Comunidades costeiras em Sergipe são prejudicadas pela geração de energia térmica

Dando sequência à série de reportagens Termelétricas do Nordeste, esta aborda os problemas ocasionados pela presença da considerada maior usina termelétrica movida a gás natural da América Latina, situada na zona metropolitana de Aracaju.

Fotografia de embarcações pequenas ancoradas nas margens de um largo rio com uma grande ponte que o cruza ao fundo sob céu azul com nuvens brancas

No município de Barra dos Coqueiros, zona metropolitana de Aracaju, está situada a Termelétrica Porto Sergipe I | Foto: Camila de Almeida

Por Alice Sales
Colaboradora

O município de Barra dos Coqueiros está situado na zona metropolitana de Aracaju, a apenas dez minutos do centro da capital de Sergipe. O que separa as duas cidades é o Rio Sergipe, cruzado por uma ponte que as ligam. A paisagem do lugar traz aos olhos imensos coqueirais, bonitas praias, rios, lagoas intermitentes e manguezais em um litoral que há algum tempo vem sendo ocupado por condomínios residenciais de luxo e grandes resorts.

É na Barra dos Coqueiros onde fica o Terminal Marítimo Inácio Barbosa, o único do Estado de Sergipe, inaugurado em 1994. As atividades portuárias, assim como ocorre na maioria das cidades, atraíram, ao longo dos anos, outros empreendimentos para as imediações. Um deles é a Usina Termelétrica Porto Sergipe I, gerida pela Centrais Elétricas de Sergipe S.A (Celse). A usina, que entrou em operação comercial em 2020, é considerada a maior termelétrica movida a gás natural da América Latina.

Fotografia aérea de uma grande estrutura de indústria, vegetação e torres geradoras de energia eólica ao fundo às margens do mar, ao fundo, à direita, sob céu azul com nuvens cinzas

Usina Termelétrica Porto Sergipe I, gerida pela Centrais Elétricas de Sergipe S.A (Celse), movida a gás natural | Foto: Camila de Almeida

Com capacidade de gerar 1.593 MWh de energia elétrica, o suficiente para atender até 15% da demanda do Nordeste, o equipamento fornece energia para 26 distribuidoras espalhadas pelo Brasil.

Contudo, a grandiosidade do empreendimento e a energia gerada pela usina não são as únicas marcas que a Termelétrica Porto Sergipe I trouxe para a Barra dos Coqueiros e comunidades que lá vivem. Para além de todo transtorno que empreendimentos que se instalam em zonas costeiras causam, os impactos socioambientais trazidos pela conversão de gás natural em energia, no litoral da zona metropolitana de Aracaju, são muitos.

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Área de pesca reduzida

Lugar que abriga cerca de 150 famílias descendentes de indígenas e negros escravizados, a Comunidade Quilombola de Pontal da Barra é um dos povoados situados nas imediações da Termelétrica. Organizada, atualmente, em ruas de calçamento com casinhas coloridas construídas uma ao lado da outra e que foram conquistadas pelo povo ao longo dos anos, a comunidade teve origem pelo processo migratório de pessoas menos favorecidas que aos poucos foram ocupando o lugar. Os mais importantes recursos naturais de Pontal da Barra são os mangues, o Rio Japaratuba e o mar, o que torna a atividade pesqueira uma das principais fontes de renda dessas famílias remanescentes, que fazem questão de permanecer em seus lugares.

Fotografia aérea de ruas e casinhas enfileiradas em comunidade ao lado da praia, ao fundo. A comunidade está cercada por vegetação e lagoas sob contém céu azul com nuvens brancas

Comunidade Quilombola do Pontal da Barra | Foto: Camila de Almeida

Ao caminhar pela areia da Praia de Pontal da Barra, avistamos ao longe um navio ancorado em alto mar. Não é qualquer navio: trata-se do Golar Nanook. A embarcação funciona como uma unidade de armazenamento e regaseificação do Gás Natural Liquefeito (GNL), atracada a 6,5 km da costa. Ligado ao navio há um gasoduto para transporte do gás até a usina, além das adutoras de captação de água e descarte de efluentes.

Apesar da alta tecnologia que envolve o sistema de ancoragem e o gasoduto, a presença do Golar Nanook vem ameaçando a pesca local, uma das principais atividades econômicas realizadas pelas pessoas que vivem nas comunidades costeiras da Barra dos Coqueiros.

Robério da Silva, 53, é pescador e líder comunitário da Comunidade Quilombola de Pontal da Barra e conta que a chegada do Golar Nanook foi o prenúncio dos prejuízos que a termelétrica causaria na região. A presença do navio trouxe aos pescadores a limitação de permanecer distantes da embarcação, que está atracada na melhor área pesqueira do lugar.

