Transição energética no Piauí exclui comunidades ribeirinhas

Foto colorida de rio na maré baixa com mulher de costas e em pé usando chapéu de palha e blusa vermelha segurando uma rede de pesca de frente para vegetação de mangue e areial

Pesca artesanal no Rio Parnaíba, no Piauí, está excluída da transição energética | Foto: Carolina Simiema

Por Carolina Simiema
Especial para Eco Nordeste

O Estado do Piauí vive o boom da transição energética, que, em alguma medida, segundo os especialistas, é também “uma disputa do tipo de narrativa e de transição energética que se quer”. Por um lado, o Estado ocupou, em 2023, a quarta posição no País (460,9 MW) em expansão das energias eólica e solar centralizadas, com 117 parques eólicos em operação e 52 solares fotovoltaicos, além de outros 46 novos empreendimentos em fase de construção, segundo dados do Sistema de Informações de Geração da Aneel (Siga), consultados no início de março de 2024. Por outro, comunidades ribeirinhas, como a das marisqueiras de Ilha Grande, não se sentem beneficiadas e, muito menos, parte dessa transição energética.

“A gente sempre teve a eólica aqui, mas aí veio pra cá e cadê? Melhorou a energia pra alguém? Isso não adianta, isso não vem pra gente. A gente continua pagando”, questiona Luiza dos Santos, 63, fundadora da Associação das Catadoras de Marisco de Ilha Grande, no Piauí.

Uma das possíveis soluções para que essas mulheres – e outras comunidades rurais, indígenas, ribeirinhas, periféricas -, não se sintam excluídas da transição,  aponta Rodolfo Dourado Maia, engenheiro mecânico e diretor executivo do International Energy Initiative Brasil (IEI), é agregá-las a movimentos e organizações que trabalham em rede que defende a expansão justa: “organizações que podem dar mais força às vozes dessas pessoas, ter uma articulação política mesmo”. O especialista defende também que “as políticas públicas de energia precisam estar integradas com políticas de desenvolvimento ou com as ações que existem de desenvolvimento local”. Só assim, segundo ele, “a transição energética será um instrumento de transformação social”.

Outro ponto listado pelo engenheiro eletricista da Frente por uma Nova Política Energética, Joilson Costa, é tornar o diálogo mais acessível e fazer com que as informações cheguem até essas comunidades Ele ressalta também o trabalho dos movimentos organizados e do poder público de forma ativa na identificação das necessidades dessas comunidades.

Além disso, para ele, uma das maneiras mais efetivas de contribuir para que essas pessoas se sintam beneficiadas com a transição energética é fazer com que entendam e compreendam a partir de suas próprias experiências, que se “sintam partes dessa transição”.

“Em geral, os benefícios econômicos das centralizadas são difíceis de serem percebidos pelas comunidades porque esses benefícios são capturados, quase que majoritariamente, pelas empresas que os implementam. Hoje, a forma de se fazer isso [comunidade se sentir beneficiada] é por meio da geração descentralizada, permitir que elas instalem o sistema e gerem toda ou parte da energia que elas necessitam”, conclui.

O trabalho que as marisqueiras desenvolvem na região litorânea do Piauí é fundamental para o enfrentamento das mudanças climáticas e conservação do ecossistema. O aumento nos padrões de temperatura, a mudança no regime de chuvas e a elevação do nível do mar afetam diretamente regiões costeiras, promovendo impactos significativos, principalmente para essas comunidades que vivem da pesca e da agricultura. Soma-se a tudo isso, intensificando as consequências, a ação predatória de um turismo que cresce, cada dia mais, na região.

Foto colorida de rio na maré baixa com mariscos na superfície da lama com canoa parada ao fundo e uma silhueta de mulher em pé ao lado

Marisqueiras apontam mortes de mariscos em decorrência da salinização do rio | Foto: Carolina Simiema

“Os empresários só ficam botando barco no rio. É tanto barco com aquelas hélices grandes mexendo a areia, vai virando aquela terra,  só vai fazendo mais croa no rio. Eles pensam que não faz isso, né. Mas eu, que não sei de nada da vida, estou prestando atenção. Uma lancha grande que passa e joga os dejetos no rio. Aí eles dizem que é o vento que traz a areia, mas não é só o vento não, eles também. É porque não prestam atenção nas coisas, só querem ganhar dinheiro”, relata Luiza.

