Educação antirracista na infância descontrói racismo na vida adulta

A infância é uma época de brincadeira e muito aprendizado, como escrevemos aqui em outra reportagem sobre o tema (Que infância você pode oferecer?). Desta vez, queremos convidar você a refletir sobre outro tema indispensável à discussão: a educação étnico-racial na infância.

Por Yara Peres
Colaboradora

Salvador (BA) / São Luís (MA). Você já pensou sobre como o tema do racismo é inserido na educação do seu filho? Caso a resposta seja não, já refletiu como isso foi discutido quando você era criança? De acordo com a psicóloga e psicoterapeuta infanto-juvenil Marissa Lima, uma educação antirracista deve ser inserida logo nos primeiros anos de vida da criança no convívio familiar e potencializado na idade escolar. “O racismo pode ser construído e desenvolvido na infância, a partir das experiências que as crianças vão tendo no convívio familiar. Como ela é educada e se escuta desde cedo termos pejorativos à questão racial”, explica.

Ainda segundo a psicóloga, a linguagem da criança é o lúdico e por meio dele é possível a elaboração de várias formas criativas de levar uma educação inclusiva racial, tanto para o contexto familiar, primeiro contato social de uma criança, como também para o ambiente escolar.

“A representatividade é importante nos brinquedos para que elas consigam se ver nos desenhos, como também na televisão e entendam que podem estar naquele lugar. E foi pensando nesse momento lúdico que a empreendedora social e idealizadora da Amora Brinquedos Afirmativos, Geo Nunes, de Salvador (BA), encontrou uma oportunidade de levar representatividade às crianças. “A ideia surgiu a partir da ausência de bonecas negras no mercado. E se a gente amplia esse universo, percebe que não são só bonecas negras que não existem. São os brinquedos afirmativos, aqueles que reafirmam a identidade étnica da criança que brinca com eles”, afirma.

Para Geo, não existe algo que justifique esse déficit, senão o racismo: “Se a gente vai fazer esse recorte de raça, de bonecas negras, a gente percebe que, de acordo com o um estudo recente da ONG Avante, de Salvador, apenas 6% das bonecas que são produzidas no Brasil são negras. E somos cerca de 56% da população autodeclarada negra”.

Os brinquedos afirmativos auxiliam na construção de uma educação antirracista a fim de construir referências positivas a partir da infância. Daí a importância de trazer personagens negros para os brinquedos e desenhos, por exemplo. “A criança negra que brinca com uma boneca ou boneco negro, ou com um quebra-cabeça de personagens negros, se vê representada ali com assemelhados étnicos. A partir disso ela se reconhece como protagonista e consegue construir um universo lúdico onde ela se vê nos lugares. Porque o racismo no Brasil se constrói a partir dos não-lugares, onde a gente não se enxerga”, explica Geo, que oferece produtos para a primeira infância, período de 0 a 6 anos, quando a criança está construindo sua identidade.

Algo marcante na infância é o ato de criar, colar, pintar. Você imaginou como uma criança negra vai se representar num simples desenho para o Dia das Mães, por exemplo? Abra a caixa de lápis de colorir da sua criança e veja quais opções ela tem para pintar a cor de sua pele. Como você acredita que ela pode se encontrar naquela paleta de cores que, se quer, reconhecem a diversidade.

“Olha como é cruel dizer para uma criança que não tem um lápis com a cor de pele dela? Quer dizer que o negro não tem esse direito? Temos que desconstruir esse conceito errado que aprendemos na infância que o lápis cor da pele é rosa. Ou de que só existe uma cor de pele para representar o lápis cor de pele. Somos um povo plural, diverso e ainda que estivéssemos falando apenas da população negra, existem diversos tons de pele negros para representar a raça negra”, detalha Geo que, pensando nessa necessidade, também desenvolveu o Giz Amora Tons de Pele. O negócio social visa ser uma opção de material pedagógico a fim de criar um diálogo trabalhando uma educação antirracista de fato desde a Educação Infantil.

No Brasil vigoram duas leis com o objetivo de levar à grade curricular das instituições de ensino uma Educação Plural. São elas: a Lei Nº 10.639 e a Lei Nº 11.645, que estabelecem diretrizes para inclusão do estudo sobre a História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nas escolas públicas e privadas de Ensino Fundamental e Médio.

“Essas leis devem ser fortalecidas pelo corpo docente e todo o ambiente escolar e procurar utilizá-las nas suas práticas político-pedagógicas. O nosso desejo é que a Lei seja aplicada e que todas as escolas possam receber materiais lúdico-pedagógicos afrocentrados, porque o que se vê nas escolas são todos os materiais euro-centrados e precisamos ter diversidade nisso”, explica Geo que também realiza eventos gratuitos nos quais os brinquedos são distribuídos gratuitamente. A cada boneca Amora vendida um outro brinquedo afirmativo é doado para escolas públicas. Segundo a empreendedora, a iniciativa é um subsídio para a aplicação da Lei.

Crianças Quilombolas

Dados oficiais da Fundação Palmares certificam que, no Estado da Bahia, concentra-se o maior número de comunidades quilombolas do País, com 822 registros. O Estado do Maranhão ocupa o segundo lugar nesse mapeamento, com 816. Porém, ainda há um número maior a ser regularizado, de acordo com a pedagoga e secretária-adjunta da Secretaria de Estado Extraordinária da Igualdade Racial (Seir) do Maranhão, Maria do Socorro Guterres.

