Uma quilombola, quatro indígenas e um cigano: este é o saldo parcial de vereadores eleitos em municípios cearenses que representam povos tradicionais no Estado. Apesar de parecer pequeno, o número é significativo e representa o resultado do trabalho de militância das comunidades representadas.

Paramentado, o indígena Weibe Tapeba participa de gravação em meio ao verde
O advogado indígena Weibe Tapeba (PT) conquistou a reeleição no município de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza | Foto: Rose Serafim

 

Por Rose Serafim
Colaboradora

Em Pacujá, a 303 Km de Fortaleza, no Norte do Estado, Ana Lúcia de Abreu (Cidadania) conseguiu ser a primeira quilombola eleita em todo o Ceará. Residente em Batoque, comunidade que abriga 55 famílias remanescentes de quilombo, a técnica em enfermagem nunca havia concorrido a nenhum cargo. Ana nunca havia se imaginado na política antes e teve que intercalar o curto período de campanha com os plantões realizados no hospital em que trabalha.

Ela explica que a candidatura surge de uma necessidade da comunidade que vive às escuras, sem acesso à água potável ou estrutura mínima urbana, como praças e quadras esportivas, e não enxerga em nenhum atual representante a vontade de trazer alguma melhoria para o lugar.

“Só temos mesmo um campo de futebol que eles mesmos (os jogadores) fizeram. Aos fins de semana ocorrem os jogos que é o nosso lazer. Em junho, a gente inventa quadrilha, nós mesmos fazemos as coisas porque não temos apoio da Prefeitura. Por essa situação, de não sermos vistos pelo poder público, a maioria da nossa comunidade hoje é oposição à atual gestão”, explica a vereadora eleita.

Ana Lúcia não costumava compor a militância quilombola antes da candidatura, mas afirma que foi contatada agora e pretende atuar pela causa durante o mandato. Isso principalmente tendo em vista questões que interferem diretamente na vida da comunidade, como a disputa de território. Como nenhuma comunidade quilombola cearense tem área demarcada, a dela também sofre com as cercas dos grandes proprietários de terra.

“De um lado tem uma cerca, do outro lado da comunidade tem outra cerca e a gente vive no meio, onde ainda passa uma pista que vai pra cidade”, lembra Ana Lúcia. Ela ainda revela que as famílias só podem contar com uma escola que atende apenas como creche. É nessa estrutura também que fica o poço profundo que abastece a comunidade e que está com o motor quebrado há mais de dois meses, impossibilitando a utilização pelos moradores. Como o poder público não ajuda a solucionar questões assim, ela explica que a população acaba se reunindo e fazendo vaquinha para arcar com os custos da manutenção do motor.

No entanto, esse dinheiro sai do bolso de uma comunidade formada majoritariamente por agricultores e pessoas aposentadas. No lugar, afirma a técnica de enfermagem, há somente um morador no quadro de funcionários públicos da Prefeitura. A maior parte dos residentes depende de projetos sociais e do que consegue tirar da terra e muitos acabam buscando trabalho em outros estados pela falta de oportunidades oferecidas no lugar de origem.

Ana Lúcia de Abreu, ao centro da foto, com vestido listrado preto e branco, sorri
A auxiliar de enfermagem Ana Lúcia de Abreu (Cidadania) representa a comunidade quilombola Batoque, em Pacujá, no Norte do Ceará

Ataque racista

Quando comemorava a vitória junto à comunidade, Ana Lúcia recebeu uma demonstração amarga de racismo. “Apareceu uma foto nas redes sociais de um botton em cima de um urubu ou uma galinha preta. Não lembro qual era o bicho, mas alguém colou a imagem do meu botton em cima”, conta. Ela lembra que a comunidade é alvo constante de discriminação racial na cidade e, apesar de sofrerem com isso, os insultos não desmotivam os moradores a continuarem na busca pelos próprios direitos.

“Somos tidos como os negros do batoque, os metidos, enxeridos, muito atrevidos. Mas, vivemos a nossa vida e damos as respostas certas, não nos abalamos. Isso fere? Fere sim, mas não desistimos”, afirma.

Segundo levantamento da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), 81 quilombolas foram eleitos para cargos municipais em 2020. Até esse domingo (29), a organização já havia mapeado dois prefeitos, nove vice-prefeitos e 68 vereadores eleitos. Ainda de acordo com a Conaq, apenas a Região Sul não teve quilombolas confirmados para o próximo mandato nem no executivo, nem no legislativo.

Os dois novos prefeitos são Vilmar Kalunga (PSB), que deve assumir a gestão da cidade de Cavalcante, na região da Chapada dos Veadeiros, em Goiás; e Elio Dionízio (PTB), que foi eleito prefeito de Chapada da Natividade, no Estado do Tocantins.

Mais votado em Pindoretama é cigano

Dos quatro candidatos de etnia cigana que se lançaram à disputa em municípios do Ceará, apenas José Pereira da Silva, o Nego Bom (PSB), conseguiu ser eleito. No entanto, o feito ocorre com glórias, já que ele leva a representação do movimento cigano no Ceará para a Câmara Municipal de Pindoretama, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), como o mais votado no município, com 866 sufrágios.

