‘Desigualdade e crise climática estão completamente juntas’, aponta Alexandre Costa

Homem branco, com cabelo e cavanhaque grisalhos, usa óculos com armação preta e camiseta roxa. Ao fundo, vegetação

O pesquisador e ativista Alexandre Araújo Costa defende uma transição energética justa

Por Agatha Cristie *

Em entrevista, o físico e ambientalista cearense Alexandre Araújo Costa explicou o que é a emergência climática, descreveu o estágio atual do aquecimento global e mostrou as consequências dramáticas para a manutenção da vida no Planeta, caso não se avance na redução das emissões de gases de efeito estufa que provocam as mudanças climáticas e o aumento da temperatura média da atmosfera.

Zerar o desmatamento, deixar o carbono no chão, abandonar de vez o uso de carvão, petróleo e gás são exemplos de medidas que ele defende para reduzir em metade as emissões de CO2 na atmosfera. Alexandre também criticou o governo Bolsonaro pela posição que hoje ocupa no incentivo a políticas anti meio ambiente: “estamos vivendo no pior dos mundos”. E defendeu a derrubada do presidente atual como condição Sine Qua Non para o avanço das políticas ambientais no País. Por fim, disse que é preciso garantir uma transição global justa do modelo energético, com integridade dos biomas e respeito às comunidades e povos tradicionais.

Alexandre é cientista, professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece), tem graduação e mestrado em Física pela Universidade Federal do Ceará (UFC), doutorado em Ciências Atmosféricas pela Universidade do Estado do Colorado, e pós-doutorado na Universidade Yale. Membro do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, foi um dos autores principais do 1º Relatório do PBMC, um estudo pioneiro em seu âmbito.

Foi também gerente do Departamento de Meteorologia da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos (Funceme). E tem se destacado como uma das mais importantes vozes do ativismo climático no Brasil, ao defender a credibilidade da ciência, divulgar informação relevante para o grande público, combater o negacionismo climático, e lutar pela implementação de políticas ecologicamente responsáveis.

Pai de Artur, Bárbara e Greta, tutor de oito felinos e uma leporídea, Alexandre divide a sua preocupação sobre o futuro da humanidade e da vida no Planeta com os seus seguidores no blog e no canal do Youtube: O que você faria de soubesse o que eu sei?

Confira a entrevista:

Agatha Cristie – O que é emergência climática?

Alexandre Araújo Costa – Nós temos hoje, de fato, uma situação dramática do ponto de vista global e isso é algo que a ciência já tem se debruçado há bastante tempo, várias décadas. E, obviamente, também alertado para a gravidade da questão. Nós temos hoje uma quantidade de dióxido de carbono (CO2) da atmosfera que está acima de 400 ppm (partes por milhão), na faixa dos 415, 420 ppm, isso é equivalente a quase 50% do valor pré-industrial, do clima, da atmosfera pré-industrial. É um valor que, da última vez, a Terra viu uma concentração tão alta de dióxido de carbono foi a cerca de 3,2 bilhões de anos, no momento que a gente chama de período quente do Plioceno médio. E, ao contrário dos últimos 200 mil anos com certeza, talvez 2 milhões de anos em que a Terra alternou períodos quentes e frios, era um período em que as temperaturas estavam tipicamente 2° C, 3° C, acima dos níveis atuais, o Planeta só tinha uma calota polar, a do hemisfério sul, e os oceanos estavam de 15 a 20 metros acima dos níveis atuais. O mundo com mais de 400 ppm de CO2 na atmosfera é esse mundo aí que eu acabei de descrever. É outro planeta. Não é o planeta compatível com a nossa sociedade organizada em uma civilização globalizada, organizada com 8 bilhões de seres humanos. É simplesmente incompatível. Nós também podemos afirmar com alta dose de certeza que nós estamos marchando muito fortemente para ultrapassar o que seria o nível administrável de alteração climática, que é o patamar de 1,5° C em relação ao período pré-industrial, nós em 1,2° C e, evidentemente, se continuarmos emitindo carbono nós vamos ultrapassar 1,5° C facilmente, muito provavelmente em uma década e meia. Esse cenário é que chamamos de emergência climática.

AC – O que implica o aumento da temperatura em 1,5° C?

