Por Andréa Lemos *
O imaginário sobre o nordeste brasileiro projeta duas principais imagens. De um lado, a imagem das praias ensolaradas e sua imensidão de mar, na faixa litorânea. Do outro, a da terra rachada e desnuda, no Semiárido. São imagens opostas, assim como são opostos os acontecimentos climáticos já notados nessas regiões. “A frequência dos eventos extremos vem aumentando, tanto de alta precipitação como de seca”, afirma Jean Pierre Ometto, um dos autores do grupo II do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). Os relatórios produzidos por esse coletivo acadêmico trazem a síntese da literatura científica e técnica produzida globalmente sobre o tema.
Para o Semiárido, portanto, o que já é seco pode se tornar ainda mais seco. Lançado em fevereiro deste ano, o relatório do grupo II do IPCC prevê um aumento na frequência e na intensidade das secas, com redução de até 22% no índice pluviométrico nos próximos 80 anos. Com isso, a tendência, segundo os cientistas, é que os rios perenes se tornem intermitentes, enquanto os intermitentes deixem de correr.
Apesar das previsões e das dificuldades passadas, continuar a viver no Nordeste nunca deixou de ser o desejo de pessoas como Djalma Araújo, 42. “Deus me livre! Nunca tive vontade de sair de onde eu estou”, afirma o agricultor, com convicção. Sua família habita a região desde, pelo menos, 1899. É o que descobriu o filho mais velho de Djalma, Diego Araújo, 18, que despertou a curiosidade de conhecer os parentes mais distantes. Até agora, a pesquisa da sua árvore genealógica alcançou cinco gerações.
São, assim, raízes profundas as que fincam os pés da família Araújo naquele pedaço de terra de dois hectares do agreste paraibano. O sítio, como Djalma gosta de chamar, foi propriedade de seus avós e fica na comunidade de Benefício, no município de Esperança. A cidade de nome tão sugestivo faz parte do Território da Borborema, uma microrregião composta por mais 21 centros urbanos da Paraíba. Por ali, os últimos 10 anos foram de seca severa, mas, além de nome de uma de suas localidades, Esperança é um sentimento que vem sendo cultivado no Território da Borborema por uma série de ações desenvolvidas principalmente pela parceria entre organizações não governamentais, sindicatos rurais e associações comunitárias.
Cisternas impulsionam Agroecologia
Quando passou a atuar na região, há três décadas, a ONG Assistência e Serviços a Projetos de Agricultura Alternativa (AS-PTA) propôs o desenvolvimento de programas para construir cisternas para coletar água da chuva. “Mas a ideia era, acima de tudo, apoiar os agricultores no desenvolvimento de práticas agroecológicas e estruturar canais de comercialização para esses produtos”, explica Adriana Galvão, assessora técnica da AS-PTA.
Em 2003, chegou à Borborema o Programa 1 Milhão de Cisternas (P1MC). A iniciativa possibilitou a construção de tanques de 16 mil litros, que são abastecidos pela água da chuva que cai sobre os telhados das casas. “Ao garantir o abastecimento de água para uso doméstico, a primeira conquista foi a permanência das famílias em suas propriedades durante os meses mais secos”, lembra Galvão.
A etapa seguinte teve início em 2009 com o Programa 1 Terra, 2 Águas (P1+2). Dessa vez, as cisternas construídas foram bem maiores, de 52 mil litros, o que passou a oferecer condições para a criação de pequenos animais e para a produção agrícola, capaz de atender as necessidades da família e fazer a venda do excedente.
“Aproveitamos esses programas para conscientizar as famílias sobre as virtudes de trabalhar em harmonia com a natureza e preservar os recursos naturais”, ressalta Lucileide Gertrudes, técnica agrícola da AS-PTA. A estratégia foi primeiro convencer um punhado de agricultores e depois facilitar o contato com os vizinhos para demonstrar que as técnicas agroecológicas não prejudicavam os volumes de produção. Durante os treinamentos, muitos agricultores deixaram de usar fertilizantes, aponta Lucileide.
Em paralelo à construção das cisternas, o Polo Sindical e das Organização da Agricultura Familiar da Borborema (Polo da Borborema) – que agrupa atualmente 13 sindicatos rurais – criou a Associação EcoBorborema, com o intuito de facilitar a comercialização da produção que passou a se tornar mais volumosa. Em acordo com prefeituras locais, foram criadas pequenas feiras orgânicas. A Paraíba tem, em 2022, 13 feiras agroecológicas e cinco pontos fixos de venda, chamados de Quitandas da Borborema, onde são comercializados produtos de cerca de 110 agricultores.
Para isso, outra iniciativa foi fundamental: a criação de bancos comunitários de sementes. O Projeto Sementes de Paixão permite preservar as variedades locais, orgânicas, em particular de feijão e milho, que são resistentes à seca. São as chamadas sementes crioulas.
