Dois homens, uma mulher e outro homem seguram vagens marrons. Os três homens usam boné e a mulher usa um lenço preto na cabeça. Eles estão posicionados atrás de três sacas em meio à vegetação
O jatobá é um dos produtos do Cerrado que torna possível a sociobioeconomia do bioma | Foto: Arquivo pessoal

Em Julho de 2000 foi criada a Área de Preservação Ambiental (APA) do Jalapão, na porção tocantinense do Matopiba, que é a divisa agrícola que avança entre os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Junto à criação da Unidade de Conservação (UC) que conta com 461.730 de Cerrado, no município de Mateiros, nasceu a história do mestre Zé Menininho e o sucesso da farinha de jatobá produzida em sua propriedade, na comunidade de Fazenda Nova, situada entre a APA do Jalapão e o Parque Estadual do Jalapão, criado em 2001.

Denominado com as sílabas iniciais dos quatro estados que abrange – Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia –, o Matopiba inclui 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais desses três Estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho e algodão.

O Matopiba tem 73 milhões de hectares em três biomas: Cerrado ( 66,5 milhões de hectares, o equivalente a 91% da área), Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a 7,3%) e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.

Tudo começou quando, à época da criação das duas Unidades de Conservação, incentivado pelo Instituto Natureza do Tocantins (Naturatins), que é a autarquia estadual que administra essas áreas protegidas, e pela Associação Onça D’Água, o Zé Menininho passou a enxergar o extrativismo do jatobá como uma possibilidade de geração de renda. A partir do diálogo entre as duas instituições junto ao agricultor familiar e sua família, recursos e capacitações foram viabilizados como uma aposta de que o Zé Menininho seria pioneiro na produção de farinha de jatobá na região em um trabalho que une tradição e a conservação de espécies nativas do Cerrado à geração de renda.

“Na busca de alternativas sustentáveis para que essas comunidades se mantivessem no entorno das unidades de conservação, propomos atividades alternativas e uma delas era produzir farinha de jatobá, com base em um estudo da Embrapa que já garantia a importância do aproveitamento do fruto. Criou-se uma prática que se repetiu por anos seguidos. Junto ao Naturatins passamos a dar suporte a essas famílias. Com esse movimento de colaboração surgiu a Rede Jalapão de produtos artesanais, cuja ideia era conectar todos os agroextrativistas da região em uma rede colaborativa. Assim, chegamos ao Zé Menininho, que se aprimorou, viajou por conta do projeto e ampliou seus conhecimentos na produção da farinha de jatobá”, destaca Maurício Araújo, diretor executivo da Onça D’Água.

Um homem pardo de camisa gola polo azul e boné preto escrito em letras brancas JALAPÃO posa para foto atrás de um estande cheio de potes com alimentos. Atrás dele há outro estande onde uma mulher atende outra mulher e acima uma placa verde onde está escrito com letras brancas POVOS ORIGINÁRIOS E TRADICIONAIS
Zé Menininho passou a enxergar o extrativismo do jatobá como uma possibilidade de geração de renda e foi pioneiro na produção da farinha de jatobá | Foto: Arquivo pessoal

Nascido e criado na mesma propriedade que conta com 160 alqueires e que hoje está inserida nas dependências da APA do Jalapão, Zé Menininho ressalta que está cercado de muita natureza, espécies nativas, nascentes e cartões-postais disputados pelo turismo, conhecidos como “fervedouros”. Para o agricultor familiar é um orgulho trabalhar em favor da conservação desse espaço em uma atividade que não depende do desmatamento e que, pelo contrário, só prospera com a floresta em pé. Não à toa, Zé Menininho é também conselheiro da Unidade de Conservação.

Rejane Nunes, supervisora da APA do Jalapão considera que é papel complementar das gestões de unidades de conservação como estimuladores junto à comunidade, ter um olhar mais cuidadoso para as possibilidades de uso sustentável dos recursos naturais. “Seu Zé Menininho é um extrativista morador da APA do Jalapão, que acreditou e aproveitou todos os conhecimentos adquiridos e a novas oportunidades de conhecimento desenvolvimento sobre as diversas possibilidades de uso das espécies do Cerrado como fonte de renda, incentivando o cuidado e o zelo especialmente aquelas que fornecem o fruto. O ganho com esta conduta é a preservação do Cerrado, a exemplo do jatobá, cuja madeira é a principal opção para uso em construção na região.”

