Em outubro divulgamos uma pesquisa que revelava que Fortaleza já perdeu mais de 80% da sua vegetação original. Agora trazemos a notícia de que 25 vereadores votaram pela redução drástica desses remanescentes

Na última semana antes do recesso parlamentar e quase no fim do mandato dos atuais vereadores, a Câmara Municipal de Fortaleza (CMFor) aprovou dez projetos e emendas que não estavam inicialmente na pauta e que excluem ou enfraquecem áreas de proteção ambiental em dez bairros da cidade. As propostas aprovadas fragilizam a proteção ambiental nos bairros Edson Queiroz, Praia do Futuro, Sabiaguaba, Bom Jardim, Dom Lustosa, Sapiranga, Serrinha, Manoel Dias Branco, São Gerardo e Presidente Kennedy.
Na última terça-feira (17), foram realizadas três sessões plenárias, sendo uma ordinária e duas extraordinárias, em mais de seis horas de atividades parlamentares. A Câmara aprovou em um dia os textos que excluem zonas de proteção ambiental (ZPA), zona de recuperação ambiental (ZRA), zona especial ambiental (ZEA) e zona de interesse ambiental (ZIA).
Foram aprovados textos, com emendas que visam retirar as áreas da classificação de proteção. Além disso, a base governista derrubou vetos do prefeito José Sarto (PDT) que derrubavam as definições ambientais previstas em cinco projetos aprovados anteriormente pela Câmara.
Votaram para derrubar os cinco vetos 25 vereadores, a maioria da base do prefeito. Apenas dois vereadores votaram pela manutenção dos vetos, ambos do Psol-CE: Gabriel Aguiar e Adriana Gerônimo. Um dos projetos aprovados é o 19/24, de autoria do vereador Luciano Girão (PDT) que extingue 11,4 hectares de uma área do bairro Manoel Dias Branco, localização do Cocó. Ele foi apresentado ainda neste ano e retirado de pauta após repercussão negativa, mas retornou nesta reta final do ano legislativo.
Biólogo e segundo vereador mais votado de Fortaleza neste pleito de 2024, Gabriel Aguiar (Psol-CE) se diz completamente frustrado com a situação: “a gente tem a questão ambiental como a principal pauta do nosso mandato e acompanha de perto todas as alterações na legislação ambiental. Quando vem um combo dessa magnitude, 10 bairros perdendo áreas verdes em apenas um dia, coisa que nós nunca vimos nesses quatro anos, é muito frustrante. A gente luta a cada minuto que pode na sessão plenária, tenta mobilizar a sociedade, mas, ao final, ver que todos passaram, é realmente uma angústia e uma dor porque a gente sabe as consequências disso que ainda vão chegar: os alagamentos, as ondas de calor, deslizamentos de terra, os problemas de saúde na população e essa conta é cobrada das pessoas mais pobres. Quem paga a conta desse interesse dos ricos é a população mais empobrecida. É uma frustração e uma dor pelo que virá”.
Indagado sobre se há como reverter a situação, Gabriel Biologia, como é conhecido entre os seus seguidores de Instagram e eleitores, explica que existem várias formas: “uma é o Sarto (prefeito não reeleito de Fortaleza) vetar esses projetos, mas um veto de verdade porque os vetos que ele mandou para Câmara foram vetos fakes, vetos de mentirinha, ele mandou o veto desses projetos para a Câmara e mobilizou toda a sua base para voltar contra. Os vetos foram derrubados pela própria base dele, uma forma de covardemente enganar a população fingindo que ele é contra esses projetos. Então uma das formas é o veto de verdade. Outra forma é o próximo prefeito, Evandro Leitão, revogar essas leis e recuperar a proteção desses locais. Outra é o Ministério Público avaliar se é o caso de judicializar e reverter na Justiça essas violações do direito ambiental”.
Sobre a possível supressão das áreas verdes remanescentes de Fortaleza, o vereador lamenta e projeta: “vai sobrar cada vez menos, cada dia menos. Hoje nós não temos nem 3% da cobertura vegetal original da cidade e a pequena porcentagem que ainda existe está justamente nessas zonas. A mudança da legislação abre a porteira para passar a boiada do desmatamento, das queimadas, do aterramento, das construções que hoje seriam ilegais e, após a mudança dessa lei, se tornam legalizadas. Então, de fato, a cidade do futuro, se continuar assim, é uma cidade cada vez mais cinza, quente e caótica”.
Mais de 80% foram perdidos
Na matéria “Município de Fortaleza já perdeu mais de 80% de sua cobertura vegetal”, publicada em outubro passado pela Eco Nordeste, nós tratamos do tema da dissertação de mestrado da cientista ambiental Laymara Xavier-Sampaio, no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente (Prodema) da Universidade Federal do Ceará (UFC), orientada pelo professor Marcelo Freire Moro, do Instituto de Ciências do Mar (Labomar)/UFC.