Comunidade fortalecida
A transição de um modelo de Agricultura Familiar convencional para a Agroecologia que garante a Soberania Alimentar não é o único sucesso no Território da Borborema. “Nosso trabalho é um processo de transformação social em vários níveis”, avalia Adriana Galvão. “A melhoria econômica e a tomada em mãos do destino do território são frequentemente feitas por mulheres”, sublinha a assessora técnica, que também é coordenadora da Marcha pela Vida da Mulher e pela Agroecologia. Todos os anos, a marcha reúne milhares de mulheres agricultoras que buscam chamar atenção para as problemáticas de ser mulher no campo. “Essa emancipação foi parte de nossa estratégia global desde o início, porque contribui para reequilibrar gradualmente as relações entre mulheres e homens em um país machista e em um mundo rural tão machista quanto”.
Não à toa, Maria José Guedes Batista, 37, esposa de Djalma, está à frente do fundo rotativo de sua comunidade, junto com outras duas mulheres. “Nós, mulheres, somos mais organizadas”, afirma Maria José, mais conhecida por Erinha. Os fundos rotativos são mais um exemplo de solução comunitária que vem ajudando os agricultores a concretizar os projetos dentro de suas propriedades.
“Funciona assim: todo mundo dá uma contribuição mensal, dentro das possibilidades de cada família, tendo um valor mínimo de R$ 30. A cada dois meses, a gente faz um sorteio de uma ou duas pessoas que vão ser beneficiadas com o dinheiro para fazer suas coisas”, conta Erinha, esclarecendo que atualmente “as coisas” prioritárias são a construção de fogões ecológicos e a aquisição de tela para fazer galinheiro ou cercado para ovelhas. “Mas se a pessoa precisar para alguma emergência, como comprar um remédio, por exemplo, ela também pode usar o dinheiro do fundo rotativo. É como um empréstimo, só que não tem juros”, completa Djalma.
O forno ecológico a que Erinha se refere é uma novidade na região, proposta por um dos projetos mais recentes da AS-PTA junto com o Polo da Borborema, o Projeto Borborema Agroecológica. Por sua vez, o projeto faz parte de 11 iniciativas executadas no âmbito do Programa Gestão do Conhecimento para a Adaptação da Agricultura Familiar às Mudanças Climáticas (Innova AF), que está em desenvolvimento em diferentes países da América Latina.
Entre o início de 2020 e fim de 2021, o Borborema Agroecológica envolveu cerca de 2 mil famílias de sete comunidades da região com o objetivo de melhorar a gestão do conhecimento para adaptar a agricultura local às mudanças climáticas. Nesse período, as famílias participaram de oficinas comunitárias sobre apicultura, manejo integrado da água, revitalização do cultivo da mandioca, ovinocultura em pequena escala, entre outras atividades. Sem mencionar as oficinas de avaliação sobre os impactos da mudança climática e as estratégias de adaptação necessárias para lidar com ela. Tudo isso baseado em uma nova metodologia. “Até então, pensávamos em ações no nível de cada família”, conta Nirley Lira, outra assessora técnica da AS-PTA. “Agora, estamos encorajando as famílias a se reunirem como comunidades resilientes para unir forças e enfrentar juntos o desafio da mudança climática”.
Djalma diz já ter notado diferença dessas ideias em suas cercanias. “Esses últimos anos foram muito difíceis aqui, mas os projetos deram uma animada na comunidade. Acho que a gente está mais unido e isso faz a gente se sentir mais preparado para o caso de uma eventual situação mais extrema”, diz o agricultor, que conclui: “não tem jeito, né, na hora que aperta a gente tem que se unir, se não é mais sofrimento”.
Roselita Albuberque, uma das coordenadoras do Polo da Borborema, apoia plenamente o estabelecimento do conceito de comunidade resiliente. “As secas sempre existiram no agreste. Mas, desde 2011, elas se tornaram mais pronunciadas”, sublinha a agricultora da cidade de Remígio. “Também estamos preocupados porque estamos vendo uma interrupção das estações, que afeta os períodos de semeadura e colheita. Daí a importância de pensar e agir em conjunto para encontrar novas soluções concretas, especialmente para capturar e conservar a água preciosa nas melhores condições possíveis”, remarca Roselita.
Sobre esse ponto, Anailza da Silva André é uma pioneira. A agricultora de 43 anos é vizinha de Djalma Araújo, na comunidade de Benefício. Há cinco anos, Anailza e o marido, Aldenir Oliveira de Andrade, 40, construíram duas cisternas para coletar água do telhado de sua casa.
Em outubro de 2021, eles instalaram um sistema de reúso de águas residuais. A novidade foi um benefício implantado como piloto pelo Projeto Borborema Agroecológica. Com isso, a água da cozinha, da lavanderia e do chuveiro flui para um poço de cimento cheio de camadas de pedras, cascalho, areia e lascas de madeira. Uma vez filtrada, a água acaba sendo acumulada em um tanque.
