Tecnologia das árvores: micro parques impactam a vida de fortalezenses

Duas praças com área verde contribuíram para melhoria do clima, segurança e sentimento de pertencimento de moradores da Barra do Ceará e da Cidade dos Funcionários

Mão de uma criança negra toca o tronco de uma árvore de espécie indefinida.

Foco dos micro parques é no desenvolvimento de crianças. Por isso, os equipamentos são construídos nas proximidades de escolas de educação infantil | Foto: Alice Sales

Texto: Rose Serafim
Fotos: Alice Sales
Edição: Maristela Crispim

Fortaleza (CE). Uma área verde, com brinquedos para crianças, espaço para cães e bancos de praça. Parece a descrição de um cenário comum à área urbana de quase qualquer cidade, mas não é bem assim. A escritora Venetia Alves imaginou um espaço como esse na frente de casa. Ela vive no bairro Barra do Ceará, de frente para uma área com vegetação onde passa um trecho do Riacho da Levada, ou Riacho Correntes, como é conhecido oficialmente o braço d’água que segue para o Rio Ceará.

O desejo de infância de Venetia se tornou realidade no dia 12 de outubro de 2021, quando, após longos anos e muitos pedidos dos moradores, o matagal foi transformado no Micro Parque Seu Zequinha.

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“Quem cresceu aqui, os adultos, ficaram mais empolgados do que mesmo as crianças, porque a gente cresceu com isso no imaginário. Pois era só um buraco, cheio de mato, não tinha nada. Às vezes, quando era criança, a gente se empolgava para brincar nos carrapichos, e vivia sonhando, sabe? ‘um dia vão fazer uma praça. Vai ficar muito lindo’. A gente vivia sonhando com isso”, conta a moradora de uma das casas da Rua 7, que fica bem de frente para o novo parque.

Insegurança era a marca

Uma área de descampado aparece com vegetação e algumas árvores no entorno. Ao fundo, distante, um prédio de aproximadamente sete andares, nas cores rosa pastel e branco. O dia está ensolarado, com poucas nuvens no céu.

Antes usado para depósito de lixo e atos criminosos, o Micro Parque Seu Zequinha cumpre o papel de melhorar o clima e a convivência dos moradores mais próximos | Foto: Alice Sales

O desejo dos vizinhos não era só por um local mais bonito e equipado para brincadeiras. Era também por segurança. O terreno amplo com córrego e iluminado chamava a atenção da imprensa e das autoridades, não pelos benefícios, mas pelas ocorrências criminais registradas.

“Aqui, antigamente, era só um monturo, só coisa feia. Muito assalto, jogavam corpos aqui dentro”, lembra a cuidadora de idosos Liduína Carlos, 56, moradora da rua lateral ao parque. “Logo quando eu cheguei, jogaram dois corpos aqui dentro. Depois, outro e uma cabeça humana. Além de outras coisas, como acidentes. O pessoal caía aqui de bicicleta, e assaltos ocorriam também”, lista.

Numa busca rápida pelos jornais locais é possível localizar alguns dos registros mencionados. Uma matéria do jornal Diário do Nordeste, de março de 2013, fala sobre dois corpos encontrados dentro de um riacho, na Barra do Ceará. Segundo as informações do jornal, as vítimas tinham sido assassinadas, a tiro e os cadáveres ocultados.

Já o jornal O Povo noticiou, em dezembro de 2020, que um corpo decapitado do sexo masculino foi encontrado na região junto a um carrinho de reciclagem. A reportagem buscou a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Estado do Ceará (SSPDS-CE) para confirmar ou não os registros, mas ainda não obteve resposta sobre a solicitação.

A questão da segurança pública ainda foi totalmente sanada e Liduína reclama da falta de policiamento no parque: “está só faltando segurança somente”.

Foi também por questões de segurança e de limpeza que um terreno localizado entre a Rua José Alves Cavalcante e a Avenida José Leon, no bairro Cidade dos Funcionários, foi transformado em micro parque.

Quem passa pelo local durante a semana, por volta das 16 horas, encontra o vigilante Cosmo Mendes, 59, aguando as plantas do lugar. “Era um terreno abandonado. Só tinha restos de coisas velhas que jogavam aqui dentro; pessoal que fazia barraco para dormir, os usuários de drogas usavam também. Era desse jeito”, detalha o homem que trabalha e vive na região há quatro anos.

Residente no local há 26 anos, a advogada Geórgia Carioca conta que o terreno já abrigou um restaurante. Depois, ficou com a construção abandonada e uma parte do terreno vazio por muitos anos. “Era comum a Polícia fazer busca de criminosos na construção, depois começaram a jogar lixo no lugar”, lembra.

