A grandiosidade e as belezas do Velho Chico encantam os visitantes. Durante a Caravana Nordeste Potência, que serviu para divulgar um plano de economia regenerativa para a região, pudemos testemunhar algumas dessas paisagens. Infelizmente tudo isso não consegue disfarçar os inúmeros problemas ambientais, como desmatamento, especulação imobiliária, turismo insustentável, despejo de esgotos, agroquímicos e variações de vazão que não respeitam a vida do rio.
O desenvolvimento da Bacia do São Francisco está intimamente ligado ao seu enorme potencial de geração de energia. Sérgio Xavier, jornalista e articulador da iniciativa Governadores pelo Clima do Centro Brasil no Clima (CBC) e desenvolvedor do Lab de Economia Regenerativa do Rio São Francisco questiona que matriz energética queremos e para impulsionar o que? “Os povos indígenas são os últimos canais vivos da humanidade que nos permitem interagir diretamente com a natureza. Manter a nossa relação atual como o Rio São Francisco não é só falta de imaginação, como disse Ailton Krenak, é também falta de conhecimento e falta de sensibilidade. É muito importante reunir conhecimentos para construir um novo modelo de vida baseado na igualdade e que possa reinventar a economia”, pondera.
Para ele, o grande desafio no sentido de regenerar o São Francisco é ter uma visão sistêmica, integrada de gestão pública e a sociedade perceber o conjunto de aspectos que envolve uma bacia hidrográfica e as relações com a sua vida, a sua economia, o seu emprego, o seu futuro: “Entender que os muitos problemas complexos que temos na Bacia do São Francisco exigem soluções interligadas, integradas, simultâneas e por isso é importante encontrar eixos para guiar essas inflexões de forma mais prioritária para sair da tendência de morte, degradação e colapso, para fazer um processo inverso”.
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Neste sentido, Xavier destaca alguns pontos prioritários e o primeiro deles é a Economia, a mesma Economia que degrada atualmente, que pode fazer inclusão social, reduzir desigualdade, regenerar ecossistemas, promover produtos saudáveis. Mas ressalta que precisa ter uma base científica, que defina referências para o Rio São Francisco, como os limites de vazão máximos e mínimos aceitáveis para que toda a gestão seja em cima dos limites da vida definidos pela ciência e não o contrário que é querer que o rio se adeque aos interesses de cada setor.
Os outros são: incluir os saberes culturais das comunidades tradicionais; ter um compromisso com a redução de desigualdades, a descentralização ao invés de modelos energéticos altamente concentradores; ter fontes de financiamento que direcionem investimentos com esses compromissos; e, por fim, políticas públicas interligadas para resolver problemas sociais, ambientais, econômicos, culturais e educacionais.
Ressalta que o Centro Brasil no Clima criou o movimento Governadores pelo Clima exatamente para sensibilizar os executivos estaduais a criar políticas públicas interligadas e que está em implantação o Laboratório de Economia Regenerativa do Rio São Francisco para testar essas possibilidades, com a participação do CBC, Instituto Clima e Sociedade (iCS), Instituto ClimaInfo, Grupo Ambiental da Bahia (Gambá) e o Fundo Casa Socioambiental que têm trabalhado dois projetos: o Hidrosinergia que tem esses objetivos mencionados; e o Nordeste Potência, cujo plano foi entregue aos candidatos de todo o Nordeste para incluir esses aspectos em seus planos de governo.
“É importante saber como o setor de energia pode impulsionar essa nova economia regenerativa. Como deixar de ser degradador, poluidor, conflituoso com as comunidades e ser redesenhado para fazer um movimento inverso, de produção de energia limpa num modelo distribuidor de renda, inclusivo, que reduza desigualdades e que regenere o meio ambiente e não só compense”, reflete Sérgio Xavier. Para ele, o desafio maior é criar políticas públicas que organizem os problemas e as múltiplas soluções que às vezes estão em setores diferentes que não se comunicam. “O Planejamento técnico não tem dimensões socioambientais muito claras o que resulta em impactos”, completa.
O conjunto de organizações não governamentais citado vem interagindo com o Comitê da Bacia do Rio São Francisco para articular com os governos nordestinos um planejamento integrado, um zoneamento de onde é mais adequado fazer cada coisa para não deixar que a iniciativa privada decida sozinha, que modele as políticas públicas, aponte onde é área indígena, de preservação, que precisa de regeneração, está desertificada, onde instalar e deixar recurso para recompor o solo: “É possível planejar os parques eólicos e solares no Nordeste zoneando de forma eficiente, com orientação da EPE (Empresa de Pesquisa Energética)”. Ele cita como exemplo a definição de plantas de hidrogênio verde no litoral, nos portos, próximo de áreas onde há mais água.
