“Dificilmente um de nós não vai ter para contar uma história de algum antepassado que foi pego a dente de cachorro. Algum indígena que ficou desgarrado de seu grupo e o homem branco o capturou. Nós somos dessa descendência. Depois do sofrimento dos negros que foram escravizados para servir aos donos de engenho e barões do café, quando queriam se ver livres daquilo, o refúgio eram essas margens de rios e esse Cerrado”.
O relato sobre a ancestralidade dos povos tradicionais do Cerrado baiano, na região oeste do Estado, é de Dernevaldo Soares, filho, neto e bisneto de fecheiros e integrante da Associação Vereda da Felicidade, no município de Correntina. Além de pertencer a uma comunidade de fundo e fecho de pasto, ele também incorpora a identidade que abarca, de forma mais ampla, quase todos e todas que há gerações vivem nesse território: os geraizeiros.
“Gerais” é o nome pelo qual os povos da região tradicionalmente conhecem as áreas de Cerrado. “A residência é onde a gente vive. No Gerais é um lugar que não tem ninguém morando. Nós chamamos de vasto, porque todo mundo tinha acesso. Falava assim: ‘vai pra onde? Vou lá pro Gerais’, porque não tinha ninguém, só fruta, os animais”, ilustra Bernardo Alves Barbosa, morador da comunidade de Pedrinhas.
Assim como em todo o Brasil, no Oeste da Bahia uma série de acontecimentos e dinâmicas sociais, econômicas e políticas, desde a colonização, contribuíram para a ocupação das terras e a formação identitária da população dessa parte do país que hoje novamente se transforma com o avanço do agronegócio.
Em sua tese de doutorado, Valney Rigonato, professor de Geografia da Universidade Federal do Oeste da Bahia (Ufob), sistematizou o que as evidências geo-históricas revelam sobre a ascendência dos geraizeiros baianos. Teriam sido herdeiros de pelo menos três grupos migrantes: pessoas oriundas do Quilombo Zumbi dos Palmares, nordestinos fugidos da seca e de conflitos agrários e exploradores da borracha de mangaba.
Para aqueles que buscavam nova vida e alívio de sofrimentos, a abundância de água na região era um dos principais atrativos. Se estabeleceram nas margens de rios, córregos e veredas, conheceram a biodiversidade local e aprenderam a viver dela.
Hoje são, além de geraizeiros, ribeirinhos, quebradeiras de coco-babaçu, pescadores, comunidades de fundo e fecho de pasto. Os povos originários também estão presentes, com as etnias indígenas Kiriri, Tuxá, Pankaru, Atikum, Xakriabá e Tapuia.
A equipe de reportagem da Eco Nordeste esteve no Oeste da Bahia e conheceu parte dessa riqueza sociocultural. Apresentamos histórias de conhecimentos e ferramentas populares para captação de água, de festas populares que marcam o sincretismo religioso brasileiro, da luta contra a grilagem e pela titulação de terras quilombolas e de agricultores que transformaram seu trabalho com a agrofloresta.
Ainda há muito por contar, a exemplo das realidades de mulheres que trabalham com a extração e beneficiamento de espécies vegetais nativas do Cerrado baiano para a produção de alimentos e de artesanato.
Babaçu é identidade e sustento de mulheres
Gerolina Xavier vive na comunidade Penedo, em São Desidério (BA). Ainda criança, aprendeu a colher e quebrar coco-babaçu com a mãe e outras mulheres da família. Uma de suas tias, que viveu até os 102 anos de idade, quebrou coco até os 75. O fruto de palmeira é uma das fontes de renda entre os que vivem da agricultura familiar, somada ao plantio de mandioca, feijão, milho, hortaliças e frutas.
Ela conta que na comunidade todo mundo é parente, pertencem ao mesmo tronco familiar. São primos, sobrinhos, noras e genros, com poucos vindo de fora para morar no lugar. “A gente vive todo mundo assim, numa união muito bonita”.
Da infância para cá, algumas coisas mudaram no trabalho com o coco-babaçu, mas o ofício continua sendo essencialmente artesanal. “Antes a gente colhia e carregava na cabeça, depois passou a ser no carrinho. Agora a gente já pega na carroça”, relembra.
Nerilma Rodrigues, trinta anos mais nova que Gerolina, é uma representante da geração atual de mulheres que assume a continuidade da prática tradicional e já conta com o apoio de algumas ferramentas para facilitar e acelerar o processo de beneficiamento do fruto. A etapa de pisar o coco babaçu no pilão, por exemplo, foi substituída pelo uso de uma máquina fornecida pela Agência 10envolvimento, ONG que acompanha e apoia agricultores familiares da região.
“Eu comecei a quebrar coco com minha mãe e meu pai, e continuei porque tenho uma sensação de gratidão por ter aprendido essa profissão. Meus pais me ensinaram a valorizar esse serviço digno, é uma coisa que a gente tira da nossa terra. Quando eles iam pegar o coco, eu ia junto. Eles catavam e eu ficava do lado ajudando, como criança curiosa, e ia catando, porque é muito gostoso. Eu posso estar pensando qualquer besteira, quando eu pego os coquinhos para quebrar já esqueço de tudo”, conta Nerilma.