“Você saia de casa e estava na frente de um lixão”, acrescenta. Um abaixo-assinado foi feito por moradores pedindo intervenção no espaço, mas levou anos até que algo fosse realmente concretizado. “Antes da praça, houve uma outra intervenção que tirou o lixo e pintou o muro antigo”, explica. Os moradores, na época, já se reuniam para tratar sobre o assunto que afetava a todos.

Assim, a instalação da praça com a pequena área verde, onde há plantas ornamentais, ervas e brinquedos, é considerada uma grande conquista entre os vizinhos que continuam se reunindo para cuidar da limpeza e outras necessidades do espaço. “Foi muito importante na pandemia, principalmente para os idosos”, pontua. “Hoje a gente sabe o nome do cachorro de uma pessoa que mora a cinco quarteirões daqui”, celebra Georgia.

Plantas de pequeno e médio porte estão distribuídas em área de terra batida de uma praça. Ao fundo, o telhado de uma casa.

Além de plantas ornamentais, parques podem ser utilizados para plantio de ervas medicinais, hortas, e o que mais os moradores decidirem em conjunto | Foto: Alice Sales

Entregue em novembro de 2020, o Micro Parque José Leon, como foi batizado, é o primeiro projeto piloto de uma série que pretende entregar outros 30 na cidade de Fortaleza. O Micro Parque Seu Zequinha é o segundo. Os demais virão no decorrer dos próximos 20 meses, a partir de termo contratual assinado entre a Secretaria Municipal do Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma) e a empresa Athos Construções LTDA.

O projeto, que tem valor global de R$ 11.905.162,84 (onze milhões novecentos e cinco mil cento e sessenta e dois reais e oitenta e quatro centavos) – recursos do orçamento da Seuma -, faz parte do Programa Fortaleza Cidade Sustentável. Eles são divididos entre nove secretarias regionais (das 12 existentes) em áreas remanescentes de loteamentos, de doação, áreas verdes que nunca receberam nenhum tipo de urbanização, indica a coordenadora do Desenvolvimento Urbano (Courb) da Seuma, Camila Girão.

Foco nas crianças

Um menino de cabelo castanho claro e pele branca circula em uma bicicleta infantil ao lado de um escorregador de madeira em um parque. Ele veste camisa azul escuro de mangas compridas e short azul claro estampado. Ao fundo, próximo à criança, há ainda uma gangorra e uma casinha com escorregador de madeira.

Apesar dos benefícios, moradores que usam o Micro Parque José Leon reclamam da falta de manutenção dos brinquedos e equipamentos | Foto: Alice Sales

De acordo com Girão, um dos critérios para implementação dos parques é a proximidade com escolas de Educação Infantil. A ideia é favorecer o desenvolvimento das crianças, o entrosamento com a família e entre os vizinhos de uma mesma região. A população impactada é calculada a partir de um “raio de caminhabilidade” de até 500 metros, ou meio quilômetro.

“Nem todos os alunos moram tão perto, mas eles vão ser diretamente impactados porque estudam na escola. Pode ser que tenha gente que vá frequentar os micro parques, mas que não more nesse raio de alcance ainda mais porque os equipamentos estão sendo estabelecidos na cidade em rede. Faz parte de uma rede de micro parques que a gente quer implantar ao longo do tempo”, explica a coordenadora.

A tecnologia das árvores

Um passarinho de plumagem amarela e cinza está pousado em um de quatro galhos finos que apontam para um céu azul sem nuvens.

“A mais profunda tecnologia que existe está na própria natureza”, defende a pesquisadora Magda Maya, autora do livro Sustentabilidade 4.0. | Foto: Alice Sales

Os micro parques entregues fazem parte da lista de projetos do Laboratório de Inovação de Fortaleza (Labifor), lançado oficialmente em outubro de 2021 pelo prefeito José Sarto (PDT).

O LabiFor faz parte da Fundação de Ciência, Tecnologia e Inovação da Prefeitura de Fortaleza (Citinova), e é responsável pelo desenvolvimento de soluções inovadoras para as principais questões da cidade, que consideram os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU). Tanto o José Leon como o Seu Zequinha foram entregues pela Citinova, explica Camila Girão.

No lançamento do Labifor, o coordenador do Laboratório e vice-presidente da Citinova, Victor Macêdo, explicou que o Laboratório trabalha no desenvolvimento de projetos-piloto inspirados na metodologia de Design Thinking e em parceria com secretarias finalísticas da Prefeitura de Fortaleza. A proposta, segundo ele, é pensar inovação “não só como tecnologia, mas num sentido mais amplo, como política pública”, principalmente durante a pandemia, indicou.

