Por Alice Sales
Colaboradora
Cinco comunidades tradicionais no Estado do Ceará foram selecionadas para serem atendidas por ações de Vigilância Popular de Saúde por parte de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e integrantes do Participatório em Saúde e Ecologia dos Saberes, que formam o Projeto Caravana. As experiências selecionadas serão protagonistas do projeto que une organizações comunitárias, serviços públicos de saúde e instituições de pesquisa que atuam na defesa da vida de populações vulnerabilizadas. Ao todo, dez experiências foram selecionadas, sendo cinco no Ceará e outras cinco divididas uma para cada região do Brasil.
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As primeiras atividades foram desenvolvidas com o Povo Anacé da Terra Tradicional, do município de Caucaia, no contexto da luta pela demarcação do território e preservação do Lagamar do Cauípe. Em seguida, o projeto atendeu um território na Chapada do Apodi, nos municípios de Tabuleiro do Norte e Limoeiro do Norte, onde comunidades agroecológicas vêm sendo atingidas pelos impactos da ampliação das atividades do agronegócio. A terceira parada da caravana foi em Aracati, mais precisamente no Quilombo do Cumbe, onde a Vigilância Popular da Saúde, Ambiente e Trabalho (VPSAT) identifica problemas e impactos causados pela extração de água pela Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) no território, o avanço da carcinicultura (criação de camarão em cativeiro) e a ampliação de parques eólicos, cada vez mais comuns em todo o Nordeste.
De acordo com Fernando Carneiro, pesquisador da Fiocruz Ceará e coordenador do Participatório de Saúde e Ecologia de Saberes, as práticas de vigilância popular de saúde, ambiente e trabalho atuam nas comunidades e na defesa da vida. Isso se dá por meio de monitoramento participativo do ambiente, do território, geralmente em populações que são consideradas guardiãs do território e da biodiversidade.
A ideia é que a comitiva saia de cada um dos territórios com um plano de ação construindo junto com cada comunidade para atuar frente aos problemas levantados que adquira visibilidade por meio da Comunicação Popular, considerada um dos pilares da Vigilância Popular. “Esse é um momento de viabilizar a luta dessas comunidades que muitas vezes não são ouvidas e têm seus direitos desrespeitados”, ressalta o pesquisador. Além disso, ao fim das ações, será produzido um Guia Nacional de Vigilância Popular para subsidiar o Sistema Único de Saúde (SUS) e uma websérie que será lançada em agosto com o registro de todas essas experiências.
Na programação da pesquisa-ação, as visitas são realizadas em dois dias. No primeiro, o grupo de trabalho fez um reconhecimento e uma vivência do território em diálogo com a comunidade para apontar os indicadores de vigilância popular. No dia seguinte, foram feitas apresentações, oficinas e debates com a visão dos atores envolvidos; e o compartilhamento de experiências entre pesquisadores e participantes do movimento sobre as práticas de Vigilância Popular da Saúde, Ambiente e Trabalho (VPSAT), além da construção do plano de ação.
Para a pesquisadora da área de Saúde e Ambiente da Fiocruz Ceará, Ana Cláudia Teixeira, o contato com a comunidade nos territórios possibilita o conhecimento das potencialidades, necessidades sociais e de saúde e dos principais desafios enfrentados pelas populações do campo, florestas e águas. “A gente quer conhecer todas as vivências e compreender o modo de vida e de trabalho das comunidades promovendo um diálogo entre o saber popular e o da academia. A gente busca esse diálogo e as comunidades participam ativamente das pesquisas, não somente ao refletir sobre os problemas, mas também sobre as potencialidades que elas têm, como artesanato, pesca artesanal, tecnologias sociais e quintais produtivos”, destaca.
Atenção para as comunidades
Um dos territórios selecionados para receber as ações da Caravana, a Comunidade Quilombola do Cumbe está situada no litoral leste do Ceará. Lá vivem famílias remanescentes de quilombos em uma área que se localiza ao lado da famosa Praia de Canoa Quebrada, um dos pontos turísticos mais movimentados do Estado. Limitada ao mar por dunas que abraçam o território quilombola, a área está envolta também por um mangue que ajuda a manter o povoado por meio da pesca, mariscagem e da cata de caranguejo, principais fontes de sustento local. O território sofre com pressões pela extração de água pela Cagece, pelo o avanço da carcinicultura e a ampliação de parques eólicos.