“É preciso criar um sistema de gestão integrada que permita regenerar o São Francisco. Com essa produção organizada e preocupada com o socioambiental é possível gerenciar os reservatórios especificamente para cuidar da vida do rio, ou seja, garantir vazões que não dependam de crise energética porque as populações ribeirinhas precisam, porque a qualidade do água do rio deve ser mantida”, resume. Com a criação de instrumentos de planejamento e gestão sistêmica para fazer tudo isso com informações transparentes para que a sociedade possa acompanhar.
E finaliza dizendo que tudo isso pode também garantir redução da pobreza, uma grande prioridade no Nordeste, com um planejamento de educação para que os novos empregos desse novo modelo possam ser acessados por populações pobres, que sejam qualificadas para isso, utilizando a grande rede de formação técnica e superior já existente para criar uma base de profissionais. “Já há empreendimentos que podem gerar 2 milhões de empregos na região e precisamos de educação e capacitação profissional inclusiva. É muito importante, antes de tudo, uma alfabetização ecológica e formação de multiplicadores”, acrescenta.
Sergio Xavier menciona, por fim, a criação de uma cooperativa de créditos de carbono na Caatinga como exemplo de modelos que integrem a base da sociedade nesse novo mercado e outras ações em turismo educativo e regenerativo.
Pagamento para conservar
Em Delmiro Gouveia (AL), encontramos o grupo que está revolucionando ações de conservação da Caatinga com a recente criação da Associação dos Produtores de Crédito de Carbono Social do Bioma Caatinga. Ambientalista e gestor ambiental, Haroldo Almeida, proprietário de um hectare, é o presidente e testemunhamos seu primeiro encontro presencial com Pedro Soares Neto, o idealizador; Nilson Lopes Alves, que é engenheiro ambiental; e os proprietários rurais Roberta Jansen e Raimundo Nonato Gomes.
“A Associação dos Produtores de Carbono Social do Bioma Caatinga tem a missão de ser uma das primeiras entidades a juntar todas as pessoas que têm propriedade rurais e que tenham vegetação nativa em um projeto único para geração de crédito de carbono e colocar no mercado para também gerar uma renda e valorizar o bioma caatinga e evitar que seja devastado”, resume Haroldo.
“Se não houver ações nesse sentido, de valorização, de reconhecimento, de fortalecimento, acho que daqui a 20 anos não teremos a oportunidade de ver uma barriguda, uma espécie linda, não competitiva, que armazena a sua água. Um ambiente ecologicamente equilibrado pode manter não somente a barriguda, mas tantas outras espécies nativas, como a craibeira, árvore símbolo do Estado de Alagoas; a caatingueira que tem um uso medicinal incrível. Essa questão do carbono social do é de justiça climática para a região”.
O gestor ambiental lembra que o bioma Caatinga é um dos que mais tem biodiversidade por metro quadrado, que reflete muito a força e a garra do nordestino e que quase ninguém sabe disso, e o projeto visa valorizá-lo e torná-lo mais conhecido. “No começo pensávamos que não ia ter muitas adesões. Mas percebemos que as pessoas ansiavam por uma iniciativa desse nível, uma possibilidade, perspectiva e até uma salvação para o bioma”.
“Um ano e meio atrás começamos a discutir um modelo de cooperativa ou associação em que todos os proprietários de áreas poderiam se juntar em um projeto. Tem uma pessoa com um hectare, outra com cinco mil hectares, mas estão todos juntos, de comunidades tradicionais, do MST, do Banco da Terra. É um projeto bem inclusivo. Agora estamos em processo de criação da Cooperativa. A Associação vai fazer um papel mais de certificação dessas áreas junto com os parâmetros internacionais. A Cooperativa vai fazer a venda dos créditos”, relata. Haroldo enfatiza que, para isso, os parceiros foram fundamentais, como o CBC e a Universidade Federal de Alagoas (Ufal).