Camila Girão explica que os micro parques entram numa categoria de tecnologia social: “Uma área completamente abandonada, com entulho, lixo, apropriação inadequada  simplesmente transformada em um ponto de convergência no bairro, onde as pessoas se reúnem e convivem. É um projeto social que tem várias ramificações urbanísticas, ambientais”, complementa.

Doutora em Desenvolvimento e Meio Ambiente, a escritora e professora universitária Magda Maya fala sobre esse entendimento do parque também como tecnologia. Segundo a autora do livro “Sustentabilidade 4.0”, apesar de a inovação tecnológica ser comumente associada a mecanismos artificais e informacionais, “a mais profunda tecnologia que existe está na própria natureza”.

“A falta de percepção desse fato nos trouxe todos os problemas ambientais que temos hoje e a tendência é que cada vez mais as cidades busquem regenerar e renaturalizar os espaços, com vistas a tornar a cidade mais sustentável, adaptável às mudanças climáticas e resiliente. Para ilustrar, uma breve observação: cientistas em todo o mundo têm buscando criar inovações “tecnológicas” para reduzir/neutralizar/zerar emissões de carbono, mas até o momento ninguém foi capaz de criar algo tão eficiente e tecnológico quanto plantar árvores para esta finalidade”, destaca.

Convivência e cuidado

Mulher jovem, de pele negra e cabelos castanhos presos em coque, veste uma camisa preta com branco, do Ceará Sporting Club, calça preta e chinelo. Ela está de pé e sorri enquanto segura a coleira de cadela husky de porte médio. As duas aparecem numa área verde de um parque.

A estudante de Geografia Maria Eduarda passou a conhecer os vizinhos depois da construção do Micro Parque Seu Zequinha. Ela usa o equipamento principalmente para levar a cadela Hanna para passear. | Foto: Alice Sales

Há 10 anos a estudante de Geografia Maria Eduarda dos Santos, 20, mora em um condomínio do outro lado da Avenida Francisco Sá, bem próximo ao atual parque Seu Zequinha. Só agora ela passou a conhecer os vizinhos, após aderir ao hábito de passear com sua cadela, uma husky nomeada de Hanna, no cachorródromo do parque Seu Zequinha.

“Tem um senhor que vem fazendo caminhada aqui e eu fiz amizade com ele. Eu comecei a conhecer mesmo minha vizinhança, sabe? Meus vizinhos de rua. Conheço a maioria das pessoas agora. Eles também me conhecem. Melhorou muito o laço das pessoas”, afirma.

A dona Liduina e a Venetia, mencionadas no início desta reportagem, relatam terem participado de pelo menos quatro encontros com representantes da Prefeitura quando os moradores puderam indicar o que eles queriam para o espaço. Depois do equipamento pronto, algumas pessoas assumiram funções no cuidado diário, como o vizinho conhecido como Crispim, que cuida das plantas, ou a Maria Cleane, que cuida de uma espécie de quiosque com livros para crianças.

É Bonito, mas falta manutenção

Homem negro de de meia idade veste calça jeans e blusa verde com mangas cinza. Segura uma mangueira com a qual agoa plantas próximas a ele em um parque.

Além de vigia da rua, Seu Cosme faz às vezes de jardineiro do Micro Parque José Leon. Ele agoa as plantas e recolhe o lixo das lixeiras todos os dias, antes do fim do expediente diurno. | Foto: Alice Sales

A advogada Geórgia Carioca, 49, que reside em frente ao Micro Parque José Leon, tomou a dianteira no processo de participação para a instalação do equipamento público. Ela cedeu a casa para as reuniões entre Prefeitura e moradores e é a responsável por cuidar do quiosque de leitura e organizar as taxas e produtos de limpeza (sacolas) com os vizinhos.

Usuária do espaço, acredita que o projeto tem grande potencial, pois vê de perto todos os benefícios de poder respirar um ar mais limpo e interagir com outras pessoas na frente de casa.

Todavia, reclama da falta de manutenção do espaço por parte do poder público. A moradora mostra um balanço que quebrou, aparelhos para atividade física que já estão enferrujando, mobiliário com madeira natural que precisou ser retirado depois de quebrar por ameaçar a segurança de crianças pequenas.

Pequenas manutenções diárias têm sido realizadas pela comunidade, garante Geórgia. Para ela, falta a Prefeitura fazer visitas ao local e ouvir os moradores para saber sobre as necessidades que vêm surgindo ao longo do tempo.

“Como foi um projeto piloto e eu tenho conhecimento que estão instalando mais 30 praças, acho que, do ponto de vista gerencial e do interesse público, seria muito importante que fossem aplicadas aqui pesquisas, audiências públicas”, sugere.