Zé Menininho relembra que com capacitações voltadas para 17 famílias e um recurso inicial de R$ 15 mil, foi possível comprar utensílios e embalagens e assim começou a produzir a farinha de jatobá. “Conseguimos uma engenheira de alimentos que acompanhou a gente por três anos nesse início. Para a coleta do jatobá, várias instituições nos ajudaram, juntando voluntários e carros para trazer a grande quantidade dos frutos. Junto a isso também produzimos geleia de baru, óleo de buriti, farofa de pequi, doce de mangaba e tantos outros produtos feitos com frutos nativos. Assim começamos a vender devagarzinho, enquanto isso o Naturatins seguiu buscando mercados para a nossa produção ”.

Dessas 17 famílias iniciadas, apenas a de seu Zé Menininho e outras duas seguiram com a produção, tornando-se os únicos na região a produzirem a farinha de jatobá. Inicialmente, era vendida localmente, em feiras livres e mercados menores, mas com inserção de projetos, buscas por mais capacitações e recursos somados a todo um trabalho feito em rede junto a diversas instituições, a história do agricultor familiar chegou a Brasília e a farinha de jatobá produzida por ele alcançou as prateleiras da Central do Cerrado, uma das principais vitrines de mercado da sociobioeconomia brasileira.

Duas mulheres, uma de cabelos grisalhos e usando lenço preto no cabelo e vestido florido e outra de cabelos pretos lisos e longos usando camiseta verde clara e calça jeans ensacam vagens marrons que estão sobre uma superfície em um quintal com muro de tijolos ao fundo
A atividade ainda é manual. Mas os extrativistas do Jalapão buscam uma rede de apoio para adquirir equipamentos e ganhar mais escala na produção | Foto: Arquivo pessoal

“Aí a coisa mudou! Junto a isso, conheci a Marta Barbosa, diretora de Tecnologias Sociais e Sociobiodiversidade da Secretaria do Desenvolvimento da Agricultura e Pecuária (Seagro). Ela acompanha meu trabalho desde o princípio e abriu portas para que eu fosse expor meus produtos e levar nossos conhecimentos para uma importante feira que ocorre em Palmas, a Agrotins. Assim a coisa se desenvolveu até chegar ao grande mercado que temos hoje”, recorda.

O mercado da farinha de jatobá foi se expandindo, chegando a ser vendida até para o exterior. Além da Central do Cerrado, das feiras livres e sorveterias locais, para onde se destina a produção, Zé Menininho também mantém um pequeno comércio próprio, em sua cidade, onde vende o produto para turistas que visitam a região.

“Aqui na minha propriedade, não dependemos só da produção da farinha de jatobá. Nós plantamos nossa roça e também criamos os nossos bichos, mas posso dizer que a venda da farinha de jatobá faz muita diferença para a renda da nossa família e para a criação dos meus filhos. Além disso, também consumimos o que produzimos. Trabalhar com o jatobá me trouxe grandes aprendizados e conhecimentos. Sou muito grato a todas essas instituições que lutaram pela gente”, detalha.

Um novo capítulo ainda mais próspero dessa história se iniciou quando o produto passou a compor o cardápio de crianças de escolas públicas do Estado do Tocantins.

Merenda escolar

Grande quantidade de frutos (jatobá) retirados das vagens em um recipiente metálico retangular
O jatobá é um alimento extremamente nutritivo e a farinha é tão versátil que foi introduzida na merenda escolar de diversos municípios de Tocantins | Foto: Arquivo pessoal

Por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que prevê que 30% dos alimentos adquiridos sejam de origem da agricultura familiar, a farinha de jatobá produzida no Jalapão abastece escolas públicas de Palmas e de outros 60 municípios do Estado do Tocantins. A facilitadora nesse processo é a Associação dos Agricultores Familiares e Agroindústrias e Extrativistas do Estado do Tocantins (Agrope).

