Aprovação autorização da exploração de petróleo às vésperas da COP30 é apenas mais uma das contradições do País neste momento. Esta reportagem faz parte de série especial sobre o Nordeste na pauta climática

O Brasil está chegando à COP30 com a imagem de liderança climática abalada por contradições em sua política energética. Enquanto o País tenta se apresentar ao mundo como referência em transição justa e inclusiva, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) autorizou, no dia 20 de outubro, a Petrobras a perfurar um poço exploratório de petróleo na foz do Rio Amazonas, na Margem Equatorial. A decisão reacendeu o debate sobre o real compromisso do governo com a descarbonização da matriz energética e sobre a coerência entre discurso e prática.
O tema já havia sido antecipado pela Carta Aberta “Transição Energética Justa e Popular: A presidência brasileira na COP 30 e a necessidade de liderar pelo exemplo”, divulgada em setembro por mais de 50 redes e organizações da sociedade civil. O documento, encaminhado a ministros e autoridades federais, adverte para o risco de o País chegar à conferência sem corresponder às expectativas de liderança na transição energética. A carta cobra a adoção de planos nacionais vinculados às Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), compromissos assumidos por cada país no âmbito do Acordo de Paris, com participação social efetiva, transparência e respeito aos direitos humanos e territoriais, além de medidas concretas para abandonar progressivamente os combustíveis fósseis.
Entre as redes que assinam o documento estão o Observatório do Clima, o Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais (FBOMS), a Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), a Frente por uma Nova Política Energética, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), a Coalizão Energia Limpa, o Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), o Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental (FMCJS) e a Articulação Antinuclear Brasileira.
Contradição entre discurso e prática

A autorização do Ibama para a Petrobras explorar petróleo na foz do Amazonas vai no sentido oposto ao que defende o documento. Para Joilson José Costa, engenheiro eletricista, coordenador executivo da Frente por uma Nova Política Energética e assessor do Fórum Mudanças Climáticas e Justiça Socioambiental, a decisão “revela a incoerência da posição brasileira em relação à transição energética”. Segundo ele, o discurso oficial prega a mudança de paradigma, mas as ações mantêm e até ampliam a dependência dos fósseis. “Não há como falar em transição energética com a continuidade ou o aumento da exploração de combustíveis fósseis. Posturas como essa revelam uma contradição profunda”, afirma.
Joilson observa que o País ainda mantém processos decisórios concentrados e pouco transparentes na formulação de suas políticas energéticas: “quando a sociedade é excluída das decisões sobre o futuro energético, o que está em jogo é o próprio futuro do País. A continuidade da exploração dos combustíveis fósseis em um cenário de emergência climática coloca em risco a sustentabilidade da vida no Planeta. O poder dos grandes interesses impede que o governo adote caminhos de abandono gradual, mas efetivo, dessas fontes”.
A avaliação é compartilhada por Heitor Scalambrini Costa, professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutor em Energética. Para ele, a licença concedida à Petrobras “desmascara o discurso do atual governo federal”. “Com a licença, é certa a expansão da exploração do principal responsável pelas emissões de CO₂. É uma enorme derrota da sociedade, que em sua maioria rejeita a exploração de petróleo atingindo o maior rio do mundo”, afirma.
Scalambrini lembra que a expectativa era de que o governo transformasse a Petrobras em uma empresa de energias renováveis: “o que se viu foi a criação de uma diretoria de transição energética irrelevante. O discurso continua preso ao século passado, insistindo na ideia de que os negócios do petróleo financiarão as fontes renováveis. Na prática, seguimos reféns do petróleo”.
Riscos da expansão
desordenada das renováveis
Os dois especialistas também convergem quanto aos riscos de expansão desordenada das energias renováveis. Ambos criticam o avanço de grandes empreendimentos eólicos e solares sem planejamento territorial e sem salvaguardas socioambientais. “A expansão centralizada dessas fontes, sem respeito às comunidades, já é um vetor de injustiça social. Essas formas de geração são necessárias para enfrentar as mudanças climáticas, mas não podem violar direitos”, alerta Joilson.

Heitor Scalambrini reforça que associar energia renovável a energia limpa é um equívoco: “todo processo de geração provoca impactos. O crescimento vertiginoso e desordenado de eólicas e solares tem causado danos ambientais e sociais, especialmente no Nordeste, onde a instalação de parques eólicos tem comprometido a saúde de comunidades e provocado desmatamento da Caatinga. É um modelo insustentável que repete velhas práticas de exploração.”
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Energia descentralizada
e participação popular
Como alternativa, Joilson defende o fortalecimento da geração descentralizada, com foco na energia solar fotovoltaica. Ele destaca que o Brasil já possui mais de 3,8 milhões de sistemas de geração distribuída, que abastecem cerca de 7 milhões de unidades consumidoras e somam mais de 43 mil megawatts de potência instalada: “Apesar de ser uma modalidade regulamentada, ainda é subestimada. O Estado precisa liderar pelo exemplo, adotando sistemas em escolas, hospitais e prédios públicos. Hoje, menos de 13 mil sistemas estão ligados ao poder público, um número irrisório diante do potencial existente”.
A crítica dos especialistas reforça o apelo da sociedade civil presente na Carta Aberta, que pede coerência e participação efetiva no processo de formulação do Plano Nacional de Transição Energética (Plante) e do Fórum Nacional de Transição Energética (Fonte). O documento cobra do governo brasileiro a apresentação, na COP 30, de compromissos concretos para substituir combustíveis fósseis, financiar alternativas sustentáveis e garantir os direitos de povos indígenas e comunidades tradicionais.
Para Joilson Costa, a credibilidade do País na conferência depende dessa coerência: “o Brasil só poderá liderar a transição energética se fizer isso com transparência, participação social e respeito aos direitos humanos e territoriais. Liderar pelo exemplo é o primeiro passo para uma transição verdadeiramente justa e popular”.