O estudo constatou que Fortaleza passou por uma drástica redução de sua cobertura vegetal ao longo do seu processo histórico de crescimento. Dos 312,35 km² que compõem o município, 83,7% da extensão original municipal já são áreas antropizadas (modificadas pela ação humana) com eliminação total dos ecossistemas naturais.
A pesquisadora, que agora é doutoranda em Paleoecologia na Universidade de Bergen, na Noruega, faz algumas importantes reflexões sobre o que está acontecendo: “o argumento dos vereadores que apoiam os projetos de desmonte da proteção ambiental em Fortaleza parece ser de que essas áreas já se encontram antropizadas e que, portanto, seria necessário regulamentar as construções já existentes e possibilitar que seja levada infraestrutura para essas áreas. Mesmo considerando as melhores intenções desses vereadores, é possível enxergar muita ignorância porque, nesse caso, a melhor estratégia ainda seria pausar, segurar a urbanização nessas áreas para que não avance para que o mínimo de pessoas possível conviva em um ambiente sem infraestrutura urbana até que possa chegar lá considerando que a prioridade para levar infraestrutura urbana vão ser áreas com mais adensamento e a gente sabe que já existem várias áreas com maior adensamento e com pouca infraestrutura”.
Importância da infraestrutura verde
Ela acrescenta que eles também desconsideram a infraestrutura verde: “a gente precisa ter infraestrutura urbanística de estrada, pavimentação, iluminação, posto de saúde, mas também precisa de infraestrutura verde, parques urbanos, áreas de lazer, as áreas de estabilização ambiental para que não ocorram inundações ou que se diminuam a intensidade das inundações; utilizar esse serviços ambientais providos pela natureza para melhorar a vida na cidade. Essa infraestrutura verde sendo ameaçada é retirar infraestrutura e não levar infraestrutura. É o movimento contrário”.
Laymara prossegue dizendo que, “deixando de considerar essas melhores intenções e pensando na pressão que o mercado imobiliário exerce sobre os nossos políticos, a gente tem um movimento já longo de supressão de áreas verdes e de infraestrutura verde em prol de permitir o máximo possível de construções, não só para construção imediata, mas permitindo a possibilidade de construir e causando valorização de terrenos que no futuro serão construídos ou não ou só permanecerão sendo valorizados por um bom tempo, a gente vê as motivações políticas para que a gente tenha tanto a supressão do verde urbano.
Seguindo o raciocínio, a pesquisadora questiona o foco da ação: “já temos hoje em Fortaleza favelas que não têm infraestrutura adequada e que precisam ser providas de infraestrutura e, ao invés de focar na requalificação urbana dessas áreas, se permite uma ampliação das construções em outras áreas que hoje em dia ainda possuem cobertura vegetal. Isso cria um diluimento de onde é necessário levar infraestrutura. Eu passo a ter vários focos de urbanização novos na cidade que vão precisar infraestrutura, vão demandar diferentes níveis de poder. Se alguém constrói um prédio, dois prédios em uma área que ainda tinha alguma cobertura vegetal e que tinha pouca infraestrutura urbana e começa a demandar da Prefeitura infraestrutura e isso passa a conflitar com uma demanda mais antiga de uma área favelizada que também precisa de infraestrutura há mais tempo mas que não tem tão poder político-econômico para exercer essa demanda, isso continua só criando mais problemas”.
Pequenas, mas relevantes
Sobre a pesquisa, ela lembra que houve repercussão nos meios de comunicação e que qualquer vereador que tenha interesse de se informar sobre as questões ambientais em Fortaleza, a ciência está disponível e divulgada. Não é difícil ter acesso às informações de que nós temos já hoje um baixo nível de cobertura vegetal remanescente na cidade, portanto, qualquer pequena área remanescente é uma área importante porque compõe um mosaico de áreas já muito escassas devido ao histórico de urbanização da cidade. Os vereadores que propuseram e apoiaram as propostas de desmonte da proteção ambiental em Fortaleza, insistem em dizer que as áreas remanescentes que eles decidem passar por cima são irrelevantes, muito pequenas. Toda a área remanescente em Fortaleza é escassa por si só. Então, se esse é o argumento, de que a área por ser muito pequena e irrelevante, é possível desmontar a cidade inteira e não deixar mais nada de vegetação. Se a gente tem pouco verde, qualquer verde é relevante. Eles decidem não se informar ou decidem se informar e agir de acordo com seus próprios interesses e em detrimento da população”.