A Associação já começa com 98 participantes porque é mista. Não tem apenas produtores. Tem técnicos que ajudam a desenvolver a iniciativa, como Nilson que é engenheiro ambiental e participa desde o começo. Pedro é um dos principais entusiastas. Foi praticamente o primeiro a agarrar e tocar o projeto para a frente, como diz Haroldo. “Tínhamos uma meta de ter uma área de cerca de cinco mil hectares de vegetação nativa informada e já estamos com 7.500 hectares. E nem divulgamos muito. Esperamos ter mais de 200 mil hectares depois que esse projeto estiver mais consolidado”, orgulha-se.
Sobre a abrangência geográfica, explica: “nós começamos só aqui em Alagoas, mas veio uma pessoa de Sergipe, da Bahia, de Pernambuco, foi agregando e agora o nosso projeto está em toda a Caatinga que é praticamente todo o Nordeste. Já tem gente do Ceará, da Paraíba querendo participar também. Quem não fica encantado com um projeto de valorização, de reconhecimento e consolidação de uma região que é tão é tão estereotipada?”
Nascido em Pão de Açúcar (AL), Pedro Soares sempre teve a vida inserida no contexto rural. Se criou perto do Agreste, na região de Palmeira dos Índios (AL), mas numa localidade de Sertão, fez curso de técnico agrícola, começou a trabalhar com produtos químicos, depois foi para extensão rural, cuidou da propriedade, foi consultor do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) na área de agronegócio, principalmente voltado para cadeia do caprino, se envolveu com cooperativismo e hoje é diretor de uma cooperativa de familiar.
Em Delmiro Gouveia, tem em torno de 200 hectares. Já produziu mandioca, inclusive exportou para Pernambuco porque não tinha agroindústria para beneficiamento, já produziu leite. Daí veio a seca e uma série de outras dificuldades. Foi aos poucos reduzindo. Hoje tem poucos animais ovinos e caprinos: “Atualmente 90% da minha área é Caatinga de regeneração natural. Eu não mexi desde quando eu comprei, em 1980.”
“Eu sou de uma família tradicional agricultores e, desde criança, sempre tinha nas propriedades uma área preservada. Eu admiro quem preserva e sou um preservador. Há uns cinco anos, quando começou essa questão de crédito carbono, eu comecei a ver como a gente poderia usufruir desse recurso. Em 2020 eu conversei com o Haroldo a começamos a encontrar uma trilha. Convidamos vários produtores que têm áreas de Caatinga preservadas, discutimos o assunto. Em 2021 fizemos duas reuniões. A partir daí começamos a tomar corpo. Agora em julho conseguimos consolidar a criação da Associação”, conta.
“Aqui no Bioma Caatinga, principalmente na nossa área de conhecimento, nas propriedades individualmente ninguém sai do canto. A única forma de se conseguir ter uma área significativa de preservação seria por meio de uma associação. E atingimos um espaço para o qual nem estávamos preparados, em nível nacional e mundial. Isso é gratificante e nos encoraja e aumenta nossa responsabilidade”, assume.
Roberta Jansen hoje mora em Tacaratu (PE), mas é do Recife. Advogada de formação, produtora cultural há 20 anos, começou a fazer uma pós-graduação em Educação Ambiental e Cultural que mudou sua vida, sua visão de mundo: “Eu comecei a percebe estava vivendo errado, não consegui mais me encontrar morando, vivendo numa cidade grande, com concreto por todo canto”.
Tornar-se mãe a fez querer que a filha se voltasse à sua família agricultora por parte de pai e avós do sertão da Paraíba: “Eu já nasci na cidade grande e todas essas percepções a respeito me fizeram querer voltar a ter contato e ligação com a terra. Meu marido é herdeiro de uma grande propriedade em Tacaratu e sempre foi muito angustiante para mim o fato de a família dele ter muita terra, mas não fazer nada com ela. Ele é cantor e compositor, mas aos 18 foi morar no Recife. Eu comecei a pesquisar, a ver trabalhos em Pernambuco, a conhecer algumas comunidades tradicionais, a própria comunidade indígena de Tacaratu que cuidava da terra, de si. Famílias trabalhavam juntas, existia essa ligação. Eu respeito as tradições culturais, os mais velhos e isso dava esse contato com a terra, uma série de valores que eu achava que estava perdendo de ter”.