Fotografia de homem negro de cabelos grisalhos usando camisa laranja e bermuda cinza. Ele caminha em uma rua de calçamentos. Ao fundo, desfocado, há casinhas coloridas enfileiradas sob céu nublado

Robério é pescador e está à frente das mais diversas lutas que a Comunidade Quilombola de Pontal da Barra enfrentam na busca por Justiça Ambiental e dignidade | Foto: Camila de Almeida

“A primeira coisa que disseram é que perto desse navio ninguém poderia encostar e que tem que manter a distância de 500 metros. A gente não tá acostumado com isso e, quando as embarcações menores passavam por perto, o navio se acendia todo, tocava sirene pra gente se afastar. Donos de barcos foram chamados atenção e toda essa área ficou restrita somente ao navio. Fora que parte das tubulações da usina é aterrada e parte fica exposta, então, quando a rede de pesca vem, fica enganchada nas tubulações e muitos pescadores já perderam suas redes”, relata o pescador.

O líder comunitário quilombola alerta para o fato de que muitos pescadores de comunidades da região estão indo embora, buscar oportunidade de pesca na Bahia, no Espírito Santo e em São Paulo, por causa da atividade prejudicada pela instalação do navio do gasoduto e das atividades da térmica. “Hoje, nós nos sentimos muito prejudicados pela presença da Celse. Nunca tivemos melhora, tudo só piorou. Em 2016 chegamos a pegar 30 a 40 kg de peixes por dia, mas, já em 2017, quando começaram as obras da termelétrica, os peixes sumiram”, completa.

Robério considera que o empreendimento só significa desenvolvimento para os grandes, mas que, para a sua comunidade, só trouxe atrasos. Inclusive, ele destaca que os tantos empregos prometidos à época da instalação da termelétrica nunca contemplaram ninguém de sua comunidade.

A presença da usina não impactou a comunidade somente na pesca. As atividades da termelétrica começaram a afetar a saúde das pessoas, tanto que foi necessário retirar quase 200 famílias que viviam na Comunidade Cajueiro I, situada em frente às instalações, que já estavam lá quando o empreendimento chegou. “A água que eles usam é salgada. O vapor que sai das caldeiras contém salitre e ardia nos olhos das pessoas, causava falta de ar e até sangramento pelo nariz. Foi quando a ocupação Cajueiro I teve que ser removida e transferida para outro lugar”, relembra o pescador.

A remoção foi marcada por muita resistência. As pessoas foram retiradas de uma área onde elas tinham viveiros de peixes, plantas e frutos no quintal. “Levaram para um lugar que não nasce nada. As pessoas só têm onde morar, mas onde trabalhar não têm”, completa.

O Temor da expropriação

Nas imediações da Termelétrica, há o espaço onde um dia foi a Comunidade Recanto dos Cajueiros I. Assim como a comunidade vizinha, Recanto dos Cajueiros II, ela se estruturou por meio de pessoas que há mais de 30 anos ocuparam os terrenos da União e foram, aos poucos, com muito sacrifício e suor, construindo seus barracos e casinhas, em busca de sobrevivência. Logo encontraram na terra a possibilidade de sobreviver, da agricultura familiar, e, principalmente, da coleta e da venda do fruto típico da região, a mangaba.

Fotografia emoldurada por uma janela de casinhas coloridas construídas lado a lado

Organizada, atualmente, em ruas de calçamento com casinhas coloridas construídas uma ao lado da outra e conquistadas pelo povo ao longo dos anos, a comunidade quilombola teve origem pelo processo migratório de pessoas menos favorecidas | Foto: Camila de Almeida

Lucia de Fátima de Oliveira, 65, liderança comunitária do Recanto dos Cajueiros II, relembra que as famílias que viviam no assentamento vizinho, Recanto dos Cajueiros I, foram expropriadas, receberam novas casas em outro lugar e foram indenizadas em valores irrisórios, relativos às plantações que mantinham no assentamento. Essas famílias que viviam da agricultura e pescaria, foram levadas a um lugar onde não há pesca, nem espaço para plantar. A razão alegada pelo empreendimento para remover a comunidade foi o ruído causado pelas atividades da termelétrica.

O temor que o mesmo ocorra com as famílias que vivem no Recanto dos Cajueiro II assombra diariamente as pessoas que vivem lá. A insegurança e a incerteza sobre permanecer em seus lugares são como verdadeiros pesadelos para essas pessoas. Dona Angélica de Melo, 63, é moradora do assentamento e conta por qual razão gosta tanto de viver no Recanto Cajueiros II e o que a faz não querer deixar o lugar onde vive: “Aqui tem os animais que criamos, muito pé de caju e mangaba. Temos esse vento bom e essa paz que gostamos tanto. Com fé em Deus, não vamos sair daqui”.

Fotografia uma senhora senhora de cabelos negros presos, vestida de camisa branca e bermuda jeans caminhando entre canteiros enquanto olha para trás com árvores ao fundo, vegetação rasteira de horta sobe céu azul com nuvens brancas

Dona Angélica, moradora da comunidade Recanto dos Cajueiros II, entre as plantações de seu quintal produtivo | Foto: Camila de Almeida

Apesar de gostarem tanto da vivência no Recanto dos Cajueiros II, as condições de vida no lugar passam longe de serem dignas. As famílias locais precisam conviver com a presença de mosquitos, com a falta de água encanada, ausência de saneamento básico e, mesmo estando situada ao lado da maior geradora de energia movida a gás natural da América Latina, a comunidade não dispõe de acesso à energia elétrica. Ainda assim, as pessoas resistem em permanecer no lugar com a esperança de que, um dia, todos esses direitos básicos lhe sejam garantidos.