“Temos um número bem maior de comunidades identificadas, mas não regularizadas, ainda sem o reconhecimento do Estado. São mais de mil comunidades que têm sua identificação. Se auto definem, mas não têm ainda o documento de regularização pelo Estado brasileiro”, informa.

Com experiência na área da educação infantil e em movimentos sociais negro em São Luiz (MA), a pedagoga Maria do Socorro nos contou que a ausência de materiais étnico-pedagógicos é um dos entraves que dificultam a aplicação da Lei Nº 10.639.

“Já presenciei uma situação de racismo com crianças quilombolas durante a época que trabalhava no projeto de movimento social. Elas tinham de 6 a 8 anos. Todas as atividades eram oferecidas com materiais que reforçavam a cultura branca europeia.A atividade que era desenvolvida nesse dia era a de contação de histórias em clássicos na qual a professora só falava de príncipes e princesas brancas, que não tinha nada a ver com aquela comunidade onde todas as crianças, sem exceção, eram negras. Observei que em outras atividades elas desenhavam a si e suas famílias todas como se fossem brancas de cabelos loiros e compridos”, lamenta.

Apesar da situação, lamentavelmente, ser comum, a educadora reitera que há interesse por parte dos professores em exercer um trabalho antirracista, mas que em sua maioria não se sentem capacitados com instrumentos e materiais para o exercício que facilite a implantação de atividades.

“Tentei investigar porque aquilo ocorria, o que a professora fazia para tentar resolver aquela situação quando ocorria e ela me disse muito honestamente que não sabia o que fazer. Ela não tinha instrumentos necessários para trabalhar. Os únicos materiais que foram oferecidos a ela eram aqueles de histórias infantis clássicos, que iam desde Rapunzel até Branca de Neve, Bela Adormecida. O giz e o quadro era o material que ela tinha. Isso foi há 10 anos, mas a gente percebe que até hoje os professores não conseguem ainda trabalhar estratégias que possibilitem que as crianças se reconheçam de fato como negras e tenham orgulho disso”, revela.

Para a professora da comunidade quilombola Ramal do Quindiua (MA), Rosinaria Catanhede, que tem dois filhos, de 9 anos e 1 mês, a educação que ela aplica para as crianças na comunidade passa por uma orientação antirracista: “Educo para a disciplina e o respeito às pessoas valorizando a sua cultura a fim de que eles consigam se enxergar como sujeitos históricos e de direitos”.

A pedagoga Maria do Socorro explica que, embora muitos pais quilombolas não saibam como fazer, eles estão certos que querem uma educação antirracista para seus filhos, que têm o interesse e o direito de migrar da comunidade. “Eles querem uma educação que fortaleça essa história, essa cultura e possa possibilitar a essas crianças estarem fortalecidas para o enfretamento futuro do que é o racismo no Brasil. Eles vão sair das suas comunidades e precisam ir para outras escolas, universidades, para um contexto que muitas vezes tem sido violento quanto à realidade étnico-racial. O racismo no Brasil tem essa dimensão de extrema violência. Essas crianças precisam estar preparadas para esse enfrentamento”.

O racismo, de um modo geral, é muito doloroso e, na infância, ele é extremamente violento, tendo em vista a incapacidade de defesa da criança. E foi numa situação dessas, no ano passado, dentro do ambiente social familiar, que a professora Rosinaria se viu impotente diante da perplexidade de uma atitude racista contra seu filho, vinda de uma outra criança, com uma pele mais clara.

“Uma prima olhou para ele e falou que não gostava de gente da cor dele. Meu filho ficou constrangido, calado olhando para ela. Nessa hora meu mundo desabou. Meu marido e outras pessoas presentes reclamaram com a menina e eu fiquei calada diante daquela situação, de coração partido”, revela.

Comportamentos como o dessa menina muito representam a educação que os pais transmitem à criança. A psicóloga Marissa Lima reitera a importância de práticas antirracistas pelos pais. “As crianças são o futuro de um país. Mas elas só poderão ser um futuro melhor de uma sociedade se elas tiverem boas referências. Pais e mães que possam dar esse suporte com valores diferenciados dentro de uma cultura. Por isso a necessidade de adultos conhecerem sobre o tema”, explica.

Para Rosinaria, além de preparar as crianças para esse enfrentamento mostrando os valores e importância da sua etnia, a desconstrução do preconceito se dá quando as pessoas são educadas a respeitar as diferenças: “Precisam conhecer nossa história, nossas lutas e a nossa resistência”.

Maria do Socorro complementa que as diretrizes étnico raciais na escola precisam ser desenvolvidas cotidianamente, e não só trabalhadas pela ocasião das datas comemorativas de 13 de maio e 20 de novembro. “O 13 de maio ainda é trabalhado, infelizmente, numa perspectiva de uma salvadora da pátria, a Princesa Isabel, redentora dos negros. Não se trabalha por ocasião do 13 de maio toda a luta e resistência dos quilombolas, dos negros africanos escravizados que lutaram por sua liberdade e que a princesa Isabel assinou uma Lei porque foi pressionada para que assinasse. Porque não interessava mais à Inglaterra manter aquele sistema escravagista”.

Socorro reitera que há muito a ensinar, não apenas para os adultos mas, principalmente, para as as crianças e adolescentes sobre a cultura negra e a liderança e representação de Zumbi de Palmares. “Ainda precisamos avançar muito na educação antirracista, um caminho longo a ser desenvolvido a ser trabalhado, mas acreditamos que é possível porque temos professores e profissionais de educação dispostos a isso porque vivem uma realidade na sua comunidade e na sua escola de violência causada pelo preconceito e pelo racismo”.

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