Sobre o contato com a Associação conta: “O Sérgio Xavier foi a Tacaratu conversar com a Prefeitura da qual eu sou diretora de cultura, daí eu soube do trabalho do Haroldo e pensei que era isso que eu estava buscando. É essa a alternativa que eu estou encontrando para a propriedade do meu marido. E eu gostaria de propagar para que mais propriedades pudessem ter essa visão de que é possível preservar e ganhar dinheiro com isso porque existe uma cultura de desmatar para fazer carvão, para tentar criar gado e sabemos que não é essa a vocação do sertão. Ela é uma vocação de caprinos, das abelhas. É uma caatinga de uma beleza ancestral, com uma série de elementos, fora a ancestralidade, os rituais, tudo tem a ver com a terra, as tradições indígenas, quilombolas. Eu me apaixonei pelo sertão, acho que de tanto ouvir histórias dos meus pais e da ligação dos meus avós e bisavós com a terra. Me senti profundamente angustiada pela minha geração ter perdido esse contato com a terra e eu vim em busca de refazer para a minha família, daqui para frente”.
“Vi na Associação uma forma e de beneficiar quem cuida da natureza. Não podemos dizer apenas ‘cuide da natureza’ ao proprietário rural que tem naquele carvão o sustento da família. O que vamos dar de alternativa para ele? A Associação faz com que tenhamos um discurso prático e poder dizer ‘preserve que você vai ser remunerado por isso’, dá para fazer um sistema agroflorestal na Caatinga. Tudo que vemos de programas bem-sucedidos mundo a fora, estamos vendo a possibilidade de fazer no sertão, num bioma que tem uma facilidade de virar deserto e não podemos permitir isso”, afirma.
Sobre a propriedade, Roberta explica: “é de mata nativa virgem. Existia uma grande fazenda do avô do meu marido, a Beldroega, tão grande que tinha no mapa impresso de Pernambuco. O avô dele tirava o sustento da família de uma pequena parte da fazenda. Teve cinco filhos. O meu sogro era um desses filhos e o meu marido é filho único. Ele herdou uma área enorme, são 1.800 hectares. A fazenda do seu avô era cinco vezes isso, quase 10 mil hectares. E existia uma sazonalidade da chuva bem maior, tinha muita fartura, de melancia e queijo. Agora nós temos intenção de fazer projetos sustentáveis porque até recursos eram difíceis para investir nessa fazenda, que está muito parada. Mas estamos com muita esperança de receber recursos do crédito para reinvestir. A parte do meu marido chama-se Carcarazeiro. E estamos com muita esperança de convencer os outros membros da família para que toda a área seja preservada”.
Raimundo Nonato Gomes Junior, 63, é delmirense e com 15 anos foi estudar em Maceió. Escolheu estudar Ciências Agrárias e procurou a melhor universidade do Brasil na área naquele momento, a Universidade Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais. Em 1980 se formou e voltou para Alagoas com muitos sonhos de voltar para o Semiárido e tentar ajudar nas soluções para o desenvolvimento agropecuário, na produção de alimentos e geração de renda na região.
Mas acabou indo trabalhar num órgão federal de pesquisa de cana-de-açúcar. Entre 1987 e 1990 fez mestrado, em Ciências dos Solos, pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), quando o órgão em que trabalhava foi extinto e os funcionários foram transferidos para a Ufal. Com mestrado ele pôde ingressar como professor.
Depois disso participou de vários projetos de desenvolvimento para Alagoas, incluindo o zoneamento ecológico econômico, o projeto Microbacias Hidrográficas e a criação de grandes centros de desenvolvimento para o Semiárido, para a Zona da Mata, para Xingó. Quando esses projetos foram considerados prioritários pelo Governo Federal, foi solicitado pelo Estado de Alagoas para executar.
Cedido ao Estado em 1996 para trabalhar no zoneamento ecológico de Alagoas, foi enviado para essa região do Semiárido por conta do fim da obra de Xingó que deixou um desemprego gigantesco na região e precisava intervenções que gerassem emprego e renda. O objetivo era o diagnóstico ambiental e socioeconômico, das potencialidades da região.
Conta que se encantou com potencial do lugar, características ambientais absolutamente diferentes de todo lugar que eu tinha visto até então, com solos profundos que é uma coisa que não existe praticamente no Semiárido e uma oferta gigantesca de água do lago de Xingó, um cenário fantástico que são os cânions e uma condição topográfica fantástica, um grande potencial para desenvolvimento da agricultura irrigada e para o turismo.
No entanto, o diagnóstico socioeconômico apresentava a comunidade como a mais pobre até então mapeada do Estado de Alagoas, o que indicava a absoluta falta de intervenção dos serviços públicos para garantir conhecimento e infraestrutura necessários para transformar esse potencial de fato em desenvolvimento.
