Artesanato feito de capim dourado, doces e seda de buriti, óleo de pequi, farinha de jatobá. Esses são alguns exemplos de produtos oriundos da rica biodiversidade do Cerrado e que têm transformado vidas em comunidades extrativistas existentes nas divisas entre os estados da Bahia, Maranhão, Piauí e Tocantins, numa região conhecida como Matopiba. No cenário da mais recente fronteira agrícola do País, onde o agronegócio avança a passos largos, utilizar de forma sustentável os recursos vegetais é uma forma de aliar a conservação da natureza à geração de renda e a saberes que passam de geração em geração.
Em Mateiros, no Estado do Tocantins, a natureza preservada do Cerrado que envolve o Jalapão tem proporcionado às comunidades quilombolas o sustento e oportunidades de transformações de vidas. A exemplo dessa história, dona Laudeci Ribeiro, mestre, artesã e presidente da Associação Comunitária dos Artesãos e Pequenos Produtores de Mateiros (ACAPPM), teve a sua trajetória de vida revolucionada pelo extrativismo e o feitio de artesanatos de capim dourado, produto que nasce exclusivamente no Cerrado e que é usado para fazer bolsas, bijuterias, esculturas e os mais diversos utensílios artesanais, que atraem os olhares por sua tamanha beleza reluzente. Apesar do nome, o capim dourado não é de fato capim. Na verdade, é a haste de uma pequena flor branca da família das sempre-vivas.
Aos 7 anos de idade, ainda menina, dona Laudeci teve o seu primeiro contato com o considerado “ouro do Jalapão”, quando junto à sua mãe e suas cinco irmãs, aprendeu a costurar artesanatos feitos com capim dourado com uma professora local. Desde então nunca mais parou e vem há anos colhendo frutos e vivendo oportunidades propiciadas pela arte dourada feita por suas mãos.
“A partir de uma feira que ocorria em Palmas (TO), nossos produtos passaram a ser conhecidos. Não demorou muito para que os nossos artesanatos ganhassem a atenção da mídia, chegando até a jornais internacionais. Cheguei a dar entrevista a revistas como a Marie Claire, dentre outras. Foi assim que o capim dourado passou a ser um produto conhecido e desejado, o que facilitou muito as vendas. Esse reconhecimento também foi uma alegria porque aquelas pessoas da comunidade que não acreditavam no potencial do capim dourado começaram a querer trabalhar com o artesanato ”, relembra.
Na medida em que as vendas iam aumentando, dona Laudeci conta que foi conseguindo melhores condições financeiras e assim decidiu buscar o conhecimento por meio dos estudos. Conseguiu se formar em um curso técnico de Enfermagem e depois concluiu a faculdade de licenciatura em Matemática. Apesar das novas possibilidades, nunca deixou de atuar no arranjo produtivo local do capim dourado e atualmente lidera a Associação que agrega e gera renda para mais de 80 famílias de artesãos e extrativistas, que contam com a atividade como sustento. Além do capim dourado, os agroextrativistas associados trabalham com o óleo do buriti, mamona, copaíba e sucupira, fava d’anta, baru e farinha de jatobá, que atualmente é servida na merenda escolar das escolas públicas de Palmas.
A grande preocupação não só de dona Laudeci, como de seus colegas extrativistas locais é o avanço do desmatamento e da degradação de recursos naturais na região. “Precisamos da natureza para exercer o nosso ofício, e aqui lidamos com muito desmatamento que avança cada vez mais para perto das comunidades tradicionais. Se o Cerrado perder suas florestas e frutos, perdemos também nossas oportunidades de trabalhar com esses produtos. Ainda temos muito que lutar”.
Valor agregado
Apesar de serem produções promissoras e que fazem a diferença na vida dos camponeses, os produtos da biodiversidade do Cerrado ainda encontram barreiras para que sejam reconhecidos como importantes na economia brasileira. Para Isabel Figueiredo, coordenadora do Programa Cerrado e Caatinga do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), isso se deve ao fato de que essas produções acabam sendo subnotificadas nos dados oficiais.
“Por exemplo: se buscarmos dados sobre as produções de municípios como Balsas, São Raimundo das Mangabeiras ou outro na região do Matopiba, só iremos encontrar números e informações referentes às produções de commodities, por meio de empresas que recolhem impostos, mas não encontraremos muita coisa sobre essa diversidade de alimentos produzidos nas comunidades tradicionais, que são comercializados em mercados informais, como feiras livres, atravessadores, grupos no Whatsapp ou de porta em porta”.
Um diferencial dessa produção agroextrativista é o valor agregado que se pode atribuir a esses produtos, e sobre isso Isabel Figueiredo ressalta que para além de todo o trabalho do feitio e preparo dos derivados, há também o valor agregado à inclusão social dessas comunidades, aos serviços ecossistêmicos prestados por elas ao exercerem o extrativismo associado à conservação das espécies e dos ecossistemas, além de essas atividades serem saberes ancestrais que passam de geração em geração.
