Risco de choque em dunas do território quilombola do Cumbe (Aracati – CE) | Foto: Elena Meirelles / Instituto TerramarLançado nacionalmente em janeiro, um relatório com mais de 100 recomendações para reduzir os impactos ambientais e sociais dos parques eólicos está sendo entregue aos estados do Nordeste por representantes de comunidades afetadas. O grupo tem agenda em Fortaleza (CE) até 7 de março para distribuição de cópias do documento, inédito no Brasil, a órgãos do governo estadual, instituições de pesquisa e integrantes dos poderes legislativo e judiciário.
O relatório, intitulado Salvaguardas Socioambientais para Energia Renovável, é resultado de uma construção coletiva de medidas de mitigação propostas por mais de 30 entidades – a maioria de povos e de populações tradicionais do Nordeste. “A expansão de renováveis tem intensificado conflitos territoriais, gerado ameaças à biodiversidade, agravado injustiças e danos socioambientais aos povos do campo, da floresta, das águas e aos seus ecossistemas”, traz a introdução.
A Praia de Icaraí de Amontada, no Litoral Oeste cearense, é uma das áreas impactadas pela implantação dos aerogeradores, que alteraram a paisagem e a cultura local. “Tem uma Icaraí antes e outra depois das eólicas, que deixaram a praia irreconhecível”, resume Alanna Carneiro, do Eco Maretório, instituição dedicada à promoção de justiça socioambiental na região e um dos participantes do processo de elaboração do relatório. “Agora existem latifúndios à beira-mar, que passou a ter restrição de uso comum, com a presença de motoqueiros que impedem o acesso dos pescadores”, acrescenta.
Outro impacto apontado é a destruição das dunas, onde foram implantadas as turbinas eólicas, e também das lagoas que abrigavam aves, répteis e anfíbios. “Não houve consulta livre, prévia e informada, conforme assegura a Lei, e as audiências públicas ocorreram em Fortaleza ou na sede do município, que fica a 60 quilômetros, dificultando a participação da comunidade”, relata Alanna.
A bióloga cita ainda a inexistência de um código de conduta e ética dos operários que trabalharam na implantação do parque eólico. “Houve assédio e violência contra as mulheres e meninas que se encontravam em situação de vulnerabilidade. E hoje existe uma geração de filhos desses homens, mas que não têm o nome do pai na certidão de nascimento, porque ele foi embora após a obra”, afirma Alanna.
A comunidade não tem a quem responsabilizar por esse e outros impactos socioambientais porque, segundo ela, os contratos se renovam automaticamente e as empresas mudam de dono sem que os moradores de Icaraí de Amontada fiquem sabendo. “E agora estamos diante de outra ameaça, desta vez também à nossa soberania alimentar, que são as usinas eólicas em alto-mar”, adianta Alanna. De acordo com ela, a legislação veta a aproximação de embarcações em um raio de 500 metros da plataforma offshore, o que vai dificultar ainda mais a pesca artesanal.
“Se não houver alteração do modelo, os conflitos e o racismo ambiental se complexificam. Entendemos e acreditamos que existem empresas e financiadores de boa-fé. Para aquelas que não são, o Estado precisa cumprir seu papel, assim como ser corresponsabilizado em não respeitar ou não fazer cumprir o que consta na Constituição Federal e nos acordos que o Brasil é signatário, como a Convenção 169 da OIT, por exemplo”, afirma Andréa Machado Camurça, do Instituto Terramar, uma das entidades cearenses participantes da elaboração do documento.
Líder quilombola em Aracati, no Litoral Leste do Ceará, João do Cumbe também colaborou com a elaboração das salvaguardas e afirma que a comunidade não é contra a transição energética, nem os parques eólicos ou fotovoltaicos, mas sim à maneira como é feita a implantação dos empreendimentos. “A forma como ocorre não tem nada de limpa. É suja, impacta. É possível isso mudar, mas desde que seja pensado, construído também por nós”.
Entre as salvaguardas propostas, o grupo sugere um conteúdo mínimo contratual para arrendamento, uma distância mínima de 2 quilômetros da torre eólica para edificações (hoje esse limite não existe) e a priorização de áreas degradadas para instalação de centrais de energia, a fim de evitar mais desmatamento. E ainda a realização de estudos da poluição sonora, incluindo os infrassons emitidos pelas torres eólicas. Os infrassons, inaudíveis aos seres humanos, são apontados como causadores de distúrbios do sono. Também solicita estudos dos efeitos da sombra dos aerogeradores, conhecido como efeito estroboscópico, igualmente apontado como prejudicial à saúde.
Para o Plano Nordeste Potência, ao adotar as medidas mitigatórias, o Ceará vai evitar que novos empreendimentos causem os problemas à saúde, ao meio ambiente e aos direitos humanos detectados anteriormente. “O Ceará desponta como produtor nacional de hidrogênio verde, mas, para ter o selo de verde o hidrogênio precisa que a energia utilizada na sua geração venha de fontes renováveis. Isso reforça a importância das salvaguardas no cenário de expansão dos parques eólicos e solares”, diz a coordenadora de articulação do plano, Fabiana Couto.
Durante o processo de elaboração do documento, representantes das comunidades participaram de três encontros presenciais, realizados em Salvador (BA) e no Recife (PE), promovidos pelo Plano Nordeste Potência, iniciativa resultante de uma coalizão de ONGs empenhadas em fazer com que transição energética, além de levar em consideração o meio ambiente, ocorra de forma socialmente justa e inclusiva.