Ele acabou comprando a terra de uma pessoa descrente das potencialidades do lugar. Paralelamente, durante 20 anos, enfrentou problemas de saúde que evoluíram de gastrite para úlcera e câncer. Cansado da Medicina Tradicional, procurou a natural e em 20 meses estava curado, com a vida totalmente diferente, um divisor de águas na sua vida. Fez doutorado em proteção de plantas. Em 2009 criou o Centro Terapêutico Cânion de Luz. Daí fez um curso de Dinâmica Energética do Psiquismo (DEP), formação em constelação familiar, em radiestesia e radiônica, Reiki, até a formação em Naturologia Clínica. Era, então, professor da Ufal no Campus de Rio Largo. Em 2016 conseguiu transferência para Delmiro Gouveia, para o Campus do Sertão da Ufal.
Em 2012 foi gravada no local a novela Cordel Encantado, o movimento foi crescendo e o Centro também se abriu ao turismo ecológico: “Nós temos sete trilhas implantadas aqui. Todas sempre têm acesso à água no cânion. A maioria é de difícil acesso, mas quando chegam pessoas idosas ou pessoas com alguma deficiência sempre tem uma trilha”.
“Estamos aqui desde que adquirimos a propriedade, em 1996, na busca de algum apoio para poder preservar esse lugar. O primeiro que eu busquei foi dos próprios sistemas de proteção. É uma fazenda de 750 hectares. Tem caçador, mateiro que vem tirando madeira. Mas nunca recebemos apoio. Eu sempre sonhei com e continuo sonhando com esse apoio proveniente do serviço ambiental denominado crédito de carbono. Estamos nessa luta para que eu possa ter mais recursos para preservar esse pedaço de Caatinga desde que adquiri a fazenda. A única coisa que fizemos aqui de intervenção na vegetação foi onde estava em estado avançado de desertificação, de reflorestamento”, revela.
Seis problemas socioambientais
Emerson Soares, professor da Ufal na área de Biologia, Citologia, Histologia, Eco Toxicologia Aquática e Imunologia, afirma que, ao mesmo tempo em que o Baixo Rio São Francisco é um imenso berçário, com as mudanças climáticas e as agressões localizadas, passa por enormes desafios impostos pela implantação de cidades e atividades como a geração de energia hidrelétrica e o agronegócio. Para ele, os seis maiores problemas socioambientais da Bacia do Baixo São Francisco são:
- Política de vazões das hidrelétricas que retém água e não respeita o que é decidido e o que é previsto na legislação
- Grande quantidade de esgotos que contaminam e geram problemas tanto para as espécies aquáticas quanto para a população
- Desmatamento das áreas marginais que facilita o assoreamento, as enchentes e outros desequilíbrios
- Assoreamento que vai diminuindo a profundidade do rio e prejudicando a navegação e a pesca, formando novos bancos de e ilhas, territórios de ninguém
- Uso de contaminantes, agroquímicos, produtos sem controle que são lançados e, de alguma forma, vão cair no rio
- Intrusão salina que traz o aumento da salinidade e uma má condição da água, principalmente para os municípios mais próximos ao estuário
Emerson explica que a flexibilização das vazões pelo Operador do Sistema Nacional (ONS), a qualquer hora, para atender o sistema elétrico nacional causa um primeiro impacto de redução de água para os ribeirinhos. Mas piora a intrusão salina que vem do oceano e adentra o continente, chegando até próximo de 16 km e gera doenças como hipertensão: “as pessoas moram na beira da água, mas não podem consumir. Para não morrer de sede às vezes fervem a água e consomem com mais de seis vezes o valor de salinidade permitido para beber. Existe um projeto do Comitê, o Tanque Pulmão, para tratar essas águas. Por isso que eu crítico os programas de Transposição do São Francisco, já que não está atendendo nem a população que mora nele”.
Outro grande problema é o dos esgotos. Segundo o professor, dos 505 municípios que fazem parte da Bacia do São Francisco, só um tem esgoto 100% tratado, em Minas Gerais. “Essa quantidade de esgotos lançados, inclusive pesticidas, metais pesados que vêm lá de cima, acarreta uma série de problemas de saúde associados. Com a baixa vazão e a redução da diluição dos componentes, além das doenças de veiculação hídrica que sobrecarregam os sistemas de saúde dos municípios que já são precários, o abastecimento das cidades fica mais caro, inclusive para os usuários pelo aumento do custo do tratamento”.
