Por Vanda Claudino Sales *
Existem montanhas no Nordeste! Essa definição, recente, foi apresentada pelo Sistema Brasileiro de Classificação do Relevo (SBCR). O SBCR, criado em 2019, representa uma proposta de sistematização para o relevo brasileiro, organizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), em conjunto com o Serviço Geológico do Brasil (CPRM) e a União da Geomorfologia Brasileira (UGB), com a participação de professores doutores de instituições de ensino superior.
O SBCR funciona por meio da atuação de grupos de trabalhos (GTs) atualmente compostos por 78 membros. Existem quatro GTs do primeiro táxon, que tratam, portanto, das maiores formas de relevo do País, que são os GTs Montanhas, Planaltos, Superfícies Rebaixadas e Tabuleiros. Existem ainda os GTs do segundo táxon, que tratam de formas menores e que são na atualidade os subsistemas Fluvial, Costeiro, Cárstico (que se dedica à análise das formas de dissolução) e Tecnogênico (que trata de formas produzidas pela sociedade humana).
A razão da criação do SBCR é o reconhecimento de que há no País um elevado número de trabalhos científicos cujos autores elaboram sua própria metodologia para mapeamento das formas de relevo. Para além disso, ocorre ainda divergência na conceituação e interpretação dessas formas – por exemplo, relevos semelhantes são apresentados com terminologias diferentes, enquanto relevos diferentes são apresentados com terminologias semelhantes. Isso dificulta e até impossibilita a comparação e a junção de mapas, bem como a existência de um banco nacional de informações de relevo de caráter colaborativo (CEN-SBCR, 2022).
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O SBCR definiu que o primeiro táxon estaria representado pelas grandes formas de relevo do território nacional. O substrato e as estruturas geológicas, bem como a cronologia, os processos denudacionais (de erosão) e os agradacionais (de deposição), além de materiais constituintes (litologia, sedimentos, solos) estarão contemplados nos demais táxons, que tratam de relevos menores. As montanhas se situam no primeiro táxon, e estão em curso de mapeamento.
A ideia clássica da não existência de montanhas no Brasil deriva de uma leitura geológica, que considera a ausência de montanhas ativas, os orógenos, os quais são resultantes de choque de placas tectônicas no período geológico atual. Isso inibiu considerar os vestígios de montanhas antigas, formadas em períodos geológicos anteriores, ou de relevos portentosos, como verdadeiras montanhas. Agora, vem o SBCR e diz: tem montanhas no Brasil!
O GT “Montanhas” do SBCR definiu que são montanhas todas as formas de relevo que apresentam amplitudes altimétricas superiores a 300 m, que tenham continuidade espacial, e que contenham encostas declivosas e topos preferencialmente aguçados ou em cristas. A amplitude altimétrica indica que qualquer segmento de terreno que tenha um relevo superior a 300 m de altura doravante será considerado montanha, isso se obedecer aos demais critérios. Dessa forma, um pico isolado, mesmo com altitude superior a 300 m, por exemplo, não caracterizaria uma montanha. Os relevos elevados de topo plano, como chapadas, também não entram na classificação de montanha (seriam planaltos). Nessa nova perspectiva, todas as regiões do Brasil, com exceção da Região Norte, são dotadas de montanhas.
No Nordeste, entram nessa nova classificação os grandes maciços cristalinos do Ceará, que são os maciços da Meruoca, Uruburetama/Irauçuba, Baturité, Pereiro, além da Serra das Matas e Serra do Machado; a Serra do Teixeira, na Paraíba; a Serra do Triunfo, em Pernambuco, e um conjunto de serras na Bahia (Serras das Cachoeiras, Ventania, Brejinho e Grande). além do segmento norte da Serra do Espinhaço. No total, essas feições formam onze relevos montanhosos. O Ceara é, então, o Estado mais montanhoso do Nordeste (Figura 2).
O Maciço da Meruoca (figura 3) representa um relevo de porte, com altitudes máximas superiores a 900 m, estabelecida sobre um stock granítico neoproterozoico formado durante a Orogênese Brasiliana, há cerca de 550 milhões de anos, a qual criou a Cadeia de Montanhas Brasiliana, hoje já arrasada (Claudino-Sales e Lira, 2007; Lima, 1999). Está delimitado por falhas, apresenta vertente secas e úmidas, vegetação que varia de mata seca a úmida, e conta com intensa ocupação urbana.