Nego Bom é comerciante, concorreu pela primeira vez e afirma que vai fazer um mandato em favor da comunidade cigana da cidade, que vive em situação precária, numa área de ocupação onde falta estrutura mínima, como água encanada e energia elétrica.

“Tem umas casas de tijolo, outras de barro; energia tem, mas é clandestina; a água vem de um poço que mandamos fazer lá”, conta. Nego explica que o plano do Instituto Cigano Brasil (ICB) é tirar as cerca de 40 famílias da área e colocá-las em outra região.

De acordo com ICB, foram 13 vereadores ciganos eleitos por todo o País. Cinco deles em municípios da Bahia; quatro no Maranhão; Nego Bom no Ceará; e mais um vereador em Sergipe e outro em Pernambuco.

No Ceará, Raney Mourão (PDT) já havia sido o único cigano eleito no Estado, em 2016, mas não conseguiu atingir a quantidade de votos necessária para reassumir o cargo e ficou na suplência do partido neste pleito. Também concorreram por aqui Samia Patrícia Santana (PTC), em Tianguá; e Bonjovi Cigano (Republicanos), que também concorreu em Pindoretama.

Para o cigano Rogério Ribeiro, presidente do ICB, o resultado em Pindoretama se deve ao árduo trabalho do Instituto para aproximar ciganos e não ciganos. Um dos métodos encontrados por eles para isso foi a oferta de cursos na cidade. Ainda de acordo com Ribeiro, a meta para 2022 é lançar mais candidaturas, sendo três delas para o legislativo em diferentes Estados do Nordeste.

“Nós precisamos eleger ciganos, indígenas, quilombolas, povos de comunidades tradicionais para fortalecer as políticas públicas, fazer com que o Estatuto da Igualdade Racial seja cumprido, que os direitos nossos sejam implementados”, defende Ribeiro.

Rogério Ribeiro, José Pereira da Silva, o Nego Bom e sua esposa posam segurando a bandeira do Instituto Cigano do Brasil em uma varanda
José Pereira da Silva, o Nego Bom (PSB), na foto entre Rogério Ribeiro, presidente do ICB e de sua esposa, foi o candidato mais votado para a Câmara Municipal de Pindoretama, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF)

Dois indígenas reeleitos e dois estreando

Também é em busca do cumprimento das políticas públicas e melhoria na estrutura oferecida à comunidade que Weibe Tapeba (PT) buscou reeleição no município de Caucaia, também na RMF. Em 2016, primeira vez que concorreu, ele conseguiu ser o único da sigla a ocupar uma vaga no legislativo de Caucaia. Neste pleito, a sigla também colocou o cacique Luiz Antônio, da etnia Anacé na suplência.

No município de Monsenhor Tabosa, no Sertão de Crateús, além do potiguara Vicente Sampaio Filho (PDT) ter sido reeleito para o quinto mandato; Valdemar dos Santos, do mesmo partido, mas pertencente à etnia Tubiba-tapuia, assume o primeiro mandato legislativo em 2021.

Aratuba leva à Câmara a única mulher indígena eleita em todo o Estado neste pleito: Elque Atanaelle Barroso da Silva. Elky (Democratas), como foi registrada nas urnas, faz parte dos Kanindé de Aratuba e foi eleita também para primeiro mandato.

De acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em 2020, um total de 2.212 representantes de povos originários lançaram-se na disputa por cargos eletivos, um aumento de 27% em comparação com 2016. O número de candidaturas já representava um recorde que se somou ao resultado: 236 eleitos em todo o País, um aumento de 27% em comparação com 2016. Esse total leva aos cargos municipais a representação de 71 etnias, segundo o levantamento.

São 215 vereadores, dez prefeitos e 11 vice-prefeitos indígenas eleitos por todo o país em 2020. No último pleito municipal, saíram vitoriosos 169 vereadores, seis prefeitos e dez vice-prefeitos pertencentes a povos originários.

Segundo o advogado e vereador eleito Weiber Tapeba, o movimento indígena tem trabalhado para o fortalecimento de candidaturas, tanto indígenas como de outros povos tradicionais, e a tendência é que isso favoreça o lançamento de nomes para o legislativo estadual em 2022. “Acredito sim em um cenário favorável para uma candidatura forte que defenda essas bandeiras no parlamento estadual”, afirmou.

Povos tradicionais do Brasil

O Decreto Federal Nº 6.040/2007 define povos e comunidades tradicionais como “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos por tradição”.

A estimativa é de 29 categorias de povos tradicionais no País, incluindo quilombolas, ciganos, matriz africana, seringueiros, castanheiros, quebradeiras de coco-babaçu, comunidades de fundo de pasto, faxinalenses, pescadores artesanais, marisqueiras, ribeirinhos, varjeiros, caiçaras, praieiros, sertanejos, jangadeiros, ciganos, açorianos, campeiros, varzanteiros, pantaneiros e caatingueiros.

Por terem passado por processos históricos específicos que os levam a condições de pobreza, preconceito e vulnerabilidade social, foi destinada a esses povos uma política nacional própria de desenvolvimento sustentável, descrita no mesmo decreto de reconhecimento.

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