As respostas para essa resistência são ameaças e incertezas. “Moramos há muitos anos num barraquinho. No fim do ano passado, consegui levantar minha casinha com muito sacrifício. Mas com medo porque dizem que todo mundo vai sair daqui. Aí o coração dispara. A gente perde a noite, não dorme bem e vive assim numa incerteza”, destaca Paula Santana, moradora da comunidade, que está à frente dessas lutas e, com muito carinho, fala dos frutos que o lugar lhe proporciona: “os meus coqueirinhos estão lá botando fruto. A coisa mais linda! Como vou perder e abandonar meu pé de limão, meu pé de acerola, meus pés de mangaba e meus pés de caju? Não tem coisa melhor do que a gente estar aqui e ter o privilégio de viver neste ar puro, onde plantamos nossas frutas e hortaliças sem química nenhuma, mas querem nos tirar daqui e nos levarem para morar numa cidade”.

Barraco construído com pedaços de madeira na cor branca sob céu azul com nuvens brancas

Na comunidade Recanto dos Cajueiros II, aos poucos, com muito sacrifício e suor, os assentados construíram seus barracos e casinhas, em busca de sobrevivência | Foto: Camila de Almeida

Questionado pela falta de acesso aos serviços básicos na comunidade, o titular da Secretaria Municipal de Meio Ambiente de Barra dos Coqueiros, Edson Silva, explica que existe uma ação judicial que envolve a comunidade, considerada uma ocupação irregular e, enquanto essa situação de litígio não for solucionada, o Recanto dos Cajueiros II não pode usufruir dos serviços públicos, como o acesso a água, luz e energia.

A comunidade Recanto dos Cajueiros II conta com a assessoria jurídica da advogada Robéria Silva e a profissional não vislumbra nenhuma ação do poder público para assegurar a permanência da comunidade e promover compensação ou mitigação de prejuízos causados às famílias que sofrem os impactos na pesca após a chegada do navio Golar Nanook. Ressalta, ainda, a dificuldade em advogar em favor da permanência da comunidade Recanto dos Cajueiros II, já que está inserida nas imediações do recém-criado Parque Estadual do Marituba, o que dificulta a ação em favor do assentamento.

O secretário de Meio Ambiente da Barra dos Coqueiros considera que o maior impacto causado pela termelétrica foi o desmatamento na área onde passa a linha de transmissão. Além disso, ele considera que as ações de compensação ambiental fomentadas pela usina deveriam ter sido aplicadas localmente, o que segundo ele não ocorreu. “Se o impacto é local, ele deve ser mitigado localmente, mas os 12 milhões de reais disponibilizados pela Celse foram aplicados em outros lugares e ecossistemas, incluindo áreas de Caatinga. Esse dinheiro poderia ter sido investido aqui, inclusive para desassorear rios importantes da região, que facilitariam a economia, a pesca e o turismo”, argumenta.

Fotografia aérea de grande ponte cruzando um rio que se encontra com o mar, no canto direito da imagem. Na margem direita há vegetação verde e áreas alagadas e na esquerda há construções e casas. Ao fundo, céu azul com nuvens brancas

Ponte sobre o Rio Sergipe, que liga Aracaju a Barra dos Coqueiros | Foto: Camila de Almeida

O outro lado

Em resposta aos questionamentos da Eco Nordeste, a empresa Celse, que gere a Termelétrica Porto Sergipe I, esclareceu que a térmica funciona na modalidade de disponibilidade, ou seja, ela só gera energia quando solicitada pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), que, por sua vez, só aciona usinas quando antevê a possibilidade de falta de energia por carência de chuvas ou excesso de consumo. A empresa declarou que, no dia 29 de julho de 2022, completou seis meses desde que foi acionada pela última vez.

A empresa também informou que, além da supressão da vegetação nas áreas de instalação do projeto que está sendo mitigada via um grande trabalho de replantio em áreas próximas à usina, não vislumbram impactos socioambientais negativos relevantes causados pela implantação do projeto.

Em relação às comunidades vizinhas, a Celse considera que, fora os dissabores temporários trazidos por qualquer obra, no cômputo geral, o saldo é positivo: “Um grande exemplo dessa transformação positiva que trouxemos à região foram as residências dignas, com documentação de posse e propriedade que ofertamos às dezenas de famílias que viviam de maneira irregular em um terreno público em frente à usina”.

Além disso, de acordo com a empresa, a migração dessa população da área que ocupava irregularmente colaborou para o sucesso da criação do Parque Estadual Marituba, que irá contribuir para a preservação do ecossistema da região.

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