A qualidade da água do São Francisco depende da vazão porque, em maior quantidade, dilui os poluentes e faz uma limpeza geral: “Tem épocas em que está de melhor qualidade, mas sempre com problemas de coliforme fecais, com um ou outro pesticida. Isso depende também da área porque as cidades mais densamente povoadas jogam mais esgotos. Varia de município, de época do ano e de acordo com o que o ONS permite. O parâmetro agora geralmente é uma água que apresenta problemas, mas não é das piores também”.
Sobre o assoreamento, ele detalha que a maioria dos afluentes está assoreada. São áreas desmatadas onde o solo está solto: “Quando vêm as chuvas mais torrenciais com essas mudanças climáticas, depois período grande de estiagem, como aconteceu aqui nessa região, traz muito sedimento que vai todo parar na calha principal do Rio São Francisco que vai assoreando cada vez mais e formando novas ilhas, gerando conflitos entre as comunidades de pescadores e agricultores. Porque quando se cria uma ilha nova o agricultor vai lá e bota a cerca. E quando uma ilha é formada é território do governo e não pode ser apossado. Mas eles fazem isso e há conflitos. Além disso prejudica a navegabilidade”.
Expedição busca soluções
Diante de tantos problemas, tão antigos, como vislumbrar saídas para começar a melhorar a situação? Quais seriam os primeiros passos, os mais importantes para tentar mitigar todos esses danos? Na opinião do professor, tem que começar pelos municípios. “O primeiro é trabalho fortíssimo de Educação Ambiental. Trabalhamos com as escolas, entramos com o material, equipamentos, mas a responsabilidade é da escola e do gestor público, que nos currículos escolares sejam introduzidas disciplinas de Educação Ambiental que valorizem o Rio e a cultura local. E isso só funciona para crianças de sete a dez anos. E isso só em longo prazo vai ter uma resposta mais adequada para gerarmos pessoas que vão defender o São Francisco”.
A segunda coisa importante, para ele, é a cooperação entre os gestores públicos, órgãos fomentadores que têm recursos para as ações de saneamento, de tratamento de água, em conjunto, porque não é barato: “nós articulamos com todos os entes da federação e temos o apoio dos financiadores para gerar grandes projetos que sejam demonstrativos para que outros se apropriem deles e repliquem. Um exemplo disso é a cidade de São Brás (AL), com um grande projeto que vai envolver saneamento, reflorestamento, manejo da água, gestão da luz e o turismo também porque vamos gerar emprego. Chama-se Berçário das Águas, um projeto na ordem de 8 milhões de reais que vai ser replicado para outras regiões do São Francisco e para outras regiões do País”.
A outra iniciativa é a Expedição Científica do Baixo São Francisco que mobiliza todo mundo: “Já somos esperados e referência para todos os municípios e para outras regiões do País, inclusive. Esse trabalho está crescendo. As pessoas se tornam corresponsáveis, parte da solução, não do problema. Mobiliza pessoas e atrai projetos, empresas que querem investir, que têm interesse ambiental. Nossa expectativa é justamente essa mobilização, essa articulação e cooperação e projetos integradores que mostrem a pesquisa prática. Não só vem fazer a pesquisa levar os dados. Levanta os dados, mostra e apresenta alternativas para resolver aqueles problemas. Depende muito da apropriação do gestor público e dos investidores em querer abraçar. A própria Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba) hoje é uma das maiores financiadoras e já está replicando projetos que são desdobramentos das expedições. A expedição é como uma mola propulsora de projetos e projetos integradores e aplicados”.
A Expedição dura 12 dias e percorre dez municípios por 240 km do Baixo São Francisco, desde Xingu até a Foz, o mesmo trabalho em 35 linhas de pesquisa, em Saúde, Meio Ambiente, Engenharia é até Arqueologia, Antropologia, Ciências Sociais, juntas as ciências humanas e as ciências exatas: “Levamos experimentos promissores, como a Agroecologia. Estamos desenvolvendo as fossas agroecológicas, sistemas que direcionam as águas cinzas, de lavagens, para o sistema de produção de alimento. E a água escura é tratada e não é mais descarregada no São Francisco. Já existe bancos e ONGs interessados em colaborar, inclusive o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) nos procurou para instalar 460. O que falta muitas vezes é boa vontade, também política. Existe projeto político de Estado e projeto de políticos para ganhar votos. Procuramos sempre afastar a questão política das ações para ter êxito. Não dependemos disso”.
