“Agroextrativismo, sim, mas não em escala industrial”

Foto colorida de homem branco de bigode e barba grisalhos usando chapéu e tendo atrás de si uma estrada de barro vermelho, árvores e plantação ao fundo

Anderson Sevilha: “Não podemos colocar agroextrativistas em linha de produção industrial” | Foto: Acervo Pessoal

Graduado em Ciências Biológicas, mestre em Botânica e doutor em Ciências de Plantas Tropicais, Anderson Sevilha é pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Recursos Genéticos e Biotecnologia (Cenargen) e coordenador nacional do Programa Bem Diverso, iniciativa em parceria com a Organização das Nações Unidas (ONU) que busca, por meio do manejo sustentável e de Sistemas Agroflorestais (SAFs), assegurar os modos tradicionais de vida dos agroextrativistas familiares, para gerar renda e qualidade de vida nos biomas Cerrado, Amazônia e Caatinga.  Em entrevista exclusiva à Eco Nordeste, o pesquisador fala sobre as potencialidades da sociobioeconomia do Cerrado e outros biomas brasileiros, desafios a serem superados e a importância da valorização do trabalho de agroextrativistas de comunidades tradicionais em contraponto ao uso desordenado das terras,  assim como a importância da conservação dos Serviços Ecossistêmicos. Opiniões como as de Anderson Sevilha são importantes para o planejamento territorial no Matopiba, principal fronteira agrícola do País e tema de projeto multimídia desenvolvido pela Eco Nordeste. A seguir, leia na íntegra a entrevista:

ALICE SALES – Podemos considerar o Cerrado um bioma de origem de uma rica diversidade de produtos e alimentos genuinamente brasileiros?

ANDERSON SEVILHA – Não só para os produtos do Cerrado, mas também para os produtos da Caatinga, da Amazônia e de todos os biomas brasileiros, a diversidade de espécies e de povos e comunidades tradicionais que convivem nesses ambientes são fontes inesgotáveis de produtos e conhecimentos que devem ser conhecidos, reconhecidos, resgatados, valorados, valorizados e incentivados em contraposição ao uso desordenado desses territórios e desvinculados do potencial ambiental, cultural e social, ali presentes. A ocupação desordenada afeta não apenas a manutenção da vida no interior profundo do País, mas também dos povos que vivem nas cidades. O exemplo mais recente dessa ocupação e usos desordenados dos sistemas de terras vêm do Rio Grande do Sul.

ALICE SALES – Esses produtos de origem dos biomas Cerrado, Amazônia e Caatinga  realmente impulsionam a geração de renda para os agroextrativistas?

ANDERSON SEVILHA – Sim, esses produtos realmente impulsionam a geração de renda, mas essa discussão tem que vir acoplada de desenvolvimento de capacidades e agregação de valor a esses produtos. E para isso se faz necessário investimentos em formação e desenvolvimento de capacidades locais e também na infraestrutura para processamento e comercialização desses produtos. Mas a discussão não é apenas de geração de renda, ou não pode estar centrada apenas na geração de renda, que ocorre e é importante, mas também ao tipo de inclusão que se está construindo. Ou seja, ao modelo de relações econômicas em que estamos incluindo essas comunidades.

ALICE SALES – E quais são os principais desafios nesse sentido?

ANDERSON SEVILHA – O modelo clássico econômico reproduz no Brasil profundo as relações econômicas de exploração que temos nos grandes centros urbanos mascarado por aquilo que hoje se classifica como bioeconomia, que olha para essas comunidades apenas como fonte de insumos e de mão de obra barata. Um caso clássico é o do açaí. Tradicionalmente, um extrativista subia de 1 a 2 vezes por dia em um pé de açaí. Com a inserção do açaí no mercado local, esses extrativistas passaram a subir de 10 a 20 vezes por dia nos pés de açaí. E quando o açaí ganhou o mundo, esses extrativistas passaram a assinar contratos de entrega e passaram a subir de 30 a 40 vezes por dia durante a safra. Com isso,  o extrativista passa a levar a mulher, os filhos e toda família para subirem e colherem o açaí. 

Assim, passaram a ser especialistas na produção de açaí, mas deixaram de produzir as suas roças e de reproduzir as suas relações sociais. Seus filhos e filhas deixam de ir à escola, e são inúmeros os acidentes que levam ao afastamento de suas atividades, deficiências, incapacitação e morte. Ganha-se dinheiro, mas troca-se, agora, esse dinheiro, por ultraprocessados e produtos industrializados. Ganha-se dinheiro, mas perdem-se vidas e a qualidade de vida. Ganha-se dinheiro, mas perde-se o conhecimento tradicional e as suas relações comunitárias e com a floresta. Com o dinheiro, ganharam adicionalmente, hipertensão, diabetes e outras mazelas que não tinham notícias até então. Isso é trágico e se reproduz em maior ou menor escala quando consideramos outros produtos em outros biomas. 