O Ceará é o terceiro Estado do Nordeste a receber o relatório Salvaguardas Socioambientais para Energia Renovável. O primeiro foi Alagoas, em 19 de fevereiro, às Secretarias do Meio Ambiente e dos Recursos Hídricos e de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, além do Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA) e da representação local do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA).
O segundo foi Pernambuco, por meio da Secretaria de Meio Ambiente, de Sustentabilidade e de Fernando de Noronha e da Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH), em 27 de fevereiro. O próximo será a Bahia, no dia 7 de março. Em Alagoas ainda não tem parques de energia eólica, por isso as salvaguardas podem ajudar a evitar problemas que já apareceram em outros Estados.
Em Pernambuco, os impactos também são observados. “Os aerogeradores fazem um barulho constante, que abala a saúde mental das pessoas que moram perto. Na aldeia Baixa do Lero (Tacaratu – PE) os moradores escutam dentro de casa”, diz Alexandre Santos, do povo Pankararu e coordenador de Comunicação da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), entidade que participou da elaboração do documento de salvaguardas.
Outro problema apontado pelo indígena é o desaparecimento de plantas utilizadas em rituais sagrados. “Temos encontrado muita dificuldade em achar cansanção (uma urtiga), umbuzeiro, croá. O espaço onde tinha bastante cansanção é onde estão a usina solar e a eólica, mas com o desmatamento da Caatinga não tem mais”, afirma Alexandre Santos. “Nossa espiritualidade vem da natureza. Os impactos ambientais afetam nosso modo de vida, nossa cultura.”
Com as centrais eólicas e solares, vêm as linhas de transmissão de eletricidade. O sociólogo Luís Soares, do conselho gestor da Associação de Educação, Arte, Cultura e Agroecologia Sítio Ágatha, no município pernambucano de Tracunhaém, cita os transtornos causados pelas torres de transmissão instaladas no local: elas exerceram um profundo impacto sobre a fauna, a flora e o bem-estar dos agricultores familiares dos assentamentos rurais de reforma agrária Chico Mendes II, Ismael Felipe e Nova Canaã, na zona rural de Tracunhaém.
“A justificativa é que a energia eólica é uma energia limpa; no entanto, a realidade observada é de devastação ambiental, apropriação de terras e ataque aos direitos humanos nesse território”, afirma. Para Luís Soares, as salvaguardas podem desempenhar um papel crucial na promoção de uma abordagem mais sustentável e justa para a implantação de projetos de energia eólica e solar, garantindo a proteção dos direitos das comunidades locais e do meio ambiente, bem como promovendo a inclusão e equidade de raça e gênero.
A Secretaria de Meio Ambiente, Sustentabilidade e de Fernando de Noronha de Pernambuco (Semas-PE) reconheceu, em ação anunciada em novembro (Decreto Nº 55.863), a “necessidade de uma visão sistêmica e integrada da sociedade, em que o estabelecimento de padrões de produção e consumo tenha também a capacidade de reduzir desigualdades e vulnerabilidades, e de regenerar a natureza”.
Por meio desse Decreto Estadual de 28/11/23, a Semas-PE instituiu um grupo de trabalho para subsidiar a elaboração de normas para o licenciamento ambiental de empreendimentos de geração de energia elétrica a partir de fontes eólica e solar.
Para a secretária executiva de Sustentabilidade da Semas-PE, Karla Godoy, o documento de salvaguardas é de extrema importância para Pernambuco, já que o Estado está em processo de criação da legislação do licenciamento de empreendimentos de energia renovável.
“É super importante ter um documento desta magnitude em mãos para que o meio ambiente, tanto a fauna quanto a flora, também a sociedade civil não sofram com a geração das energias renováveis que são tão importantes e necessárias. Esse documento também pode auxiliar a gente na criação da legislação do licenciamento evitando problemas futuros no meio ambiente e na sociedade civil”, ressalta.
Para saber mais sobre salvaguardas
Objetivo: subsidiar o poder público, as empresas, os agentes financiadores e demais responsáveis pela implementação e operação dos empreendimentos de energia renovável para que adotem medidas preventivas para evitar danos e impactos sociais e ambientais em todas as instâncias da geração e transmissão.
O que são: medidas adotadas preventivamente para potencializar os impactos sociais e ambientais positivos e reduzir os impactos negativos.
Do que tratam:
- Contratos de cessão de uso da terra e servidão
- Outorgas de geração e transmissão de energia
- Licenciamento ambiental e outras políticas públicas complementares
- Linhas de transmissão
- Questões de gênero e suas interseccionalidades
Quem se beneficia: prioritariamente os agricultores familiares, assentados e povos e comunidades tradicionais (PCTs): povos do campo, floresta e das águas, indígenas, quilombolas, extrativistas, camponês, caatingueiros, sertanejos, de fundo de pastos, ciganos, pescadores, costeiros e demais povos que no território encontram as condições para a produção de sua existência, cultura e modo de vida.
A quem se destinam:
- Governo federal: Secretaria Geral da Presidência; Ministério de Minas e Energia e Aneel; Ministério de Meio Ambiente e Mudança do Clima, Conama, Ibama e ICMBio; Ministério do Desenvolvimento Agrário e Incra; Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania; Ministério das Mulheres; Ministério dos Povos Indígenas e Funai; Iphan; Ministério da Fazenda; e Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio
- Governos estaduais e seus órgãos ambientais e licenciadores; e municípios
- Empreendedores e agentes financiadores (como bancos e seguradoras)
- Sindicatos dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais e outras representações dos PCTs
- Membros do Judiciário e academia