“No momento, tenho 28 m3 de água de reúso disponíveis”, conta a agricultora, que, neste ano, conseguiu manter as plantações de feijão, milho, abóbora, macaxeira e hortaliças que já tinha, além de conquistar um pomar. Graças à água reaproveitada, agora Anailza tem em seu quintal pés verdinhos de banana, laranja, goiaba, manga, pequi, pinha, graviola e coco. A produção tem sido suficiente para alimentar ela, o marido e os três filhos. E, há três meses, as hortaliças passaram a render um excedente, vendido ao pessoal da comunidade. “A gente manda mensagem para os vizinhos no Whatsapp, e eles vêm comprar aqui em casa”.
Anailza e o marido também foram uns dos primeiros na região a adquirir o forno ecológico. Para isso, lançaram mão do dinheiro do fundo rotativo. Feito com tijolo de barro e estruturas de ferro, o forno requer menos lenha do que o tradicional e produz menos dióxido de carbono. Até então, a família consumia um botijão de gás por mês para cozinhar no fogão comum, que somava R$ 100 às despesas mensais. Com o forno ecológico, paga R$ 70 em dois metros de lenha que serve para usar o forno por mais ou menos quatro meses. “A gente só junta a isso [à lenha comprada] mais uns pedaços de pau que achamos por aí”, explica o casal.
Tanto Anailza quanto Aldenir estão sempre presentes nas reuniões do Sindicato e nas atividades propostas pela AS-PTA que, para ela, mudou a maneira como a mulher é vista. “Antes, as mulheres não saíam de casa, a gente não fazia nada. Agora a gente vai para as reuniões, a gente conversa, aprende coisas. Eu sinto que agora a gente tem importância dentro da comunidade”, reflete a agricultora, que faz questão de levar suas duas filhas para as atividades.
Apontando para o futuro
Há ainda outras iniciativas em curso no âmbito do Projeto Borborema Agroecológica. “Várias comunidades adquiriram infraestrutura para ensilagem”, diz Roselita, do Polo da Borborema, sobre a técnica que busca preservar melhor os nutrientes do que é produzido. “Também vimos um rápido retorno ao cultivo da mandioca, que requer pouca água e tinha desaparecido dos pratos das famílias da região”.
Mas é sobretudo a apicultura e a ovinocultura em pequena escala, financiadas pelos fundos rotativos comunitários, que ganharam mais importância nos últimos dois anos. “Isso não é apenas uma fonte significativa de renda, mas também ajuda a evitar que os jovens partam para as cidades”, diz Mateus Manassés Bezerra Nascimento, 25, que se apresenta com um sorriso no rosto como “biólogo, queijeiro e… agricultor experimental”.
“A apicultura, por exemplo, tem várias virtudes”, afirma o jovem, presidente da associação da comunidade de Soares, no município de Queimadas. Do ponto de vista econômico, a apicultura tem possibilitado que os jovens fiquem na terra de seus pais sem precisar de muito espaço para desenvolver seus trabalhos. E, do ponto de vista ambiental, a atividade é de suma importância “porque as abelhas são essenciais para a polinização e, em última instância, para o reflorestamento, que continua sendo a melhor arma na luta contra o aquecimento global”.
O resultado é que os jovens trazem novas ocupações para a família que melhoram sua renda e, ao mesmo tempo, ganham credibilidade junto aos pais. “E essa coabitação harmoniosa entre as gerações é bem-vinda diante dos desafios da mudança climática. Aliás, ainda mais importante porque somos nós, os jovens, que teremos que enfrentar esses problemas”, observa Mateus.
Sobre “enfrentar esses problemas” da mudança climática, o IPCC enumera a conservação dos ecossistemas naturais e a melhoria dos sistemas alimentares entre as diferentes medidas essenciais para evitar os piores impactos do clima. Nesse sentido, parecem caminhar os agricultores do Território da Borborema ao concretizarem transformações nas técnicas agrícolas, diversificação de cultivo, preservação de sementes orgânicas, reúso de água etc., demonstrando, ao final, fazer vez à sentença do personagem Riobaldo, no clássico Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa: “sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias”.
* Andréa Lemos elaborou esta matéria com a colaboração de Jean-Claude Gerez, que colheu depoimentos no Território da Borborema, por meio de uma bolsa de jornalismo fornecida pelo ClimaInfo com o apoio financeiro do Instrumento de Parceria da União Europeia com o Ministério Federal Alemão para o Meio Ambiente, Conservação da Natureza e Segurança Nuclear (BMU) no contexto da Iniciativa Climática Internacional (IKI). Os conteúdos desta publicação são de inteira responsabilidade dos seus organizadores e não necessariamente refletem a visão dos financiadores.