Por Alice Sales
Colaboradora

Galpão de triagem do bairro João XXIII, em Fortaleza, vazio. No espaço funciona a sede da Rede de Catadores do Ceará, onde a Associação Raio de Sol coleta, faz a triagem e comercialização das associações com menores produções

Fortaleza – CE. Após quase três meses da chegada do coronavírus ao Estado do Ceará e da paralisação das atividades consideradas não essenciais, o Sindicato das Empresas de Reciclagem de Resíduos Sólidos Domésticos e Industriais no Estado do Ceará (Sindiverde) lançou um protocolo de retomada do setor para os próximos dias.

Dentre as recomendações, o documento orienta que os trabalhadores adotem normas gerais necessárias para o retorno das atividades. Tais normas recomendam que permaneçam suspensas as atividades de descarte e coleta seletiva, atividades de unidade de triagens, transbordo manual, descarga em ecopontos e serviços de coletas volumosas a fim de proteger a integridade dos trabalhadores, além de aumentar a frequência de cobertura de resíduos depositados em aterros.

O protocolo também recomenda ajustes quanto às logísticas de turnos e transportes dos trabalhadores, como também o fornecimento de equipamentos de proteção individuais (EPIs), de suplemento vitamínicos para aumento da imunidade dos trabalhadores e verificação da temperatura corporal diariamente.

De acordo com Cícero Sousa, presidente da Associação de Catadores Raio de Sol, localizada no bairro Parque Genibaú e representante do Movimento Nacional dos Catadores de Resíduos no Estado do Ceará, a atividade dos catadores de resíduos recicláveis, que permaneceu parada nos últimos meses, começa a retornar pouco a pouco.

“Mas todos aqueles que se enquadram no grupo de risco continuam em casa. Para quem não é do grupo de risco, a situação também é muito preocupante, pois não sabemos como esse material vai chegar nos galpões, também não sabemos se haverá uma nova onda de contaminações pelo vírus”, destaca.

Preocupado com o risco que a pandemia oferece, ele afirma temer a retomada: “nós, catadores de materiais recicláveis, não temos salubridade no nosso trabalho. A sociedade ainda não tem consciência de que esse resíduo vai para um galpão onde seres humanos terão contato e que muitas vezes são também materiais hospitalares, que a gente tem que manusear. A nossa preocupação com o retorno é muito forte, mas, por outro lado, sabemos que a nossa atividade é necessária”.

Dificuldades durante a pandemia

Como recomendação da gestão pública de Fortaleza, o funcionamento de associações de catadores só poderia ocorrer caso as medidas de segurança, apontadas pelas autoridades de saúde para funcionários e clientes, pudessem ser garantidas. Com o risco à saúde dos trabalhadores, a paralisação do setor, fechamento de galpões e redução de catadores nas ruas, a cadeia de reciclagem foi bastante prejudicada neste período.

“Estávamos catando no começo da pandemia, mas começamos a achar perigoso porque tivemos uma catadora do nosso grupo que faleceu de Covid-19. Achamos melhor parar. Estamos conseguindo apenas o material reciclável doados por prédios, fábricas e algumas pessoas. Queremos trabalhar, mas nossas vidas são mais importantes”, relata Marta Gomes, presidente da Associação de Catadores Mulheres, Luta e Cena, na Serrinha.

De acordo com Marcos Albuquerque, Diretor de Relações Trabalhistas e Sindicais do Sindiverde, “o setor de reciclagem atravessa neste momento a maior crise de sua existência. Composto por micro e pequenas empresas, não possui capital de giro suficiente para suportar este longo período de inatividade. A pandemia do Coronavírus tem um efeito devastador, ao paralisar 90% das empresas de reciclagem. O Governo por sua vez, não está apoiando e facilitando a liberação de crédito para essas empresas. Contamos com o apoio da Federação das Indústrias do Ceará (Fiec), orientando as empresas sobre a escolha do melhor caminho a seguir, além de ser interlocutora junto aos governantes, na defesa do setor produtivo cearense”.