Participam 20 instituições. A Ufal coordena. Tem também a Universidade Federal de Sergipe (UFS), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), UFRPE, o Instituto Almirante Paulo Tavares da Marinha do Rio de Janeiro, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), que faz parte de valorização dos produtos regionais para certificação e indicação de selo.
Recuperação em área urbana
É difícil determinar onde o Rio São Francisco sofre mais agressões, que são múltiplas ao longo do seu curso. No submédio é onde ficam as duas cidades mais populosas às suas margens. Juntas, Petrolina (PE) e Juazeiro (BA) somam 1 milhão de pessoas se considerada a população flutuante, o que significa desmatamento, resíduos sólidos e esgotos em quantidades que nem imensidão do rio-mar, como denominavam os indígenas, é capaz de absorver. São Impactos ambientais acumulados por décadas.
Victor Flores, ambientalista e diretor de projetos da Agência Municipal de Meio Ambiente (ANMA)/ Petrolina, mostrou à Caravana Nordeste Potência um pouco do Projeto Orla Nossa, já premiado, de revitalização, que começou em janeiro de 2017, numa área histórica de embarcação de mercadorias, já degradada, por onde descia um rio de esgoto em direção ao Rio São Francisco. O quadro era de volume baixo, grande concentração de matéria orgânica.
Em cinco anos, o trabalho já resulta na devolução de alguns dos múltiplos usos. Foi feito o manejo das plantas aquáticas (baronesa) com a retirada de 70%; replantadas 7 mil árvores nativas com sistema de irrigação de 3 em 3 metros por uma área de 1km (12 hectares). O material orgânico retirado da água (3 mil toneladas) foi transformado em composto. Ao todo 250 mil alevinos da espécie piau verdadeiro e pacumã foram liberados nas águas. A ação contou com a participação de empresas privadas, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sertão Pernambucano (IF Sertão) – Campus Petrolina, Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) e Exército Brasileiro, entre outros parceiros.
“Um projeto que envolve a área ambiental precisa ter envolvimento de três eixos importantes: o poder executivo, a academia e a comunidade. Se não envolver essas esferas, vai ser só político, só com algum evento pontual para tirar uma foto”, afirma Victor Flores.
Apesar de já ter recebido muitas visitas de pesquisadores de instituições regionais e de outros países, o projeto ainda não foi replicado. Na primeira etapa foi realizado um estudo da situação do Rio São Francisco. Em seguida, iniciou-se o processo de revitalização e em paralelo, o Programa de Recuperação de Áreas Degradadas (Prad) na orla fluvial do São Francisco, em Petrolina. “Começamos pelo Rio, num trecho que não podia captar a água porque só tinha lama, uma situação bem diferente. Hoje dá para consumir a água nas duas cidades, depois de tratada. Conseguimos devolver muitos dos usos, de navegação, da pesca, da captação”, enumera Flores.
Segundo o relatório do projeto, em relação aos esgotos, foram cerca de dois meses de investigação nas galerias de águas pluviais, para identificar irregularidades. Sete pontos foram localizados. Em parceria com a Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa) e Diretoria de Saneamento da Secretaria de Infraestrutura já foram solucionados 70% dos pontos de esgoto in natura que caiam diretamente no rio.
Flores não considera caro recuperar. “Caro é degradar. Todo investimento que é feito no São Francisco, na verdade, é muito pouco. Não podemos mensurar o que trazemos de benefício. Uma dragagem convencional gastaria em torno do 12 milhões de reais. Como houve essa interação da Prefeitura com a academia, a ferramenta desenvolvida custou seis mil reais. Ainda assim, esse foi o maior investimento na história da Cidade, e só num trecho de um quilômetro. Para cuidar do Rio São Francisco isso é muito pouco. Na verdade, precisa de um investimento fixo, quem sabe até um consórcio das duas cidades. Bom seria expandir o projeto Orla Nossa por todas as cidades do Rio São Francisco. Cada parte do São Francisco tem um desafio diferente, mas todos passam pelo saneamento. É um investimento primordial”, defende.
O gestor explica que a recuperação da mata ciliar é urgente e pode ser feita de diversas maneiras: “As raízes seguram a terra e evitam até a poluição de cair no rio, além de servir para abrigo alimentação e reprodução dos animais. Sem ela, a areia, quando chove vai para o rio e, quanto mais raso, mais evapora, reduz a vazão e, se tem esgoto caindo, aumenta a poluição. Com a redução da vazão na Barragem de Sobradinho, isso piora”. No momento, está sendo recuperado o solo e sendo feito um controle de espécies exóticas como a algaroba, que infecta o solo e não permite o crescimento de nenhuma outra espécie. Depois, serão inseridas mais plantas nativas.