Para Laymara, as consequências da perda de proteção ambiental na cidade vão para a população não humana que vai perder habitação e possibilidade de trocas: “muitas dessas pequenas áreas agem como ‘Stepping Stones’, caminhos de pedras, imaginando pedrinhas de uma margem à outra do Rio onde se quer chegar. A gente tem uma área ampla em uma região da cidade remanescente, a APA do Rio Ceará e outra área, do Parque do Rio Cocó e essa população não humana tem uma necessidade de trocas genéticas, os pássaros precisam ter mais acesso a frutas, a cruzar entre si para aumentar diversidade genética, e usam essas pequenas áreas remanescentes para conseguir alcançar a outra área. Um pássaro sai do Rio Ceará e pousa em uma área pequena remanescente para se alimentar e voa mais um pouco e pousa em outra área remanescente e assim ele chega ao Parque do Rio Cocó. Isso é perdido, perdem essas trocas genéticas e essas populações ficam mais vulneráveis ao longo do tempo”.
Perda de Serviços Ecossistêmicos
Laymara destaca que, para a população humana, a perda de infraestrutura verde em margens de rios ou em dunas, que são ambientes muito importantes para o equilíbrio hídrico, se traduz diretamente em um aumento na possibilidade e na intensidade das inundações que levam a prejuízo financeiros, com perda de móveis e infiltrações nas casas e doenças. “Para as pessoas, principalmente em áreas mais vulneráveis economicamente, essa seria uma das principais consequências negativas. Mas a gente também vai ter uma perda de equilíbrio térmico porque, quanto menos área verde, mais quente a cidade fica. É possível que se criem ilhas de calor, como é comum em várias metrópoles no mundo”.
A pesquisadora também enumera consequências como o aumento da poluição sonora e atmosférica porque as árvores desempenham papel muito importante na mitigação de todos esses tipos de poluição. “Temos uma perda de conexão da cidade com o ambiente, desconexão entre gerações mais velhas e gerações mais jovens porque a natureza e o conhecimento sobre a natureza é uma forma muito importante de conexão entre gerações. As gerações mais jovens passam a ter menos acesso a conhecimento porque têm menos acesso à natureza”, descreve.
Por fim, destaca que são várias pequenas consequências, inclusive para a saúde humana: “existem diversos estudos mostrando a importância do contato com áreas verdes tanto para a saúde mental quanto à saúde física das pessoas porque estimulam a realização de caminhadas que têm efeito sobre a ocorrência de doenças cardíacas. Há consequências em todos os níveis para toda a população independentemente de poder econômico, mas que são piores para a população mais pobre”.
“E quem se beneficia no fim das contas? A população não humana não se beneficia, a população humana não se beneficia como um todo. Talvez alguns setores econômicos e alguns setores políticos associados a esses setores econômicos, principalmente o mercado imobiliário, sejam os únicos beneficiários”, conclui.
Uma necessidade para a Cidade
No artigo derivado da sua pesquisa, “Tão verde quanto possível: eficiência das unidades de conservação na metrópole de Fortaleza e vulnerabilidade da cobertura vegetal remanescente na malha urbana da cidade”, publicado recentemente na Revista Brasileira de Geografia (RBG) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em coautoria com professor Marcelo Moro, Maria Elisa Zanella, Maria Ligia Farias Costa, Liana Rodrigues Queiroz e Manuella Maciel Gomes, o tema é destacado como uma necessidade para a Cidade.
Maria Ligia, cientista ambiental pela UFC e mestranda em análise e Modelagem de Sistemas Ambientais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coautora do artigo e também ouvida na matéria sobre o que restou das áreas verdes da cidade, só consegue falar em tristeza diante da notícia: “quando eu vi, pensei, Fortaleza já está com poucas áreas verdes e extremamente urbanizada, tem diversas ilhas de calor em toda a cidade e a Câmara simplesmente a rova a perda de dez áreas verdes na cidade. É muito preocupante e triste saber que quem nos representa está votando a favor disso e que a gente vê pouquíssimas pessoas que realmente estão lutando por essa pauta”.
Sobre consequências, afirma: “diante de um cenário de crise climática que a gente está vivendo, se isso se concretizar é mais problemático. Este ano foi um ano muito difícil. A gente sentiu na pele o aumento dessa temperatura. E aí vamos ver como é que vão ser os próximos anos, diante disso, dessa perda de mais áreas verdes, não só para o nosso bem-estar, mas para a nossa biodiversidade. É um impacto imensurável”.
“Nós achamos poucas áreas realmente de maciços verdes e não vemos movimentação para criação de novas áreas verdes, de novas unidades de conservação. Pelo contrário, a gente vê um grande retrocesso mesmo. “Particularmente para mim é muito triste porque eu fiz esse trabalho com a perspectiva de contribuir mesmo para a gestão da infraestrutura verde de Fortaleza e eu sei a repercussão que teve. Muitas pessoas tiveram acesso. Eu sei de pessoas da própria Câmara que tiveram acesso a esse trabalho. Mas teria que ter mais pessoas para apoiar, para levar para frente essa pauta das áreas verdes como uma prioridade para a cidade. É realmente triste”, finaliza.