Para Rebeca Wermont, diretora de Marketing e projetos da Yby Soluções Sustentáveis, esse comprometimento da cadeia ocorre porque 90% do movimento do setor de reciclagem vem principalmente da atividade dos catadores, que com a pandemia ficaram impossibilitados de trabalhar.

“Como eles estão parados por causa do risco de contaminação e da precariedade da estrutura de trabalho da maioria, que não possuem central de triagem, material de higiene e muitas vezes sequer EPIs, toda a cadeia é prejudicada. As indústrias recicladoras também estão paradas”, explica.

Segundo ela, algumas associações estão recebendo resíduos de fontes de serviços essenciais, como os supermercados, mas não conseguem escoar o material para dar continuidade à cadeia produtiva, porque os compradores desses resíduos estão com a venda dificultada.

“É uma grande contradição, por que as pessoas estão em casa gerando resíduos em grande volume, aumentando em até 30% a produção de materiais recicláveis nas residências e há uma dificuldade para onde encaminhar. Nós, enquanto empresa privada, trabalhamos com essa gestão de resíduos, fazemos logística, coletamos os resíduos dos nossos clientes, que são condomínios e empresas, e doamos para algumas associações de catadores. Estamos tendo bastante cuidado, fornecendo EPIs, deixando os resíduos de quarentena, evitando que eles façam a triagem e procurando oferecer as melhores condições de trabalho, deixando o ambiente menos insalubre possível”, relata.

Wermont considera que os catadores são os principais prejudicados do setor, durante o período de isolamento social. Sobretudo os catadores de carroças, que são aqueles que trabalham de forma independente e que não estão vinculados a nenhuma associação.

“Essas pessoas vivem num nível de pobreza extrema e encontram nesta atividade alguma forma de sobrevivência, trabalhando em condições muito precárias. Estão sendo muito atingidos, já que as associações estão fechadas e os atravessadores estão parados, e, com certeza, para esses catadores independentes é que o benefício dificilmente chega, por que eles não estão ligadas a nenhum movimento que possa dar suporte”, ressalta.

Por consequência da conjuntura, uma outra dificuldade a ser enfrentada afeta a situação dos catadores: a queda do preço do material e a falta de compradores. O alumínio, por exemplo, que antes tinha o quilo vendido a R$ 3,00, hoje é vendido por R$ 1,00, aproximadamente.

“Antes da pandemia, nós tirávamos em torno de R$ 700 a R$ 1000 por mês, dependendo muito da cadeia produtiva e do valor do material, que oscila muito. Com a chegada do vírus, com certeza, não estamos ganhando nada, já que os galpões ficaram fechados, não há atividade, comercialização e nem renda. Com a retomada das atividades, surge a perspectiva de recomeçar praticamente do zero a conquistar mais doadores de materiais e aos poucos podermos ter uma renda melhor”, destaca Sousa.

Campanhas de doações

A campanha vem ajudando muitas pessoas de 14 associações de catadores em Fortaleza. As doações estão sendo distribuídas entre as famílias, que muitas vezes possuem apenas a catação de recicláveis como fonte de renda

Com a paralisação das atividades dos catadores, surgiu a grande preocupação por parte da classe sobre como iriam sobreviver financeiramente com todas as dificuldades enfrentadas pelo setor. Alguns dos catadores receberam o Auxílio Emergencial repassado pelo Governo Federal, mas muitos não foram contemplados com o recurso, em muitos casos pela falta de informação e pela dificuldade de acesso.

Como forma de superar as dificuldades enfrentadas pelos catadores de materiais recicláveis, campanhas de doações de alimentos começaram a ser mobilizadas pelas associações e parceiros e devem continuar mesmo após a retomada do setor. De acordo com Marta Gomes, todos os 30 catadores da Associação Mulheres, Luta e Cena estão vivendo de doações durante a pandemia.

A campanha vem ajudando muitas pessoas de 14 associações de catadores em Fortaleza. As doações estão sendo distribuídas entre as famílias, que muitas vezes possuem apenas a catação de recicláveis como fonte de renda.