“A palavra é processo participativo: novas reuniões, até por meio remoto, onde eles (Prefeitura) possam entender o que a comunidade sente falta. E realmente existe uma insatisfação da ausência do poder público aqui. Falta a presença da Prefeitura. No mínimo de seis em seis meses, vir aqui, não para ver o parque quando não tem ninguém, porque o parque não fala”, argumenta.

Camila Girão, representante da Seuma, explica que o projeto de construção dos novos 30 equipamentos prevê um acompanhamento dos locais nos cinco meses depois da entrega, além da construção de um manual de manutenção a ser seguido pela comunidade e criação de um conselho que possa continuar esse trabalho. No entanto, essa etapa não incluiu os dois projetos pilotos que estavam fora da nova licitação.

Procurada, a Secretaria Municipal da Gestão Regional (Seger) informou que a manutenção e conservação dos micro parques Seu Zequinha, na Barra do Ceará, e José Leon, na Cidade dos Funcionários, “é realizada com regularidade ou a partir de demandas da população”. Depois do questionamento da reportagem, a Pasta indicou que uma visita foi feita aos locais na última quarta-feira (14), “para avaliar as condições dos locais e iniciar os serviços necessários para atender a demanda dos frequentadores”.

Moradores também reclamaram à Eco Nordeste sobre a ausência de um caminhão-pipa que costumava levar água para regar as plantas no Seu Zequinha. A Seger informou que o serviço foi interrompido temporariamente por alguns dias, mas prometeu – sem informar uma data – que “logo a irrigação do espaço voltará a ser feita regularmente até que as mudas se estabeleçam definitivamente”.

“A população pode solicitar serviços de reparos em equipamentos públicos por meio da Central 156, por telefone, ou, presencialmente, nas sedes das regionais do seu bairro”, destacou a Secretaria.

Projeto premiado

Três adolescentes conversam em um banco pintado de cinza com a frase em preto “AME OS ANIMAIS”. Um rapaz e uma moça vestidos com camisa branca e sentados de costas, e uma outra jovem negra, com macaquinho verde e cabelo em coque de pé, de frente para os amigos. O céu está nublado e ao fundo, à esquerda há um prédio baixo rosa e branco.

Micro Parques permitem a interação entre moradores em área arborizada fora de casa | Foto: Alice Sales

No dia 14 de outubro deste ano, a Prefeitura de Fortaleza venceu o prêmio internacional AIPH World Green City Awards 2022, com evento realizado na Província de Jeju (Coreia do Sul), com o Projeto Micro Parques Urbanos. A premiação é realizada pela International Association of Horticultural Producers (AIPH), organização internacional especializada em cultura verde em todo o mundo, para a promoção de ambientes de sintonia entre as plantas e as pessoas. Geórgia não sabia da premiação, mas diz que são frequentes as visitas de pessoas que vêm conhecer o projeto.

Fora de casa

Um menino negro, que usa óculos e uma camisa branca com mangas curtas na cor laranja, está de pé e segura no colo uma menina também negra, pequena, que usa chupeta, tem o cabelo cacheado preso, e veste uma bermuda e blusa nas cores amarelo e laranja. Ela calça uma sandália aberta. Os dois estão numa área aberta com vegetação ao fundo.

João Davi, 12, costumava ficar muito tempo em casa depois da escola. Agora, passeia com a irmã, Maria Mariana, 2, no parque próximo de casa | Foto: Alice Sales

Neto da dona Liduina, o João Davi, 13, costuma ir ao Micro Parque Seu Zequinha com os amigos e a irmã, Maria Mariana, 2. “Aqui é o canto que a gente mais fica”. Antes da estruturação do espaço, ele ficava dentro de casa. “Eu ficava trancado, praticamente, e agora eu estou saindo mais, brincando mais. É bom”, diz.

O motorista Valcicler Moreira, 43, estava sentado num banco do calçadão do Seu Zequinha quando a reportagem da Eco Nordeste passou pelo lugar. O acompanhavam a esposa, Valdicélia, 37, costureira; e os dois filhos: Davi, 10; e Luna, 5. Por causa do trabalho, eles contam que não chegaram a fazer parte do processo de participação comunitária para instalação do parque, mas agora gostam de chegar do trabalho e ir para o lugar com os filhos, pelo menos umas três vezes por semana, além dos sábados e domingos.

“A gente só vivia dentro de casa, não tinha outra coisa”, diz Valdicélia. “A gente vai de casa para o trabalho e depois que a gente vem aqui. Passar o tempo, deixar os meninos brincarem um pouco”, acrescentou, em poucas palavras. Questionados se apreciam o lugar, os dois responderam prontamente: “muito!”

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