Para a pescadora Cleomar Ribeiro, que atualmente é presidente da Associação Quilombola da Cumbe, existente há 25 anos, a cata do caranguejo ficou completamente comprometida nos anos 2000, o que deixou as famílias praticamente sem renda. Foi a partir desse cuidado com o ecossistema que alimenta todos da comunidade que surgiu a Associação. Ela explica que, para quem vive no território desde criança, como ela, é possível ver as drásticas alterações da natureza. “A gente se reúne aqui para empoderar a comunidade sobre as lutas que ainda precisaremos lutar. Você viu que tem criança participando? São elas quem vão conscientemente defender nosso lugar de origem”, ressalta.
Ronaldo da Silva, conhecido por muitos como, o professor do mar da comunidade do Cumbe, é nascido e criado no mar. Trabalha na pesca durante o inverno e no verão cata caranguejo no mangue. Ele é vice-presidente da Associação Quilombola da Cumbe e aponta como principal desafio a luta pelo território. Ele explica que cerca de 180 famílias, 110 se reconhecem como quilombolas.
Segundo Ronaldo, os empreendimentos avançam em várias direções e comprometem fortemente a comunidade: “Eles chegam falando em desenvolvimento e renda, mas, com o passar do tempo, a carcinicultura, por exemplo, secou o mangue e praticamente não encontramos mais siris por lá, os caranguejos estão fracos e cegos. Já o parque eólico está instalado no meio da duna, no aquífero que abastece o Aracati e compromete o lençol freático. Hoje já não temos água com facilidade e a gente nem tem mais livre acesso para pescar”.
De acordo com o líder comunitário João do Cumbe, a situação de Vigilância Popular já está incorporada na prática e no dia a dia da comunidade. “Isso acontece por meio da relação que nós estabelecemos com o território por meio do turismo comunitário, da pesca artesanal e do lazer. Nesse nosso dia a dia, vamos percebendo as transformações que vão se dando e as ameaças que vão se instalando no território e a partir desse movimento, nós nos organizamos para denunciar essas transformações.”
João relata que, ao longo dos anos, com a retirada excessiva do lençol freático do território, as lagoas passaram a secar rapidamente, assim como outras fontes de água. Além disso, a fauna e a flora local vem sofrendo com mudanças relativas a essa exploração. Outra preocupação é a carcinicultura em área de manguezal, que também contribui para a contaminação do ecossistema, viola direitos da comunidade e aprofunda o racismo ambiental.
“Além disso, também sofremos com a instalação dos parques de energia eólica. Continuamos pagando um preço muito alto pela energia, perdemos nosso território e a paisagem mudou. Para ainda usarmos parte desse território tivemos que fazer muita luta. São atividades completamente incompatíveis com as práticas tradicionais,. Nossos direitos não são respeitados”.
Como expectativa com relação às ações do Projeto Caravanas, João do Cumbe espera estabelecer relação entre as entidades e movimentos que vêm fazendo esse trabalho de Vigilância Popular nas comunidades tradicionais, dar visibilidade para a importância que esses territórios possuem para a resistência e existência do seu povo, além de dialogar com a sociedade sobre as ameaças e violências que a comunidade enfrenta e denunciar essas pressões que sofrem.
Povo Anacé na Aldeia do Cauípe
Além da luta por terra, o Povo Anacé, em Caucaia, também luta por saúde, reconhecimento de direitos e pelo acesso à água de qualidade. Paulo Anacé, liderança indígena da Aldeia Cauípe afirma que, mesmo tendo o Rio Cauípe no território, as aldeias do Povo Anacé vivem sem direito à água, pois o recurso hídrico do rio acaba indo para o Complexo Industrial e Portuário do Pecém. “Temos bastante água, bastante recursos naturais, mas não podemos usufruir desse direito. A água do nosso rio vai para o Complexo Industrial do Pecém, mas não vai para as famílias. Que progresso é esse? Para quem realmente é esse progresso?”