O trabalho é pesado e longo. As mulheres saem “para o mato” para buscar os cocos, levam para casa e começam a labuta com a quebra do fruto, feita com machado. Depois são lavados, torrados, pisados no pilão – ou na máquina, no caso de Nerilma – e novamente levados ao fogo para cozimento e extração do óleo, que pode ser vendido assim mesmo ou utilizado na fabricação de outros alimentos.
Gerolina e Nerilma vendem o óleo do coco babaçu ou utilizam-no para fazer peta, paçoca, beiju e outras receitas que preparam e levam para vender mensalmene na feira da agricultura familiar de São Desidério, chamada Luar do Cerrado. A casca do coco é reutilizada como carvão.
Em Formosa do Rio Preto, outro município do Oeste baiano, há cerca de dez anos as mulheres da comunidade Cacimbinha aprenderam um ofício que já é tradicional em outras partes do País onde também existe o capim dourado. A professora Maria da Penha veio de Palmas, no Tocantins, para ensinar a confeccionar brincos, pulseiras, colares, cestos, chapéus e outros acessórios com uso apenas do capim, arame, linha e agulha.
A “costura” e a venda das peças virou um trabalho e fonte de renda complementar para mulheres como Domingas dos Santos e Adaldiva Guedes. Elas também são geraizeiras e somaram o artesanato ao seu modo de vida tradicional. “Nascemos e nos criamos aqui. É muito bom morar no gerais. Você pode criar uma galinha, um gado, plantar suas coisinhas, sua mandioca. É bom demais, e na cidade você não pode fazer isso”, relata Domingas.
Antes, a comunidade apenas colhia o capim dourado e vendia como matéria-prima. Hoje, após o curso, são cerca de 12 mulheres envolvidas no artesanato. Nos meses de agosto, setembro e outubro, elas empreendem a jornada de colheita do capim, que inclui passar uma semana acampadas nos gerais, em grupos de duas a cinco pessoas e os animais que carregam os pertences e o capim coletado.
Antes da pandemia, saíam com mais frequência para vender os produtos em feiras, mas hoje as peças saem mais por encomenda. Se o pedido for muito grande, as mulheres se dividem para dar conta da quantidade de peças.
Modernidade pode apoiar ou
ameaçar identidades e territórios
Segundo os relatos de Gerolina e Nerilma, já não são muitas as mulheres que topam seguir com a quebra do coco babaçu, por ser um serviço pesado e demorado. Outros trabalhos, inclusive fora da comunidade, nas cidades, parecem ser mais atrativos. E o desmatamento também é uma ameaça. “Já derrubaram bastante para plantar capim, criar gado, porque a maioria dos babaçus está nas terras dos outros. Nós estamos nessa luta para que não derrubem”, conta Gerolina.
Avanços científicos e tecnológicos, políticas públicas, incentivos e financiamentos fomentam o avanço de empresas do agronegócio e a intensificação da produção de grãos nessa região da Bahia que integra o Matopiba. Mas o mesmo não acontece quando se trata de democratizar essa modernização para facilitar a vida de agricultores e agricultoras familiares e manter a produção sustentável.
A máquina que Nerilma usa em substituição ao trabalho de pisar o coco babaçu no pilão seria muito bem-vinda para as outras quebradeiras. Outro equipamento para realizar a etapa anterior, de abrir o coco, também ajudaria a evitar os problemas de coluna que as mulheres adquirem por permanecer muitas horas sentadas no chão, ocupadas nesta tarefa.
Gerolina conta que já visitou uma comunidade onde as quebradeiras tinham máquinas para descascar, quebrar e depois para extrair o óleo do coco babaçu. “Mas nós não temos condição para isso. Nosso grupo tem quebradeiras de três comunidades diferentes, não ficam tão próximas. Onde iríamos botar essas máquinas? Teríamos que conseguir as três máquinas, uma para cada comunidade”, explica.
A “modernidade” representada por máquinas tem produzido um efeito muito contrário ao de facilitar ou expandir o trabalho das quebradeiras. O desmatamento e a exploração de águas superficiais e subterrâneas para irrigação são uma preocupação para elas. “A água já diminuiu bastante por conta dos pivôs nas fazendas do agronegócio. A gente está correndo o risco de perder a nossa água. Se desmatarem o Cerrado, as nossas nascentes acabam, porque descem lá da serra. Sem água não tem babaçu”, avalia Gerolina.
O Cerrado do Oeste da Bahia integra o território do Matopiba. Denominada com as sílabas iniciais dos quatro estados que abrange – Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia –, a área abrange 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais desses três Estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho e algodão.
O Matopiba tem 73 milhões de hectares em três biomas: Cerrado ( 66,5 milhões de hectares, o equivalente a 91% da área), Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a 7,3%) e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.
Projeto ma.to.pi.ba.
Este conteúdo faz parte do Projeto ma.to.pi.ba., uma ação multimídia da Eco Nordeste, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Com início em janeiro de 2024, traz matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo em que aborda os problemas socioambientais, a iniciativa multimídia aponta experiências que têm dado certo na região, seguindo a linha editorial de jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.
O projeto é executado por uma equipe premiada composta pelas repórteres Alice Sales e Camila Aguiar, com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação-geral da jornalista Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação, Flávia P. Gurgel é responsável pelo design; Isabelli Fernandes, edição de podcasts; e Andréia Vitório faz o gerenciamento das redes sociais.