Aurilene Rodrigues, nutricionista e fundadora da Agrope, relembra que chegou ao trabalho de Zé Menininho quando possuía um espaço terapêutico voltado para alimentação de pessoas com comorbidades e que necessitavam de uma dieta restrita. Por indicação de Marta Barbosa, da Seagro, Aurilene conheceu Zé Menininho e sua produção.

“Para essas receitas, eu precisava de uma farinha sem glúten, a farinha é uma delícia e pode inclusive substituir o leite em pó. Comecei a testar e daí saíram receitas maravilhosas, como bolos e pães para substituir na alimentação de crianças intolerantes à glúten e lactose. Foi quando outros nutricionistas passaram a me procurar e o produto foi ganhando fama”.

Considerado como energético natural, o jatobá conta com vitaminas A e C, minerais como ferro, potássio, fósforo, cálcio, magnésio, manganês, zinco e cobre. Além disso, contém minerais e fibra insolúvel, e ajuda a reduzir o índice glicémico. Não tardou para que as receitas feitas com a farinha de jatobá começassem a ser validadas pelos conselhos de alimentação do Estado, até chegarem a compor os cardápios das escolas. A aceitação por parte das crianças também foi um sucesso. “Pense num sucesso! O sabor é adocicado e ainda melhor que o do cacau, por não conter o amargo. Pode muito bem substituir o achocolatado”, destaca.

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Esta semana Aurilene Rodrigues chegará a uma feira internacional, em Bogotá, na Colômbia, para apresentar a farinha de jatobá de Zé Menininho, junto a outros produtos nativos do Cerrado. Além disso, localmente, a Agrope vem realizando atividades voltadas aos estudantes de Escolas Famílias Agrícolas (EFAs), do Tocantins, para que aprendam cada vez mais sobre as receitas e subprodutos oriundos do jatobá, já que esses estudantes são filhos de agricultores e extrativistas da região.

“A Agrope virou uma referência. Os estudantes vêm para cá para assistir aula sobre alimentação saudável e ver como são feitos esses produtos que eles estão comendo, como bolo, pães e cookies. A ideia é que eles compreendam que isso também vai ser bom para a preservação do meio ambiente e para a geração de renda”.

A fundadora da associação destaca que o próximo passo é buscar uma rede de apoio para adquirir equipamentos a fim de aumentar as produções, já que os procedimentos ainda são todos manuais.

“Estamos na luta para contemplar os 139 municípios do Tocantins com a farinha de jatobá nas receitas das escolas. Hoje nós estamos buscando apoio com Embrapa, Sebrae e organizações como o Instituto Sociedade e Proteção à Natureza (ISPN), além de outras que trabalham com a preservação do meio ambiente para que nós possamos conseguir equipar primeiro Zé Menininho, que é o pioneiro, e depois as outras comunidades que possuem interesse em trabalhar com a farinha de jatobá.

A associação também colabora na preparação de voluntários para ajudarem na colheita e no processamento do jatobá que é todo artesanal. “É um monte de gente cantando, quebrando jatobá, outros pilando, outros secando a farinha do jatobá no fogo. É a coisa mais linda, é uma festa onde esse pessoal se reúne para trabalhar e ajudar nessa produção. Todos juntos para salvar a natureza do Cerrado e gerar renda”, finaliza.

Projeto ma.to.pi.ba.

Este conteúdo faz parte do Projeto ma.to.pi.ba., uma ação multimídia da Eco Nordeste, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Com início em janeiro de 2024, traz matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo em que aborda os problemas socioambientais, a iniciativa multimídia aponta experiências que têm dado certo na região, seguindo a linha editorial de jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.

O projeto é executado por uma equipe premiada composta pelas repórteres Alice Sales e Camila Aguiar, com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação-geral da jornalista Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação, Flávia P. Gurgel é responsável pelo design; Isabelli Fernandes, edição de podcasts; Adriana Pimentel a edição das newsletters; e Andréia Vitório faz o gerenciamento das redes sociais.

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