Para Anderson Sevilha, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Recursos Genéticos e Biotecnologia, há demanda de mercado, não só para os produtos do Cerrado, mas para os produtos da Caatinga, da Amazônia e de todos os biomas brasileiros. O cientista destaca que a diversidade de espécies e de povos e comunidades tradicionais que convivem nesses ambientes é fonte inesgotável de produtos e conhecimentos que devem ser conhecidos, reconhecidos, resgatados, valorados, valorizados e incentivados em contraposição ao uso desordenado desses territórios e desvinculados do potencial ambiental, cultural e social, ali presentes.
“A ocupação desordenada afeta não apenas a manutenção da vida no interior profundo do País, mas também dos povos que vivem nas cidades. O exemplo mais recente dessa ocupação e usos desordenados dos sistemas de terras vem do Rio Grande do Sul. Mas a discussão não é apenas sobre geração de renda, ou não pode estar centrada apenas nisso, que ocorre e é importante, mas também ao tipo de inclusão que se está construindo, ou seja, ao modelo de relações econômicas em que estamos incluindo essas comunidades. O Modelo clássico econômico reproduz no Brasil profundo as relações econômicas de exploração que temos nos grandes centros urbanos, mascarado por aquilo que hoje se chama, ou se classifica, de bioeconomia, que olha para essas comunidades apenas como fonte de insumos e de mão de obra barata. Um caso clássico é o do açaí”, afirma.
O pesquisador exemplifica que, tradicionalmente, um extrativista subia de uma a duas vezes por dia em um pé de açaí para tirar aquilo que localmente se chama do bebe. Com a inserção do açaí no mercado local, esses extrativistas passaram a subir de 10 a 20 vezes por dia nos pés de açaí. E quando o açaí ganhou o mundo, esses extrativistas passaram a assinar contratos de entrega e passaram a subir de 30 a 40 vezes por dia durante a safra.
“Tem empresário que diz que nas áreas deles os extrativistas sobem até 100 vezes por dia. Isso equivale a escalar um prédio de 2 km de altura todos os dias, o que é humanamente impossível. Daí o extrativista leva toda a família para subir e colher o açaí. Com isso, passaram a ser especialistas na produção de açaí, mas deixaram de produzir as suas roças e de reproduzir as suas relações sociais. Seus filhos e filhas, deixam de ir à escola, e são inúmeros os acidentes que levam ao afastamento de suas atividades, deficiências, incapacitação e morte”, detalha.
E completa: “desse modo, ganha-se dinheiro, mas troca-se, agora, esse dinheiro, por ultraprocessados e produtos industrializados. Ganha-se dinheiro, mas perdem-se vidas e a qualidade de vida. Ganha-se dinheiro, mas perde-se o conhecimento tradicional e as suas relações comunitárias e com a floresta. Com o dinheiro, ganharam adicionalmente hipertensão, diabetes e outras mazelas que não tinham notícias até então. Isso é trágico e se reproduz em maior ou menor escala quando consideramos outros produtos em outros biomas. Fez-se necessário trabalhar outros aspectos na construção dessas relações, uma vez que os agroextrativistas não vivem de atividade única, mas de um conjunto de atividades que vão da agricultura ao extrativismo”.
Quanto à capacidade de geração de renda desses produtos, Sevillha considera que a discussão deve vir acoplada de desenvolvimento de capacidades e agregação de valor a esses produtos. E para isso se faz necessário investimentos em formação e desenvolvimento de capacidades locais e também na infraestrutura para processamento e comercialização desses produtos. “Temos vários exemplos de sucesso, com processamento e comercialização de produtos do Cerrado, como o baru, pequi, cagaita, mangaba, coquinho azedo e coco babaçu; e na Caatinga com o licuri, maracujá da Caatinga, umbu e mangaba, dentre outros, além de produtos da Amazônia com o açaí, bacuri, taperebá e copaíba”, comemora.
Como uma das iniciativas que busca fortalecer cooperativas, associações e famílias agroextrativistas do Cerrado de forma a dar oportunidade de espaço no mercado e visibilidade para esses produtos, o pesquisador cita a Central do Cerrado. O espaço funciona como uma cooperativa que reúne diversas organizações comunitárias que desenvolvem atividades produtivas a partir do uso sustentável da biodiversidade do Cerrado e da Caatinga. Sediada em Brasília e com box no famoso Mercado de Pinheiros, em São Paulo, em parceria com o Instituto Atá, a iniciativa promove e divulga produtos comunitários de uso sustentável nos mercados regionais, nacionais e internacionais.
Matopiba
Denominado com as sílabas iniciais dos quatro estados que abrange, Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, o Matopiba inclui 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais desses três estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho e algodão.
O Matopiba tem 73 milhões de hectares em três biomas: Cerrado ( 66,5 milhões de hectares, o equivalente a 91% da área), Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a 7,3%) e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.
Este conteúdo faz parte do Projeto ma.to.pi.ba., uma ação multimídia da Eco Nordeste, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Com início em janeiro de 2024, traz matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo que aborda os problemas socioambientais, a iniciativa multimídia aponta experiências que têm dado certo na região, seguindo a linha editorial de jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.
O projeto é executado por uma equipe premiada composta pelas repórteres Alice Sales e Camila Aguiar, com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação geral da jornalista Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação, Flávia P. Gurgel é responsável pelo design; Isabelli Fernandes, edição de podcasts; Adriana Pimentel, edição das newsletters; e Andréia Vitório faz o gerenciamento das redes sociais.
Excelente matéria. Parabéns!