Maria da Paz, indígena do território Anacé no Planalto Cauípe afirma: “o que a gente vê hoje é que nós aqui, a população do Planalto Cauípe e Pitombeiras não tem água, e, se tiver, é porque tem uma cacimba lá dentro do seu terreno, porque senão vai ter que comprar de carro-pipa ou tem que pedir ajuda de outras pessoas, ou ir até o rio, se arriscando muitas vezes para usar a água do rio para beber, lavar uma roupa, uma louça. Isso é muito difícil para as pessoas aqui”.
Zenaide Lima da Costa Felix, do Planalto Cauípe é uma das pessoas que precisam do rio para uso pessoal, como lavar roupa e louça, por exemplo. Ela afirma que o carro-pipa da Prefeitura de Caucaia não chega à sua casa, o que dificulta ainda mais o seu acesso à água. “Nos sentimos injustiçados. Um descaso total. Do rio para a minha casa dá uns 300 metros e vemos a água indo embora e não podemos usufruir na nossa casa. Um descaso total.”
Para Paulo Anacé, liderança local, a ação do Projeto Caravana agregou muito à luta de seu povo, uma vez que em um primeiro momento, a iniciativa foi onde muitos não vão: “Vieram conhecer nosso território e nossa luta, nossa invisibilização. A Fiocruz além disso consegue com esse momento levar nossa luta e história para além do território pois infelizmente o Estado e a imprensa na sua maioria não quer que sejamos ouvidos”.
E completa: “Tivemos o primeiro momento com a Oficina do VPSAT e após essa oficina nosso povo está mais atento a todo o desprezo e desrespeito do poder público ao nosso território, vimos que precisamos expor mais essas dificuldades e essa invisibilização pelo poder público e lutar com apoio de todos que acreditam na luta pela saúde, vida e Terra.”
Maria esteve presente na oficina e afirma que o momento foi de muita importância para ela e para a luta do povo Anacé. “Hoje, eu tive um aprendizado muito grande. Essa parceria com a Fiocruz veio trazer um aprendizado maior e a gente fica sabendo que não estamos só, ou seja, temos pessoas que podem nos ajudar a sermos conhecidos”.
Sobre a vigilância popular, Maria da Paz explica que o termo não é tão comum de ser falado, muito menos de ser ouvido, mas a atividade realizada pelo Participatório mostrou que o povo Anacé faz a sua vigilância de alguma forma. “Participar dessa oficina foi muito importante, até porque a gente sabe que, no decorrer da nossa vida, no nosso cotidiano a gente tem pessoas que estão acompanhando para ver o que está certo, o que está errado, que caminho vamos seguir para que a gente não tenha os nossos direitos violados. Também sabermos quais são os nossos direitos dentro da sociedade e fazer tudo de acordo com o que nos é certo”.
O projeto
Além das experiências no Ceará, o projeto atenderá em áreas próximas de complexos siderúrgicos, no Rio de Janeiro e Maranhão; Promoção de territórios saudáveis e sustentáveis no Mato Grosso; Em defesa do direito à vida e contra os agrotóxicos no Assentamento Nova Santa Rita do MST, no Rio Grande do Sul; e Teia de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta, em Parintins no Amazonas.
O projeto da Fiocruz Ceará foi uma das seis propostas selecionadas para pesquisas interdisciplinares voltadas para as Emergências em Saúde Pública da Fiocruz pelo Edital Inova. Ao todo, 100 propostas foram enviadas com ênfase em sistemas de vigilância participativa, controle e prevenção de doenças endêmicas ou de surtos prévios na zona de desastre e saúde nas fronteiras do País, Vigilância em Saúde do Trabalhador, Avaliação da implementação da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora, Perfil nacional da cadeia de substâncias químicas no Brasil, e Ondas de Calor e Saúde Humana.
E muito gratificante a emportancia desses trabalhos sociais dentro das nossas comunidades.psrabens pela a iniciativa.