Os mangues, muito presentes na Praia de Macapá, no município de Luís Correia (PI), e onde parte das marisqueiras retiram os seus mariscos, sofrem com a crise climática, na medida em que ocorre o aumento da salinização da água em decorrência do avanço do mar sobre a foz dos rios Cardoso e Camurupim, consequência dos efeitos do aquecimento global.

Os manguezais contribuem para a redução da vulnerabilidade da zona costeira em relação às mudanças climáticas. As florestas de manguezais, por exemplo, atuam como fortes aliadas para conter o avanço do aquecimento global, que, nas comunidades mais vulneráveis, como Ilha Grande, é sentido com mais intensidade.

Os mangues também estão entre os ecossistemas com maior capacidade de absorção de dióxido de carbono (CO2), gás com significativa contribuição no efeito estufa, e atuam na retenção de sedimentos, o que contribui para compensar parcialmente a elevação do nível do mar e reduzir a vulnerabilidade a processos erosivos. Além disso, é nos mangues que muitas comunidades tradicionais retiram diretamente seus recursos de sobrevivência, é o caso da pesca artesanal, do extrativismo e da coleta de marisco.

Segundo o Atlas dos Manguezais do Brasil, “estima-se que 25% dos manguezais em todo o Brasil tenham sido destruídos desde o começo do século XX”. Sem mangue, sem marisco, sem alimento, sem renda. É o ciclo que Joelma dos Santos, presidente da Associação dos Catadores de Marisco de Ilha Grande, no Piauí, já consegue visualizar na região onde ela faz a coleta: “O rio está mais seco e o marisco [oferta] diminuiu um pouco, só não diminuiu mais porque a gente tem a consciência de deixar os menores lá. A gente não leva os pequenos”, conta.

Uma vez que mulheres como as marisqueiras do Piauí entendem a importância dos rios e manguezais para sua subsistência, elas se tornam, também, defensoras ativas desse ecossistema e de tudo que nele habita, o que, consequentemente, reduz as possibilidades de ocorrências de atividades que causem danos ao local, como a pesca predatória. A coleta sustentável de mariscos, além de se tornar uma alternativa econômica viável que garante a sobrevivência dessas mulheres, é, ainda, uma importante forma de contribuição na mitigação dos efeitos das mudanças climáticas. 

“A gente protege. A gente tem o nosso landuá (instrumento de pesca) e tem gente que chega lá e vai tirar diferente, com aquelas colheres de pedreiro ou com rastelo, e não pode porque eles morrem. No outro dia, a gente chegava lá e os urubus estavam todos na croa comendo os mariscos mortos. Tem que tirar com as mãos e com o landuá”, explica Luiza, relembrando casos de pesca predatória que presenciou.

Foto colorida de duas mulheres usando chapéu e sentadas sobre um banco de areia catando mariscos. tendo ao fundo vegetação de mangue

Marisqueiras se queixam do tamanho dos mariscos, cada vez menores devido às mudanças na hidrodinâmica | Foto: Carolina Simiema

O protagonismo feminino dessas mulheres na proteção dos ecossistemas naturais e no enfrentamento à crise climática abre espaço para mais uma atuação: o empreendedorismo. Há mais de dez anos, a professora e doutora em Desenvolvimento e Meio Ambiente, Fátima Crespo, da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDpar), coordena projetos de incentivo à produção e comercialização de produtos agroecológicos das comunidades da região.  Ela também é responsável por contribuir para que as marisqueiras tivessem, hoje, uma forma de dar sustentabilidade financeira às suas produções ao viabilizar um local para que elas pudessem comercializar os produtos. 

A Feira de Artesanato e Produtos da Agricultura Familiar (FAPAF) faz parte do programa de extensão Entrelaços, da UFDpar, e é, segundo Crespo, um importante canal para incentivar o empoderamento dessas mulheres no empreendedorismo. 