O Maciço de Uruburetama/Irauçuba também é sustentado por granitos de idade brasiliana (Neoproterozoico), em torno de 550 milhões de anos. A estrutura rochosa se apresenta extremamente fraturada e falhada, o que implica em maior dissecação das superfícies e ocorrência de relevo mais multifacetado, com picos e segmentos de superfícies rebaixadas no centro do maciço, além de setores com presença de inselbergs. Tem vegetação de mata seca e mais úmida, e é dotado de elevada beleza cênica (Claudino-Sales, 2016; figura 4).
O Maciço de Baturité acha-se situado ao sul de Fortaleza. O mapeamento preliminar do SBCR considera também como montanhas os esporões terminais desse maciço, formado pelas serras do Juá e Bico Fino, situadas no município de Caucaia (ver figura 1). O Maciço de Baturité é sustentado por granitos brasilianos, mas também por rochas metamórficas resistentes, como quartzitos. Com altitudes máximas superiores a 1000 m, conta com o terceiro pico mais alto do Ceará, o Pico Alto, com 1.115 m de altitude. Apresenta vegetação de mata úmida, com vertentes declivosas e relevos variados (vales alçados, mares-de-morro, picos, inselbergs, superfícies aplainadas). É um dos setores mais expressivos para o turismo e produção de hortifrutigranjeiros no Nordeste Setentrional (Bastos et al., 2017; Bétard et al, 2007; figura 5)
Outros relevos compõem as montanhas do Ceará: trata-se da Serra do Machado e da Serra das Matas. Essas montanhas representam feições pouco exploradas pelas pesquisas científicas no Estado do Ceará e necessitam ainda de mapeamentos específicos e levantamentos geoambientais de detalhe. A Serra das Matas comporta o primeiro e o segundo pico mais elevados do Ceará (o Pico da Serra Branca, com 1.159 m; e o Pico de Oeste, com 1.129 m, respectivamente). Apresentam vegetação de mata úmida em alguns setores e contam com espécies rupícolas (isto é, vegetação que floresce em fendas de rochas, como na Serra das Matas) (comunicação pessoal, biólogo Leonardo de Sousa Rodrigues) (figuras 6 e 7)
Na divisa entre o Ceará, o Rio Grande do Norte e a Paraíba, se localiza o Maciço do Pereiro. Representa um relevo portentoso, sustentado por granitos brasilianos, delimitado na sua vertente ocidental por escarpa de falha. Com altitudes máximas da ordem de 800 m, é o menos escarpado dos maciços do Nordeste Setentrional. Apresenta, inclusive, segmentos planos. Expõe condições climáticas subúmidas, com mata seca de Caatinga dominando a maior parte das encostas (Claudino-Sales e Martins, 2019) (Figura 8)
Quanto ao Nordeste Oriental (Paraíba e Pernambuco), os setores elevados estão relacionados com o Planalto da Borborema. O Planalto da Borborema corresponde ao conjunto de terras altas contínuas que se distribuem ao longo da fachada do Nordeste oriental do Brasil, ao norte do Rio São Francisco, acima da cota de 200 metros. Os setores montanhosos da Borborema correspondem a dois segmentos específicos, um situado na divisa de Pernambuco e Paraíba (Serra do Triunfo), e outro na Paraíba (Serra do Teixeira).
Ambos os segmentos montanhosos são sustentados por rochas graníticas brasilianas, e têm altitudes superiores a 1000 m. Estão na transição entre as escarpas ocidentais da Borborema e a Superfície Sertaneja. A Serra do Teixeira comporta o pico mais elevado da Paraíba (o Pico do Jabre, com 1.197 m). A Serra do Triunfo, por sua vez, conta com o pico mais elevado de Pernambuco, o Pico do Papagaio, com 1260 m (Correa et al, 2010). O clima dos segmentos montanha do Planalto da Borborema é peculiar: apesar de estarem no sertão, a altitude proporciona um ambiente de serra úmida e fria, com muito verde e temperaturas que ficam abaixo de 14 graus no período do inverno (julho) (IBGE, 2014; figuras 9 e 10).