Foto colorida de homem de chapéu e óculos escuros sustentando tronco de árvore. Anderson Sevilha em campo. Acervo pessoal

Anderson Sevilha cita modelo de produção do açaí como neoescravagista | Foto: Acervo Pessoal

Em resumo, a inserção desses povos no modelo econômico clássico nada mais é do que a manutenção dessas populações em um regime neoescravagista, pintado com as cores douradas do desenvolvimento sustentável, economia circular, bioeconomia, inserção de povos e comunidades tradicionais e seus produtos no mercado, e outros chavões que são repetidos.

ALICE SALES – Quais são os caminhos para evitar a reprodução desse modelo?

ANDERSON SEVILHA – Faz-se necessário trabalhar outros aspectos na construção dessas relações, uma vez que os agroextrativistas não vivem de atividade única, mas de um conjunto de atividades, que vai da agricultura ao extrativismo. Da mesma forma são os produtos, ou seja, da variedade e da diversificação de produtos. Não podemos colocá-los em uma linha de produção industrial, baseada em produto único.  Isso seria decretar o fim dessas populações. Daí a importância de falarmos das sociobioeconomias desses povos. Impulsionarmos essa diversidade de fazeres e usos e com isso sairmos das cadeias (prisões) para as cestas de produtos. 

ALICE SALES – Você poderia citar casos de sucesso da produção e comercialização de produtos  desses biomas ?

ANDERSON SEVILHA – Temos vários exemplos de sucesso, como é o caso da Cooperativa Grande Sertão, Cooperativa de Agricultores Familiares Agroextrativistas de Água Boa 2 (COOPAAB), Cooperativa de Pequenos Agricultores de Santana da Vargem (COOSPAV), ou da Central do Cerrado, no processamento e comercialização de vários produtos do Cerrado, como baru, pequi, cagaita, mangaba, coquinho azedo e coco babaçu; da mesma forma, com a Central da Caatinga, a Cooperativa Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá (COOPERCUC), Cooperativa de Produção da Região do Piemonte da Diamantina (COOPES), Coopersabor e Montesabores, no processamento de diversos produtos da Caatinga, como licuri, maracujá-da-caatinga, umbu e mangaba, dentre outros; e da Cooperativa Manejaí, Cozinha Iaçá, no processamento e comercialização de açaí, bacuri, taperebá e copaíba, na Amazônia. Esses são exemplos de organizações constituídas por agroextrativistas, que envolvem milhares de famílias na colheita e processamento de produtos, nos territórios onde atuamos.

ALICE SALES – A que se deve o valor agregado atribuído a esses produtos?

ANDERSON SEVILHA – São vários os fatores que contribuem para esse processo. Um deles é a agregação de conhecimento e trocas de experiências entre o conhecimento científico e o tradicional na resolução de problemas, que estão para além das barreiras relacionadas aos sistemas produtivos, mas estendem-se para as áreas de processamento e comercialização de produtos, no acesso às políticas públicas e crédito e, principalmente, para o resgate identitário, territorial, cultural e das relações intergeracionais. 

Outro ponto fundamental está centrado no desenvolvimento de capacidades locais para a multiplicação desse conhecimento e ganho de escala, tanto nos processos de formação de novas capacidades, quanto no desenvolvimento das atividades produtivas. Possibilitar que as comunidades locais passem a ser protagonistas de sua própria história na produção e reprodução desses conhecimentos. Uma vez apropriados pelas comunidades locais, esses conhecimentos são adaptados e multiplicados localmente, o que garante tanto a realização pessoal quanto profissional e, principalmente, contribui para a manutenção e reprodução dos modos de vida locais com dignidade, inclusão social, tecnológica e digital. 

Lógico que a agregação de valores de qualidade sanitária e nutricional são importantes e esta é feita tanto para a comercialização de produtos in natura quanto para a comercialização de produtos processados. Mas, mais do que isso, é agregar valor de qualidade ambiental, social e cultural aos produtos. Coisa que pouco a pouco estamos avançando, uma vez que para isso também se faz necessário quantificar e valorar os serviços ambientais produzidos e, da mesma forma, os valores sociais e culturais agregados ao produto.

Por fim, em última instância, formar e educar o consumidor é outra tarefa hercúlea, mas amplamente necessária, uma vez que é para essas pessoas que estamos produzindo alimento de qualidade. E isto não significa produtos mais caros, mas sim produtos de qualidade que primariamente têm que ser consumidos por quem produz. E aí as políticas públicas têm um papel fundamental, que é o das compras públicas, como os programas governamentais de aquisição de alimentos (PAA) e o de alimentação escolar (PNAE) que garantem que os filhos e filhas desses agroextrativistas se alimente daquilo que os pais e mães estão produzindo.

ALICE SALES – Podemos afirmar que as atividades agroextrativistas são benéficas ao meio ambiente, se comparadas às atividades do agronegócio?