“Na minha casa há quatro pessoas que se sustentam da reciclagem. E geralmente na casa de cada catador, tem mais de uma pessoa que trabalha com isso. Alguns catadores que não estão tendo condições de pagar o aluguel estão indo morar na casa de outros. Vamos nos ajudando, mas estamos vivendo muito precariamente. As campanhas são para garantir o básico e evitar que a gente vá para a rua catar neste período”, reforça a presidente da associação.

Gomes ressalta também a necessidade de dar continuidade às doações mesmo com a retomada do setor. Segundo ela, com o retorno das atividades, as doações serão destinadas aos catadores do grupo de risco que ainda não poderão voltar às ruas.

Além de cestas de alimentos, materiais de limpeza e EPIs estão sendo arrecadados, com o apoio de parceiros como a Cáritas Arquidiocesana, Mesa Brasil, Três Corações e Recicla Nordeste. A Prefeitura de Fortaleza também distribuiu 265 cestas básicas para catadores de materiais recicláveis de 12 associações.

“Alguns gestores de municípios cearenses não fizeram nenhum tipo de campanha, deixando os catadores à mercê de ações sociais. E devido “à falta de conhecimento de alguns catadores para articular campanhas de doações, muitos estão em situação deplorável, à espera de um milagre. Aqueles que não pertencem a nenhuma associação, estão ainda mais além da necessidade e da vulnerabilidade. Nós catadores organizados estamos à frente de campanhas de doações para dar auxílio a eles”, explica Cícero Sousa.

Ana Raquel Vitoriano, assessora técnica da Rede de Catadores do Ceará, destaca a relevância desta mobilização conjunta: “a importância do trabalho em rede é este apoio. Quem recebe cestas avisa para que as próximas doações sejam destinadas a outros que ainda não receberam.”

Coleta seletiva

Além das doações, um hábito diário que parte de dentro de nossas casas pode ser um gesto importante para auxiliar no trabalho dos catadores de materiais recicláveis. A coleta seletiva feita nas residências pode ser determinante para evitar que os trabalhadores entrem em contato com substâncias e resíduos insalubres no ato da catação.

“Uma das coisas que mais nos ajuda é a implantação da coleta seletiva, por que nós que trabalhamos com isso estamos sujeitos a tudo”, enfatiza Gomes.

Cícero Sousa, com a ampla experiência que possui como catador, avalia que a importância da coleta seletiva neste momento, e em qualquer outro, é primordial para o trabalho que realiza. Segundo ele, “um sistema que leve informações de fato para as pessoas neste sentido deveria ser implantado pelos nossos governantes, para que a coleta seletiva passe a existir de verdade. A gente sabe que há uma preocupação e uma mobilização sobre como tratar esses resíduos, haja vista a existência dos Ecopontos e ilhas ecológicas, mas não há essa ação conjunta entre catadores, sociedade e poder público”.

Catador há 34 anos, Gomes hoje tem consciência da grande importância da atividade que exerce para a sociedade e a relevância de um trabalho conjunto em prol da preservação ambiental: “as pessoas precisam se sentir no dever de destinar os resíduos da maneira correta. É uma questão de saúde. Se nós não tivermos essa preocupação com a relação entre os resíduos e o meio ambiente, estaremos sujeitos às doenças”.

E completa: “Recomendo à sociedade que dê importância aos hábitos de consumo. Precisamos de pessoas mais conscientes, que não joguem lixo nas ruas e façam coleta seletiva. Todo mundo sabe que jogar embalagem na rua é errado, mas isso precisa ser aprofundado e trabalhado. Que tipo de hábitos vamos deixar para as nossas próximas gerações? Se não tivermos a consciência de que esse planeta depende dos nossas ações, nós sentiremos os efeitos”.

Serviço

Campanha pela Vida dos Catadores e Catadoras

Com o dinheiro arrecadado serão compradas cestas básicas para catadores de diversas regionais.
Transferência ou Depósito:
Banco 748 Sicredi
Agência: 2301
Conta Corrente: 12527-0
José Maria Mendes Uchôa
CPF: 616.395.403-34

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