AAC – Essa é uma questão que surgiu especialmente após a assinatura do Acordo de Paris (2016): qual a diferença entre 1,5° C e 2° C? A diferença é enorme em vários aspectos que a gente olhe. Primeiro, do ponto de vista dos eventos extremos. É difícil a gente falar sem nos tocar com as 100 mortes em Pernambuco. É preciso dizer, com todas as letras, que as chuvas de Pernambuco são reflexos das mudanças climáticas. A distribuição de ocorrências de eventos extremos no Planeta mudou em diversos aspectos, por exemplo, ondas de calor. Nós tivemos agora a repetição de eventos de calor extremos, fora de época, na Índia e no Paquistão, repetindo um fenômeno que aconteceu em 2015 que matou 4 mil pessoas de hipertermia, quando o organismo não consegue se livrar do calor metabólico e o corpo entra em colapso. Essas ondas de calor estão cinco vezes mais frequentes, a estatística é essa, e vão ficar ainda mais frequentes com 1,5° C e podem ficar muito mais frequentes com valores maiores de aquecimento global.
Na realidade, estima-se que, se o aquecimento global chegar a 4° C, em um cenário mais extremo, esse tipo de onda de calor ocorreria todo ano. Ou seja, tornaria porções inteiras do Planeta que hoje são muito povoadas em praticamente inabitáveis. Segundo, secas e chuvas extremas, porque essas duas coisas estão relacionadas. O ciclo hidrológico do Planeta mudou. Como nós temos uma atmosfera mais quente, essa atmosfera se tornou um reservatório maior de vapor de água. Existe uma lei simples da termodinâmica que diz: quanto maior a temperatura, mais vapor de água a atmosfera consegue conter. E isso significa, portanto, que até essa atmosfera saturar, ou seja, encher de vapor de água, ela primeiro vai tirar muito mais água da superfície, então as taxas de evaporação e evapotranspiração crescem e com isso a gravidade da seca, a severidade dos períodos de estiagem aumenta. Pode prolongar períodos de estiagem, tira com mais intensidade e com mais velocidade a umidade dos corpos hídricos do solo, impõe mais estresse para a vegetação. E secas extremas em regiões subúmidas e semiáridas são 70% mais frequentes do que no período pré-industrial.
Do outro lado, o que acontece é o seguinte, essa mesma atmosfera que retirou mais água da superfície, agora contém uma quantidade maior de vapor e a chuva vem da condensação desse vapor. Então, se tem mais vapor, tem mais matéria-prima para produzir nuvens de tempestade. Assim, as chuvas se tornam mais intensas, mais violentas, furacões também se tornam mais intensos, e o que acontece hoje é que as tempestades estão 30% mais frequentes do que no período pré-industrial e 7% mais intensas. Isso tudo com pouco mais de 1° C. Calamidades como as ocorridas na Bahia, Rio de Janeiro, Alagoas e Pernambuco mostram é que nós não estamos sequer preparados para as tempestades da década de 20 com 1° C de aquecimento. O que dizer sobre as tempestades da década de 40, com 1,6° C? Sobre as tempestades de 2060, com aquecimento de 2° C? Em 2100 acima dos 3° C? Por que a dependência é exponencial. Chegou ao ponto que não tem adaptação possível. Os eventos extremos são uma das coisas que estão gritando para nós.
Mas tem mais: o grau de comprometimento de elevação do nível do mar muda muito com o patamar de aquecimento. Mesmo que a gente siga fazendo tudo que está ao nosso alcance e a gente consiga deter o aquecimento na faixa de 1,5° C, é muito provável que tenha um avanço muito superior na elevação do nível do mar da ordem de várias centenas de vários centímetros a 1 m (metro), mesmo no melhor cenário. Nós precisamos realmente dizer qual é o tamanho do problema, porque 1,5° C é o melhor que a gente consegue, porque a gente não consegue frear esse Titanic instantaneamente, vai ter alguma inércia. No caso do nível do mar, em regiões da zona costeira de baixa altitude, 1 m faz muita diferença, pode ser um estrago substancial.
Outra questão: os corais são berçários fundamentais para a vida marinha e o aquecimento das águas tropicais rompe a simbiose de corais e algas, isso pode levar ao branqueamento e à morte desses corais. Isso arrasta consigo todo o ecossistema marinho que depende deles. Com 1,5° C, 70% dos corais tropicais já ficam em condições de risco de branqueamento e morte. Com 2° C todos os corais tropicais do Planeta ficam nessa rota de risco extremo de desaparecer. Isso pode provocar um grau de desequilíbrio e de extinção em massa dos oceanos que a gente não tem a menor noção do tamanho. Além de, quanto mais para cima nós jogarmos o aquecimento, maior é a probabilidade de nós dispararmos feedbacks climáticos, ou seja, ultrapassarmos os chamados tipping points, ou pontos de rupturas, pontos de inflexão do sistema, a partir dos quais o aquecimento global pode ganhar força própria.
Se a gente parar de emitir, zerar o desmatamento e fazer uma transição rápida no sistema energético para abandonar os combustíveis fósseis, se nós fizermos isso agora com pouco tempo as temperaturas param de subir, mas, a partir de um determinado ponto, pode não ser o caso, porque a gente pode ter disparado processos tão violentos como, por exemplo, derretimento do permafrost do Ártico que leva à liberação de metano ou processos que levam à mortandade de árvores em florestas, seja tropicais, temperadas ou boreal, multiplicação dos incêndios florestais e isso também leva à liberação de carbono na atmosfera. Ou seja, se disparar esses feedbacks o processo ganha vida própria. Não podemos deixar para brecar isso depois, porque aí é ladeira abaixo. Não estamos aí ainda, mas nós estamos empurrando o sistema para perto disso. Então, não dá para a gente caracterizar tudo isso como outra coisa senão como uma emergência. A gente precisa frear esse processo já.

AC – O que teria que ser feito para barrar o aquecimento global?

AAC – Todos os estudos mostram que nós precisamos, até o fim desta década, reduzir em praticamente metade, 45% a 50%, as emissões de dióxido de carbono e não há outro caminho para fazer isso que não seja uma transição violenta no sistema energético, preferencialmente com isso feito com menos demanda de energia, porque é muito mais difícil transicionar o sistema se ele continua crescendo. Então é preciso que essa demanda energética pare de crescer, e que a gente abandone o uso de carvão, petróleo e gás o mais rápido possível, ou seja, tem que cortar pela metade isso aí ao longo dos próximos anos, e que a gente elimine de uma vez por todas a destruição de habitats com o desmatamento, especialmente nas florestas tropicais. Então é desmatamento zero. É deixar o carbono no chão, basicamente. O carbono vegetal, o carbono biológico em cima do chão, da floresta e do solo, e o carbono geológico ou fóssil embaixo do solo. Mas, estamos fazendo tudo ao contrário, tirando tudo isso aí e botando para a atmosfera.

AC – Temos uma economia muito baseada nos combustíveis fósseis. Como você vê essa expansão no Nordeste brasileiro, em que a cadeia produtiva do petróleo e gás em Sergipe, por exemplo, tem afetado os modos de vida dos povos e comunidades tradicionais?

AAC – A economia é completamente baseada na exploração de combustíveis fósseis. Toda a expansão da revolução industrial foi feita às custas desse processo. É a tragédia de pegar um trem que está indo para o precipício atrasado, isso é o que acontece no Nordeste, e praticamente repete lógica de Suape em Pernambuco, a lógica do Pecém no Ceará, que são empreendimentos extremamente intensivos em carbono, aqui [Ceará] a lógica é a mesma [de Sergipe], termoelétrica, siderúrgica, refinaria, que levam ao aumento das emissões de carbono. Uma termoelétrica implantada agora deve funcionar por, pelo menos, 30 anos. Então como que a gente consegue ter plano de redução das emissões compatíveis com um processo desse? Não tem como. Então, é algo completamente na contramão, uma aposta completamente no caminho oposto ao necessário.
Nós precisaremos, com o devido cuidado para com os territórios, biomas e comunidades, apostar os investimentos 100% em energias renováveis e, principalmente, em setores econômicos que ao invés de produzir commodities para exportação, que ou são tipicamente petróleo bruto ou aço na forma ainda a ser moldado, isso tudo com uma grande intensidade de uso de energia e emissão de carbono, a gente precisaria investir em mais tecnologia de baixa intensidade de carbono e ao mesmo tempo fazer apostas fundamentais para garantir a criação de uma economia que remunerasse o reflorestamento, a produção agroecológica, uma economia que leva à recuperação dos estoques de carbono no solo. Mas, infelizmente, a posta no campo é sempre no agronegócio para exportação, é aposta na mineração, seja para produzir minérios de ferro ou minerais raros para a indústria eletrônica, seja para a produção de fosfato para a produção desse sistema agropecuário. Enfim, é uma rota completamente fora do que seria necessário.
Imagino que todo esse processo em Sergipe tenha a ver com os leilões de alguns anos atrás, inclusive antes mesmo do golpe de 2012, na aposta do petrodesenvolvimento. Leilões que permitiram não só à ExxonMobil, mas também à BP, Shell, Pine Oil e tantas outras, a adquirir lotes de exploração no Nordeste brasileiro. A gente precisava que esse petróleo permanecesse exatamente onde está. Ninguém extrai petróleo para ficar como enfeite. A própria extração de petróleo e gás, que em geral é feita junta, é um processo que já libera gases de efeito estufa. A simples prospecção de procurar o petróleo, quando perfura o poço a primeira coisa que escapa é o metano, chamado de maneira muito generosa de gás natural, eu prefiro chamar de metano ou gás fóssil. O metano é um gás de efeito estufa de vida mais curta que o CO2 mas com uma potência de absorção de infravermelho muito maior, até pela menor abundância qualquer quantidade que se joga de metano na atmosfera faz diferença. Tanto é que, as estimativas são que 1g de metano ao longo de 100 anos equivale a jogar na atmosfera 28g de CO2. Mas, como o tempo de vida do metano é mais curto, na verdade, esse aquecimento é concentrado no curto prazo, liberar 1g de metano na escala de 20 anos é equivale à liberação de 80g de CO2. Fura, escapa. Vai explorar, escapa. Qualquer pequena abertura no gasoduto ou erro mínimo de operação na térmica a gás isso é o que eles chamam de emissão fugitiva, isso sem contar que eles querem pegar até o último centímetro cúbico de gás, no fim, eles usam o que a gente chama de faturamento hidráulico, fracking, para destruir a rocha, aí é que não se tem controle sobre o vazamento mesmo. Então é muito mais violento do ponto de vista das emissões fugitivas de metano. É uma indústria irracional demais.

AC – Em Sergipe, Povos e Comunidade Tradicionais resistem à operação de exploração de petróleo pela ExxonMobil, na Foz do Rio São Francisco, principalmente, porque eles veem a possibilidade de vazamento de óleo, a partir da experiência do derramamento de óleo na costa do Nordeste, em 2019. Um crime ambiental até impune. Como especialista, você acha que há possibilidade de vazamento, em caso de erro na operação?

AAC – Não existe operação de petróleo segura. A pergunta não é se, mas quando e em que dimensão. Não existe uma petroquímica que não tenha ficha suja, literalmente nesse caso especificamente, a ExxonMobil tem um histórico. A ExxonMobil detonou o Ártico com o Exxon Valdez. Mesmo que o risco individualmente seja baixo, em algum momento vai dar errado, é o risco de multiplicar essas operações cada vez mais. Essas empresas, inclusive, querem explorar ao máximo, e o mais rapidamente possível, todas as reservas que elas puderem porque corre o risco de a gente conseguir, com a pressão de movimentos sociais e eventuais avanços na política no debate da questão climática, impor limites à exploração de alguns desses combustíveis. Essa lógica aumenta ainda mais os riscos. Nós já tivemos uma situação trágica há pouco tempo no litoral do Nordeste, brutalmente atingido por um vazamento de petróleo. Então a gente precisa olhar para o Exxon Valdez no Ártico, Deepwater Horizon no México (BP), o que a Shell fez na Nigéria, Chevron fez no Equador, na Amazônia Equatoriana com os rios. Em todo lugar que eles foram deixaram rasto de destruição, guerra, miséria, poluição, aquecimento global e enriquecimento. A ExxonMobil, importante a gente dizer que, talvez possa ser considerada a mais criminosa dentre todas as empresas do ramo petroquímico por um outro aspecto. A ExxonMobil sabia da questão da gravidade climática desde os anos de 1970 e, ainda assim, seguiu financiando o negacionismo climático em todo o mundo. Eu conto essa história completa em meu canal do Youtube. A gente tinha que ter em Corte Internacional o povo contra a ExxonMobil, e o mínimo que poderia ser feito é expropriar todo o ativo da empresa, todo o dinheiro que ela tem, todo o dinheiro dos seus acionistas, e usar esse dinheiro para fazer transição energética. Em um mundo sério, não era nem para essa empresa estar operando, tinha que ser fechada uma empresa dessa.

AC – Como o Brasil está localizado no debate das mudanças climáticas?

AAC – Nós estamos no pior dos cenários. Quando a gente olha para trás, nos governos progressistas do PT, nós tínhamos um grau de contradição grande. Se de um lado, houve com efeito, especialmente nos governos do presidente Lula mesmo com o código florestal, uma política que permitiu derrubar o desmatamento, isso é fato, primeiro com Marina Silva no ministério e o próprio governo Lula tendo uma política de barrar o crédito dos desmatadores e toda uma política de monitoramento que foi construída a partir do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária]. Por outro, fortaleceu o agronegócio para exportação. Isso levou ao desmatamento acelerado do cerrado, à pressão desse setor para chegar na Amazônia e, obviamente, o fortalecimento deles enquanto força política. Hoje, o Brasil é refém de uma bancada gigantesca do agronegócio [Bancada do Boi]. Outra contradição: enquanto o Brasil atuava de uma maneira, em geral, positiva na arena internacional, ao trabalhar com o debate das responsabilidades diferenciadas entre Norte e Sul global, portanto, reivindicando que o ônus maior da conta climática fosse paga por quem de fato contraiu, que foi o Norte Global, e no Acordo de Paris que teve uma voz importante, o Brasil também apostava em petróleo, ao abandonar, inclusive, a política de biocombustíves, chegou a atrasar os avanços em pesquisa de renováveis para apostar no pré-sal e demais fontes de combustíveis fósseis. Então já não tínhamos um cenário bom com bastante contradição.
Mas hoje nós estamos no pior dos mundos. Estamos vivendo em um governo que autoriza madeireiros a promover queimadas, a soja e o gado a invadir à Amazônia, destruir unidade de conservação, destruir terras indígenas, promover o genocídio contra o povo Yanomami. Nós temos um governo que incentiva, literalmente, e autoriza aberrações como o Dia do Fogo. Um governo que disse abertamente que era para “passar a boiada”. Nós temos um governo que, do ponto de vista energético, retrocede mais ainda. Não estamos falando nem de petróleo mais, o petróleo é para entregar, dar de graça. Estamos falando de carvão. É um governo tão amaldiçoado que nos joga para trás, incentiva o carvão, coloca como lei em um momento em que a gente estava precisando era encerrar qualquer subsidio aos combustíveis fósseis começando pelo carvão. Além de ser um governo que sustenta toda sorte de parasitismo, de investimento sem qualquer freio ambiental. Nesse sentido, eu não tenho a menor dúvida de que a tarefa zero é removê-lo da Presidência da República e mudar minimamente a composição do congresso, mexer na correlação de forças da sociedade para que a gente tenha condição de disputa. Isso é condição Sine Qua Non para a gente ter qualquer agenda ambiental. No Brasil, onde a principal fonte de emissão é o desmatamento, sem zerar o desmatamento nós não temos a menor condição de emplacar nada.

AC – Existe uma condição de desigualdade no processo de descarbonização entre Norte e Sul global?

AAC – Esse é um aspecto importante quando a gente fala de transição energética. Porque nós temos, obviamente, a necessidade de descarbonizar a economia globalmente. Europa, principalmente, e Estados Unidos têm feito promessas e colocado metas que a princípio se alinham com o objetivo de conter o aquecimento global em 1,5° C, ou pelo menos 2° C. Mas, a armadilha é que esse processo não é feito globalmente de maneira justa, gera um processo de colonização climática, onde, ao invés de os europeus reduzirem a sua demanda de energia, reduzirem o seu nível de consumo e apostarem melhor no isolamento das casas, reduzir viagens aéreas, ou seja, adotarem um modo de vida mais sustentável, a lógica é manter essa demanda energética em um patamar alto, ou até mesmo crescer essa demanda, fazer uma transição que troca combustível fóssil por hidrogênio. Eles podiam fazer a transição ocupando o pouco território que têm com aerogeradores e usinas solares, mas escolhem fazer uma transição olhando para o Sul global, especialmente Norte da África e Nordeste brasileiro. Esse é um risco muito elevado dos projetos envolvendo o hidrogênio verde para exportação, porque aí a ideia é, basicamente, usar a energia local, eólica e solar aqui instalada para fazer a eletrólise da água, produzir o hidrogênio e leva-lo para a Europa. Inclusive, todas as articulações hoje são para isso. O Porto do Pecém foi comprado pelo mesmo administrador do Porto de Roterdã, na Holanda. Então, basicamente, seria a lógica em que a gente facilitaria a descarbonização da Europa, mas correndo o risco de atrasar a nossa própria descarbonização. Nós podemos avançar muito com renováveis para nós mesmos. E aí tem um outro detalhe, com essa ideia de atender a exportação e não as necessidades locais, a lógica predatória é muito mais facilitada, o que leva a gente a pensar na multiplicação de conflitos do tipo, a eólica se instalando em territórios costeiros que são usados por comunidades de pescadores, ou ocupando porções de serras onde tem agricultura familiar, usinas solares de grande porte que promovem desmatamento da Caatinga, que já é uma realidade, ao invés de colocar painel solar na casa das pessoas. Essa pode ser uma lógica muito perigosa.
Quando o tema é transição energética, a gente precisa falar de transição justa e isso implica que o Sul global não pode simplesmente arcar com a conta, até porque assim a conta não fecha. A gente até podia, em parceria, exportar um pouco hidrogênio, mas em um processo que garantisse a nós a integridade dos nossos biomas, o respeito às nossas comunidades e à nossa própria transição energética. O que a gente precisa da Europa é a quebra de patente para transferência de tecnologia para cá, e o que que está acontecendo é o oposto, estamos herdando o tipo de tecnologia que eles não querem mais, por exemplo, trazem para cá termoelétricas inteiras que eles estão desmontando lá para serem montadas aqui. Isso é uma coisa que faz muita falta, por exemplo, o Brasil como um ator internacional capaz de promover um grau de tensionamento, mas estamos entre pária e vassalo.

AC – Essa é a lógica também pela qual opera o racismo ambiental?

AAC – Certamente. Porque a questão climática entrelaça múltiplas injustiças. Obviamente, tem a questão nacional que remonta ao colonialismo, as diferenças entre o Norte e o Sul global, os países capitalistas centrais e a periferia do sistema, mas naturalmente, até por conta do processo histórico, isso se entrelaça totalmente com a questão étnico-racial em muitas escalas. Na escala global, porque são os países do sul e sudeste asiático, da África e da América Latina em geral ficam em situação mais vulnerável e com dificuldade de lidar com as mudanças climáticas, são os mais atingidos. Na escala local, o colonialismo fez com que as comunidades racializadas fossem justamente, não por coincidência, mais pobres e em geral é quem não tem condição de morar em outro local que não seja zona de risco, é quem é obrigado a respirar o poluente do complexo industrial petroquímico, portanto, sofrer com problemas respiratórios, com mais índices de incidência de câncer, é para quem todo o ônus é jogado. Então eu sempre digo para esses caras: vocês não acham bonito uma termoelétrica no seu quintal, onde você queira respirar os vapores dela todo dia.

AC – O racismo ambiental incide mais sobre as mulheres?

AAC – Eu diria que é muito mais violento sobre as mulheres. Em geral, é quem termina segurando o ônus de como a crise climática se abate sobre as famílias, sobre as crianças, em processos de migração, multiplicação de refugiados climáticos. Quando a gente lembra de como foi asqueroso o tipo de declaração em que o “Mamãe Falei” se referiu às refugiadas ucranianas de guerra, pensa isso multiplicado em uma escala enorme e como as mulheres sofrem com um grau de vulnerabilidade muito maior a partir da lógica patriarcal e tem, por fim, também a injustiça geracional. As gerações mais jovens vão arcar com o pior, no estilo maior “não me beneficiei dessa festa e vou pagar a conta dela”. É isso que mulheres jovens como Greta Thunberg, Vanessa Nakate, e tantas outras, têm colocado em evidência. É absolutamente inaceitável que um punhado de homens brancos, ricos, dos países do Norte global, se beneficiem às custas da devastação do Planeta que pode ser tornar inabitável para as gerações futuras, nos quais os mais pobres, mulheres, negros, e indígenas terminem sendo os mais expostos às tragédias. Desigualdade e crise climática estão completamente juntas.

* Agatha Cristie Silva elaborou esta reportagem com bolsa de jornalismo fornecida pelo ClimaInfo com o apoio financeiro do Instrumento de Parceria da União Europeia com o Ministério Federal Alemão para o Meio Ambiente, Conservação da Natureza e Segurança Nuclear (BMU) no contexto da Iniciativa Climática Internacional (IKI). Os conteúdos desta publicação são de inteira responsabilidade dos seus organizadores e não necessariamente refletem a visão dos financiadores.

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