ANDERSON SEVILHA – Sem sombra de dúvidas. Na dimensão ambiental, na produção agroextrativista, trabalhamos a produção em base agroecológica na qual estão associados serviços de conservação e manejo de solos, da água e da agrobiodiversidade sem uso de agrotóxicos, o que favorece a manutenção de polinizadores e o controle biológico, controle de erosão e de carreamento de sedimentos que contribuem para a manutenção de nascentes e do fluxo da água em seus cursos, bem como na restauração dos agroecossistemas. 

No aspecto social, o trabalho digno e manutenção das populações locais em seus territórios, com garantia da realização pessoal e profissional de mulheres e jovens. No aspecto cultural, o resgate do conhecimento tradicional no uso e conservação de espécies e na diversificação de produtos consumidos e comercializados. Na dimensão econômica, a geração de renda e emprego para essas comunidades e, por fim, na dimensão política, a estruturação e gestão das organizações comunitárias e de seus territórios. Ou seja, partimos do lucro individual, da mercantilização da terra e daquilo que se tira da terra, para um ganha-ganha coletivo, que respeita os direitos humanos e os direitos da natureza. Essa é a diferença.

ALICE SALES – Como estão as ações do Bem Diverso nos biomas Cerrado, Caatinga e Amazônia? E quais são as principais iniciativas do projeto?

ANDERSON SEVILHA – Efetivamente, enquanto projeto, estamos com apoio financeiro para as atividades na Amazônia, mais especificamente no Marajó, com recursos da União Europeia, por meio do projeto Sustenta e Inova; e no Cerrado, na região do Norte de Minas, com recursos do Governo da Alemanha, por meio do projeto Ecosipas. As ações seguem em seus seis territórios de atuação, nos três biomas: Amazônia (Alto Acre e Capixaba e Marajó); Caatinga (Sertão do São Francisco e Sobral); e Cerrado (Médio Mearim e Alto Rio Pardo), sendo esse último território, inserido na porção maranhense do Matopiba.

Isso aponta para a garantia da sustentabilidade das ações, um legado deixado nos territórios. Ou seja, mesmo sem aporte de recursos, o Bem Diverso foi incorporado pelas comunidades e estão tocando suas ações. 

Estamos buscando financiamento para dar continuidade às ações nesses territórios e também para multiplicar para outros. Tanto na Amazônia quanto no Cerrado, nós continuamos desenvolvendo e multiplicando ações centradas na conservação, manejo e restauração de agroecossistemas, no processamento de produtos e na agroindustrialização; na comercialização de produtos e acesso aos mercados, e também na promoção de acesso a políticas públicas e crédito, sempre considerando as questões relacionadas à inserção de jovens, mulheres e grupos vulneráveis nos sistemas produtivos e de gestão dos empreendimentos de base comunitária.

Além disso, nós temos também auxiliado o governo federal, por meio de seus diversos ministérios, nas pautas relativas aos povos e comunidades tradicionais, divulgando e promovendo o acesso dessas comunidades às políticas públicas existentes, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Bolsa Verde, Programa de Fomento de Cisternas e Saneamento, Energias renováveis, PGPMBio e, principalmente, o de crédito do  Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Esse último é essencial para dinamizar os sistemas produtivos locais e a comercialização de produtos. Todo esse trabalho está centrado nos Centros de Referências montados por essas comunidades ao longo do desenvolvimento do projeto. Esses Centros de Referência são os espaços de formação e multiplicação de conhecimentos, constituídos e tocados pelas comunidades locais, voltados não só para a produção, processamento e comercialização de produtos agroextrativistas, mas principalmente na formação de novos facilitadores (multiplicadores de conhecimentos e práticas) locais.

Matopiba

Este conteúdo faz parte do Projeto ma.to.pi.ba., uma ação multimídia da Eco Nordeste, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Com início em janeiro de 2024, traz matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo que aborda os problemas socioambientais, a iniciativa multimídia aponta experiências que têm dado certo na região, seguindo a linha editorial de jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.  

Denominado com as sílabas iniciais dos quatro estados que abrange, Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, o Matopiba inclui 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais desses três estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho e algodão.

O Matopiba tem 73 milhões de hectares em três biomas: Cerrado ( 66,5 milhões de hectares, o equivalente a 91% da área), Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a 7,3%) e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.  

O projeto Ma.to.pi.ba.  é executado por uma equipe premiada composta pelas repórteres Alice Sales e  Camila Aguiar, com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação geral da jornalista Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação, Flávia P. Gurgel é responsável pelo Design; Isabelli Fernandes, edição de podcasts; Adriana Pimentel, edição das newsletters; e Andréia Vitório faz o gerenciamento das redes sociais.

Quer a apoiar a Eco Nordeste?

Seja um apoiador mensal ou assine nossa newsletter abaixo: