”
É assim que Alexandre Santos, indígena Pankararu e coordenador de comunicação da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), define o que pode estar por vir: “o que a gente vê é desanimador, porque o tanto de degradação que as pessoas ainda estão fazendo em nome do progresso faz perder a esperança de um futuro. Essa legislação pode ser uma luz no fim do túnel”.
O território de seu povo, que fica entre os municípios de Jatobá e Tacaratu, foi impactado desde os anos 1980 pela construção da Barragem de Itaparica e, depois, de um complexo de energia eólica e solar (a primeira usina híbrida do Brasil) a apenas 50 metros de distância da Terra Indígena Pankararu.
“Esse primeiro impacto foi ambiental, social e espiritual também, porque a construção da Barragem de Itaparica inundou uma cidade e também o território sagrado do nosso povo, onde a gente ia fazer nossos rituais. Social porque perdemos o acesso ao rio, o nosso povo tinha a cultura de pescar e perdemos o laço cultural e social com os parentes que viviam na margem do rio. E o impacto ambiental foi a extinção de alguns peixes”.
Com relação ao parque eólico e solar, ele destaca os impactos causados pelo desmatamento de matas sagradas para os indígenas e pelo ruído das hélices que afeta a saúde mental de quem mora mais próximo das torres, a cerca de apenas 200 metros. Tece críticas também às ações de mitigação e compensação ambiental, que são insuficientes e breves, a exemplo da implantação de um viveiro de mudas e da compra de ambulâncias no caso Pankararu.
“São coisas que funcionam durante um tempo limitado, projetos para apenas um ano, e depois não têm mais investimentos. O tempo que esses empreendimentos estiverem funcionando é o tempo em que precisa continuar sendo feita essa compensação. Se o parque ficar por vinte anos, então por todo esse tempo vai ter que agir diante dos impactos. Não é um projeto de mil, dez mil ou cem mil reais que vai repor todo esse dano”.
A grande contradição que simboliza a injustiça socioambiental inerente à forma atual de implantação de energias renováveis no Brasil é que, mesmo sendo vizinhos desses empreendimentos, os Pankararu não têm acesso à energia elétrica de qualidade. Alexandre conta que a corrente elétrica no território mal chega a 140v e, por isso, também enfrentam o problema da constante queima de aparelhos eletrônicos, que são adaptados para 220v. Nem mesmo o posto de saúde consegue armazenar medicamentos porque a energia não suporta os freezers, o que afetou inclusive o plano de vacinação contra a Covid-19 durante a pandemia.
Comunidades tradicionais e de
agricultura familiar são as mais atingidas
Luiza Cavalcante, presidente da Associação de Educação, Arte, Cultura e Agroecologia Sítio Ágatha, participou de algumas reuniões do GT coordenado pela Semas e observou o principal impasse da discussão, a respeito do distanciamento dos empreendimentos. Moradora do Assentamento Chico Mendes, no município pernambucano de Tracunhaém, ela enfrentou a implantação de torres de transmissão de energia eólica em seu território em plena pandemia.
Perderam edificações, áreas agricultáveis e biodiversidade de fauna e flora por conta da supressão vegetal e da passagem de fios elétricos. “Eles chegam num modelo igual em todo lugar, sem aviso algum. A gente descobre já com os carros dentro da propriedade e a devastação”, denuncia Luiza. No Assentamento Chico Mendes, há quem tenha sido obrigado a sair de sua casa, conquistada com muita luta, porque as correntes elétricas ofereciam riscos para a permanência no local.
A agricultora ressalta ainda que esses empreendimentos atravessam principalmente pequenas propriedades rurais e de agricultura familiar. “Nunca passam em grandes propriedades, só nas pequenas. É muito evidente o projeto. Deveriam primeiramente passar distante das áreas de agricultura familiar, sejam elas quilombolas, indígenas, sem-terra, pescadores, que são os mais atingidos. Com isso, já se resolveria todo o resto”.
Já que essa proposta parece mais difícil de acontecer, Luiza argumenta também que uma nova legislação deve garantir o respeito à consulta prévia, aos protocolos de consulta das comunidades potencialmente afetadas e à responsabilização dos governos em comunicar antecipadamente às populações sobre a chegada dos empreendimentos.
Transição energética
justa, popular e inclusiva
Pernambuco possui um dos casos mais emblemáticos de impactos gerados pela implantação de empreendimentos de geração de energia eólica do Brasil. No município de Caetés, a 245 km da capital do Estado, desde 2014 dois parques eólicos, com 220 torres instaladas, transformaram radicalmente a vida de 120 famílias de pequenos agricultores.
Alguns deles vivem a apenas 150 metros de distância dos aerogeradores e enfrentam o drama da depressão, ansiedade, insônia e surdez causadas pelo barulho produzido pelas estruturas em funcionamento. Em outros estados do País, sobretudo na região nordeste, dezenas de comunidades vivem a mesma história, incluindo problemas de restrição de acesso aos territórios, desagregação comunitária e violência de gênero.
A transição energética é pauta de grande relevância no contexto das mudanças climáticas e da urgência da descarbonização das economias em todo o mundo, com a substituição das fontes de energia fósseis por alternativas mais “limpas”. No entanto, há anos a sociedade civil organizada denuncia que a forma como os empreendimentos de energia renovável são implantados não tem nada de sustentável.
Entrou em voga um conjunto de adjetivos que qualificam essa transição de acordo com a luta das comunidades: que seja justa, popular e inclusiva. Isto é, que respeite os direitos, os modos de vida e os territórios das comunidades e populações diretamente afetadas, que garanta uma escuta ativa e atenta a essas comunidades e a sua participação nos processos de decisão e que viabilize o acesso de todos à energia de qualidade.