No Nordeste Meridional, no segmento da Bahia, existem também alguns segmentos de montanhas. Elas se situam ao norte e a sudeste (ver figura 2), representam complexos de pequenas serras que se mostram agrupadas. Trata-se, no primeiro caso, das serras do Brejinho, Cachoeira e Ventania; e no segundo caso, do complexo Serra Grande e Monte do Pescoço. Essas montanhas são carentes de pesquisas e detalhamento geomorfológico, necessitam de dados geoambientais que possam fomentar uma análise mais aprofundada das suas características naturais intrínsecas. São, no entanto, perfeitamente delimitáveis em imagens de satélite e em coberturas topográficas, nitidamente formadas por superfícies somitais acidentadas, vertentes declivosas e topos aguçados.
Ao sul da Bahia, finalmente, ocorre um relevo importante, que se estende a partir de Minas Gerais. Trata-se da Serra do Espinhaço, que representa uma feição longa e estreita, entrecortada por picos e vales, sustentada por rochas metamórficas antigas, de idade proterozoica. A Serra do Espinhaço foi modificada ao longo do tempo por eventos tectônicos, climáticos e erosivos, tendo sido afetada por movimentos de soerguimento e basculamento, que geraram escarpas e vales profundos. A serra também foi influenciada por mudanças climáticas, que provocaram a formação de superfícies de aplainamento. É uma reserva mundial da biosfera, e possui vários ecossistemas, como campos rupestres, cerrados, caatingas e florestas (Chaves, 1997) (figura 11).
A definição da existência de montanhas no Brasil, incluindo o Nordeste brasileiro, é um novo passo na relação sociedade x natureza no território nacional. Esse novo olhar certamente trará impacto nas ciências, mas também na economia, pois implica em surgimento de financiamentos específicos por órgãos públicos para o desenvolvimento de áreas montanhosas, tais como advindos dos ministérios responsáveis pela economia, turismo, meio ambiente, agricultura, esportes. É uma revolução na percepção social do espaço geográfico, que consideramos muito bem-vinda, e já não sem tempo!
* Vanda de Claudino-Sales é geografa, professora visitante da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Professora do Programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA), e integrante do Grupo de Trabalho “Montanhas” e Grupo de Trabalho “Superfícies Rebaixadas” do Sistema Brasileiro de Classificação do Relevo (SBCR)/IBGE/CPRM/UGB.
Referências:
Bastos, Frederico de Holanda Bastos; Cordeiro, Abner Monteiro Nunes; Silva, Edson Vicente. Aspectos geoambientais e contribuições para estratégias de planejamento ambiental da Serra de Baturité/CE. Revista da Associação Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ANPEGE), vol. 13, n. 21, p. 163-198, 2017
Bétard, François; Peulvast, Jean-Pierre; Claudino-Sales, V. Caracterização morfopedólogica de uma serra úmida no semiárido do nordeste brasileiro: o caso do Maciço de Baturité – CE. Revista Mercator, vol.6, n. 12, p. 107-126, 2007
Chaves, Mario Luiz de Sá Carneiro. Geologia e Mineralogia do Diamante da Serra do Espinhaço em Minas Gerais. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, 1997
Claudino-Sales, Vanda. Megageomorfologia do Estado do Ceará. São Paulo: NEA Edições Científicas, 2016
Claudino-Sales, Vanda; Martins, Jadson Gurgel. Paisagem geomorfológica e Geografia Ambiental do Maciço do Pereiro, Estado do Ceará. Revista Equador, vol. 8, n. 1, 2019
Claudino-Sales, Vanda; Maria Valdete Lira. Megageomorfologia do noroeste do Estado do Ceará. Caminhos de Geografia, vol. 12, n. 38, p. 200-209, 2011
Conselho Executivo Nacional – Sistema Brasileiro de Classificação do Relevo. Nota Técnica. Revista Brasileira de Geografia, vol. 67, n. 2, p. 212-227, 2022
Corrêa, Antonio Carlos Barros; Cavalcanti, Bruno de Azevedo; Araujo, Kleython; Souza, Lucas Costa; Lira, Daniel Rodrigues. Megageomorfologia e Morfoestrutura do Planalto da Borborema. Revista do Instituto Geológico, vol. 31, n. ½, p. 35-52, 2010
IBGE. Triunfo. https://cidades.ibge.gov.br/brasil/pe/triunfo/historico. Acessado 22 de outubro de 2023
Lima, Ernane Cortez. A Serra da Meruoca. Revista da Casa de Geografia de Sobral, vol. 1, n, 1, 1999