Educação Ambiental e reflorestamento
O Centro Xingó de Convivência com o Semiárido, gerido pelo Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Sustentabilidade (IABS), com comitê gestor deliberativo do qual participam parceiros apoiadores como a Agência Espanhola de Cooperação para o Desenvolvimento (AECID), Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA), Ministério do Meio Ambiente (MMA) e Codevasf, tem feito um trabalho de referência para a Caatinga preservada em todo o território nordestino.
O objetivo é contribuir para a geração de renda e a melhoria da qualidade de vida das famílias em situação de vulnerabilidade social no Estado de Alagoas e em todo o Semiárido brasileiro, além de conduzir ações para aperfeiçoar os conhecimentos integrados sobre a região, seus desafios e oportunidades.
“Nós desenvolvemos atividades de Educação Ambiental, cursos e capacitações para produção sustentável na Caatinga com agricultores extensionistas, alunos, professores, pesquisadores. Há várias tecnologias sociais, unidades demonstrativas, uma trilha ecológica e recentemente iniciou ações de recuperação de áreas degradadas. Toda as atividades, cursos, seminários e capacitações com as pessoas da região contribuem para a disseminação de boas práticas, de produção e conservação da Caatinga”, afirma Thiago Vieira, coordenador técnico do Centro Xingó.
Ele conta que, em Canindé de São Francisco (SE), duas iniciativas numa mesma localidade se destacam. A primeira começou há dez anos, por meio do Projeto Nascentes do São Francisco que reuniu Ministério Público do Estado Sergipe (MPSE), Prefeitura Municipal de Canindé de São Francisco e Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), entre outros parceiros com o objetivo foi reflorestar a mata ciliar do Rio Curituba, um tributário São Francisco. Foram plantadas milhares de multas, por agricultores do Assentamento Mandacaru e de uma comunidade quilombola vizinha. A mudas foram doadas pelo viveiro da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf).
Agora foi iniciado um outro projeto, chamado Convert, do Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF) Caatinga e vários parceiros do MMA que está dando continuidade a esse primeiro trabalho com o reflorestamento de outras áreas desse mesmo rio que não foram replantadas em 2012. São outros financiadores e realizadores, mas é com o mesmo grupo, de mulheres quilombolas, representantes de 30 famílias.
O Projeto Convert está estruturado para elaborar e implantar plano de recuperação de áreas degradadas de vegetação do bioma Caatinga no interior e/ou entorno do Monumento Natural (Mona) do Rio São Francisco, Unidade de Conservação (UC) federal de Proteção Integral que abrange territórios de Alagoas, Bahia e Sergipe, nos municípios de Canindé de São Francisco, Delmiro Gouveia, Olho d’Água do Casado, Paulo Afonso e Piranhas.
“Muitos, apesar de viverem perto do São Francisco, não têm água. Neste sentido, outra iniciativa é o Projeto Canal da Cidadania, que tem como executor o IABS, direcionado a pequenos agricultores do sertão alagoano. Várias pequenas famílias agricultoras vivem às margens do Canal do Sertão, mas, há mais de dez anos, nunca tiveram água. O projeto, além de assistência técnica, vai implementar pequenas estruturas hídricas, adutoras que vão levar água para produzir mais e melhor de forma sustentável, aproveitar o potencial hidroagrícola do canal. Serão 52 famílias dos municípios de Pariconha, Água Branca e Delmiro Gouveia, em Alagoas”, finaliza.
Caravana Nordeste Potência
Esta reportagem faz parte de uma série de cobertura da Caravana Nordeste Potência, que, entre 29 de agosto e 9 de setembro, percorreu 2.830 quilômetros, por diversos municípios de Alagoas, Bahia e Pernambuco, ouviu populações tradicionais, pesquisadores e outros atores que ajudam a compreender o processo de construção do que hoje é a Bacia do Baixo e Submédio São Francisco e como a região pode se desenvolver de forma menos impactante, um alerta para os candidatos aos governos da região e de todo o País. Acompanhem as reportagens anteriores e as próximas!
A ocupação da Bacia do Velho Chico sob novos olhares
Povos ancestrais do Velho Chico ensinam a viver e produzir em harmonia com a natureza