“A feira veio para isso. Aqui é o local. Veio para dizer assim: aqui é possível, aqui é o local, vocês comercializam, geram a própria renda a partir do que vocês produzem, além de ser uma produção sustentável.  Quando a gente criou foi pensando nisso, e também na segurança alimentar, na soberania alimentar mesmo”, defende. 

Crespo relata ainda o quanto essas mulheres deixaram de ser financeiramente dependentes de seus maridos, o que comprova a efetividade dos objetivos da iniciativa: “Essa questão aqui do coletivismo e cooperativismo é das mulheres. Depois que elas se juntaram, trouxeram os maridos. Essas mulheres que estão se empoderando e dizendo: ‘o dinheiro é meu, o produto é do meu quintal’. Luiza, Joelma têm isso muito claro. Helena é uma líder na comunidade dela, o marido mesmo quase não fala, a dona Aparecida também, as filhas já são bem empoderadas. Elas são realmente lideranças em seus territórios”, exemplifica. 

Em um contexto no qual, segundo dados da ONU Mulheres, “até 2050, a mudança climática empurrará mais 158 milhões de mulheres e meninas para a pobreza e levará mais 236 milhões de mulheres à fome”, Luiza reforça a importância de se trabalhar a autonomia, que o assunto é, até mesmo, pauta de reuniões na associação: “Quando tem reunião eu sempre falo: ‘mulher, vamos levantar, trabalhar, levantar nossos canteiros, plantar suas coisas, que você vai ter sua renda’. De primeira, dependia muitos dos homens, agora a gente que se banca”. 

Kleberson Queiroz, aluno do curso de Economia e bolsista do programa, ressalta, ainda, o caráter multidisciplinar da iniciativa: “A feira tem um ganho social muito grande. O potencial do projeto não é só do empreendimento em si. Como tem a participação de todos os cursos, costuma ter muitas visões da feira a partir daqueles cursos. Tem os ganhos de bem-estar social, tem muito a pegada cultural, de saber, de troca de habilidades entre elas”.  

Foto colorida com três pessoas em pé pousando com uma mesa de produtos alimentícios artesanais. Uma mulher de cabelos grisalho e pele morena segura no colo uma menina com laços no cabelo e um copo nas mãos. Ao lado delas uma mulher mais jovem e parda de cabelos presos e sorrindo.

Luiza, a neta Maria Eloá e Joelma, na feira da UFDpar | Foto: Arquivo pessoal

Apesar do papel estimulador da feira, Crespo concorda que problemas de falta de assistência técnica e dificuldades em manter a produção, como a escassez de água e  energia, são fatores que poderiam ser afastados por meio de recursos e tecnologias apropriadas, como a geração própria de energia, a partir do sistema fotovoltaico: “São soluções simples e fáceis. A gente precisa de pequenas tecnologias, a tecnologia já existe, então a gente precisa levar essa informação, mas dar a informação e trazer a solução. Mostrar a possibilidade de como que eu acesso isso? Onde é que eu acesso isso?”.

A conservação do ecossistema como fornecedor de insumos para subsistência e o fortalecimento das comunidades ribeirinhas, a partir do aprimoramento do seus modelos de produção, farão com que mulheres como Luiza e Joelma se sintam mais confiantes e esperançosas em continuar enfrentando a crise e as injustiças climáticas, a dependência econômica e a insegurança alimentar, se posicionando, cada vez mais, como protagonistas de uma história que, para a avó Luiza, não se deve cessar: “Cadê o landuá que minha filha vai pegar os mariscos? Mostra ali pra ela, Joelma”, diz, sorrindo, para a neta de dois anos de idade.  

* Este conteúdo faz parte de uma série de três reportagens produzidas a partir de seleção do Plano Nordeste Potência, iniciativa que promove a transição energética por meio de fontes renováveis de forma justa e inclusiva. O Plano Nordeste Potência é construído por quatro organizações civis brasileiras: Centro Brasil no Clima (CBC), Fundo Casa Socioambiental, Grupo Ambientalista da Bahia (Gambá) e Instituto Climainfo, com apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS).

Quer a apoiar a Eco Nordeste?

Seja um apoiador mensal ou assine nossa newsletter abaixo: