Esta é a última matéria desta série sobre os dez anos da Política Nacional de Resíduos Sólidos. Começamos pelos dados gerais do Nordeste, conforme informados pelos municípios à CNM, pelo Observatório dos Lixões, passamos pelos estados da Bahia e Ceará e finalizamos com Pernambuco, que teve sua Política Estadual aprovada nove anos antes da Nacional e hoje já vislumbra a universalização da destinação dos resíduos a aterros sanitários no Estado em 2022.
Por Maristela Crispim
Editora Geral
Recife – PE. Antes mesmo da aprovação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), o Estado de Pernambuco começou a dar os próprios passos para a eliminação dos lixões. Para isso, a participação da academia foi fundamental. Era o ano de 1984 quando o professor e pesquisador do Departamento de Engenharia Civil da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Fernando Jucá, montou um grupo de pesquisa interdisciplinar de Resíduos Sólidos. O primeiro trabalho foi a recuperação do Lixão da Muribeca, que foi encerrado, mas ainda é monitorado. Até hoje existe também o convênio com a Prefeitura do Recife.
De tudo isso resultou a publicação, em 2001, da Política Estadual de Resíduos Sólidos, construída a partir de um minucioso diagnóstico feito pessoalmente, município a município, por 14 consultores, durante três meses. “Na época, tínhamos apenas um aterro pequeno, em Caruaru, entre os 184 municípios mais o Arquipélago de Fernando de Noronha“, conta o professor.
“O grande diferencial foi a criação do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) Socioambiental, que conferia aos municípios que tratassem bem os resíduos 5% adicional do ICMS a que teria direito. Esse dinheiro era retirado dos que tratavam mal dos resíduos. No início, só quem ganhou foi Caruaru. Mas depois foram surgindo várias soluções com triagem, compostagem, não muitas, a maior parte só aterro sanitário. Mas está melhorando bastante”, detalha o pesquisador, que atualmente é presidente da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia de Pernambuco (Facepe).
A diferença, segundo suas informações, foi que o Governo do Estado não construiu e distribuiu, mas incentivou que cada município construísse seu próprio aterro sanitário, quando grande isolado; ou em conjunto, por meio dos consórcios municipais. “O governo gastou zero com isso e tudo foi construído com interlocução com a sociedade”, destaca.
Hoje, 110 dos 184 municípios de Pernambuco são atendidos por aterros sanitários e há uma meta de universalização até 2022, segundo Bertrand Alencar, hoje superintendente de Meio Ambiente da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Sustentabilidade de Pernambuco (Semas-PE), mas que também fez parte de toda essa história, hora atuando em prefeituras, hora como professor ou consultor. Engenheiro civil com mestrado e doutorado Desenvolvimento Urbano, ele é também sócio-fundador da Associação Pernambucana de Defesa da Natureza (Aspan), entidade ambiental mais antiga do Nordeste e a segunda do Brasil.
Para a meta da Semas-PE de zerar os lixões do Estado até 2022, três consórcios se inscreveram no Edital do Governo Federal. “Se conseguirem aprovação, vamos universalizar a destinação dos resíduos sólidos para aterros sanitários”, espera o superintendente.
Para o professor Jucá, o Estado evoluiu bem e, nos municípios não atendidos por aterros sanitários, considera que ainda há muito isolamento, pobreza, falta de consciência ambiental, educação limitada, “algo que o Estado ainda tem que resolver”, considera.
Cinco dos 20 aterros sanitários de Pernambuco são de grande porte, sendo três na Região Metropolitana do Recife (RMR): Centro de Tratamento de Resíduos (CTR) Pernambuco, em Igarassu; CTRs Ipojuca e Jaboatão dos Guararapes; e dois no Interior: Petrolina e Caruaru. “O percentual de reciclado ainda é pequeno em relação à produção de resíduos, mas as empresas começam a perceber que o grande negócio não é apenas receber e enterrar”, avalia Bertrand.
Superintendente de Meio Ambiente da Semas-PE
Segundo suas informações, atualmente 5.500 toneladas/dia são dispostas em aterro sanitário. Em termos percentuais, 60% vão para aterro sanitário e 40% vão para lixão. A CTR Pernambuco – EcoParque faz a triagem de 600 toneladas/mês e conta com uma unidade de separação óptica alemã que faz a leitura molecular de plástico. Separa, por exemplo, o PVC, que é proibido na área de aproveitamento energético, de outros plásticos.
No Aterro Sanitário, há aproveitamento de biogás, unidade de compostagem, unidade de aproveitamento energético dos rejeitos que não são comercializados, como Combustível Derivado de Resíduos (CDR), que fornece principalmente para as unidades de produção de cimento. “Tem um faturamento muito alto. Ganha na porta de entrada e no aproveitamento dos materiais. Mas esse exemplo ainda não é seguido pelos outros aterros do Estado”, pondera o professor Jucá.
Do ponto de vista de triagem para a reciclagem, o pesquisador afirma que a CTR Pernambuco nem de longe atende a necessidade da RMR que é de 3 mil toneladas / mês. Ele destaca que a coleta seletiva é realizada em determinados bairros e em cidades-modelo de separação de resíduos no Estado, na Zona da Mata e Agreste. “Na Região Metropolitana, temos um quadro melhor porque tem mais cooperativa, eles são mais organizados e têm mais capacidade de recolher”, explica.
“No início, nossa meta era zerar os lixões, casando Educação Ambiental, coleta seletiva e inclusão socioprodutiva dos catadores pelo estímulo à formação de cooperativas. Outra prioridade era estimular o mercado. É importante destacar que Resíduo Sólido Urbano (RSU) é o único de responsabilidade do poder público municipal. Todos os outros são de responsabilidade compartilhada entre fabricantes, importadores, distribuidores, comerciantes. A logística reversa depende da integração dos diversos segmentos”, ressalta Bertrand.
Para alcançar a meta de encerrar os lixões e organizar os catadores em cooperativa com a inclusão na coleta seletiva, o Estado pretende criar um sistema de pagamento por serviços urbanos para beneficiar o catador e um programa de certificação de reciclados em favor das cooperativas. Mas a reciclagem ainda ficará na pendência de como avança a logística reversa, que depende do setor produtivo.
Setor da reciclagem
“No setor da reciclagem, temos talvez o maior parque industrial da região, com a Lorenpet-NE (PET), a Gerdau (ferro), a Owens Illinois (vidro), duas de papelão e inúmeras de plásticos. Temos ainda cinco usinas de reciclagem de entulho na RMR e mais duas no Interior, em Caruaru e Petrolina”, informa o superintendente.
Geógrafa, especialista em Desenvolvimento Sustentável, Maria Botelho é gerente comercial e de sustentabilidade da Lorenpet-PE. A empresa trabalha a Economia Circular ao comprar sucata e retornar a matéria-prima ao mercado produtivo. Mas admite que quantidade que coloca no mercado ainda é bem superior ao que retorna para a reciclagem.
Há quase 20 anos, ela começou a trabalhar, ainda na antiga Frompet, que era só recicladora / revalorizadora do PET. Conta que, no começo, eram apenas dois grandes fornecedores de garrafas pós-consumo. Mas o mercador se desenvolveu pela fomentação da compra da garrafa. “Dar preço melhora o mercado”, explica. Hoje não tem limitação de quantidade, desde que seja entregue no padrão, enfardado por cor. “Nós apoiamos sete cooperativas de catadores na RMR. Eles são nossos fornecedores diretos”, informa.
Em 2008, a Frompet / Central Pet, que pertencia ao empresário Marcelo Guerra, foi adquirida pelo Valgroup – Lorena, maior comprador de sucata pós-consumo no continente, e se transformou na Lorenpet NE, da qual Guerra até hoje é diretor.
Para Maria, um dos problemas do mercado da reciclagem é que preço ainda não é competitivo pela falta de estrutura do próprio mercado. “Agora que as grandes empresas estão se preocupando em usar o material reciclado, mas querem pagar muito mais barato”, afirma.
Quanto ao progresso da reciclagem, o professor Jucá também enfatiza questões de mercado. “Quando você quer incentivar a coleta seletiva, a reciclagem, tem que fazer duas coisas. A primeira é conhecer onde está cada componente dos resíduos. Se não fizer a análise gravimétrica, que é o estudo da composição do resíduo por bairro, não dá para mapear onde tem latinha de alumínio, PET, papelão, materiais que têm alto valor agregado. Não existe isso porque está todo mundo satisfeito em colocar o lixo no aterro. O aterro é privado. Existe um completo desconhecimento da composição dos resíduos em cada bairro e em cada rota de coleta. Isso é inadmissível”, ironiza.
Professor e pesquisador da UFPE e presidente da Facepe
A segunda a fazer é o conhecer o mercado: “Quem compra? O que? Em que quantidade? Isso não é divulgado. Ninguém fez levantamento de mercado. Se não se conhece o mercado e nem o potencial dele de comprar aqueles produtos de um lado e do outro lado não se sabe onde estão os produtos que poderiam ser coletados de maneira seletiva para serem comprados, e, entre uma coisa e outra, não há um ambiente regulatório que satisfaça as duas partes, isso nunca vai existir. Não cria um ambiente social, não dá oportunidade de trabalho, não reduz o material que entra no aterro, não aumenta o tempo de vida útil do aterro. Isso é o mundo que vivemos no Brasil, com algumas exceções”, lamenta.
O lado dos catadores
Lindaci Maria Gonçalves é presidente da Cooperativa de Trabalho dos Catadores de Materiais Reciclaveis Erick Soares (Coocares), que fica em Abreu e Lima, na RMR, entre Olinda e Itamaracá. Ela também faz parte da comissão estadual do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) e do Fórum Lixo e Cidadania (Flic).
Como o professor Jucá, e o superintendente Bertrand da Semas-PE, Lindaci vivenciou toda a trajetória dos resíduos de Pernambuco, mas sob outra ótica, que começou na sua juventude, quando vivia com os pais, no Rio de Janeiro, casou e foi morar com o marido em Mato Grosso e depois em Belém.
Após cinco anos, devido à violência doméstica, largou o marido e foi viver com uma tia em Pernambuco. Ela não sabia, mas estava grávida. Por isso não conseguiu emprego e foi trabalhar no lixão. Como trabalhava das 6h às 18h, a filha foi criada pela tia. Conheceu outra pessoa, com quem vive até hoje, sofreu um aborto no lixão e teve outro filho, que está com 15 anos.
O trabalho no lixão foi de 1998 a 2003. Contou com o apoio da Petrobras por duas vezes. Primeiro formou a associação. Depois vieram capacitações, com a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (Incubacoop) / Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). A formação da Cooperativa foi em 2009. “Como associação, a gente não entrava nos editais do governo, não tinha como captar recursos”, explica.
A Coocares conta hoje com 21 cooperados. Somente em 2015 conseguiram um contrato com a Prefeitura para garantir o espaço e agora aguarda o início da construção do novo galpão pelo Estado, com recurso, da Caixa Econômica. Os equipamentos de proteção individual (EPIs) conseguiram com a Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe); Prensa, balança e carroças elétricas com a Nestlé. “Ainda não é a estrutura ideal, mas um grande avanço para quem saiu do lixão”, reconhece.
Em meio a tudo isso, Lindaci fez faculdade de Gestão Comercial, está acabando pós-graduação Gestão de Pessoas e Competência e já busca uma outra em Gestão Ambiental. Sobre a PNRS, afirma: “O ruim (da PNRS) é que não obriga os municípios a contratar os catadores para fazer a coleta seletiva. Se fosse obrigatório, a gente não tinha tanto lixo enterrado”.
Presidente da Coocares, membro da Comissão Estadual do MNCR e do Flic
Dez anos da Política Nacional
Para o professor Jucá, a PNRS é muito boa, construída a muitas mãos, fóruns e oficinas no país inteiro. “Mas errou por fazer uma política para o Brasil por igual e o Brasil é completamente assimétrico, em economia, educação, cuidados com o meio ambiente, na captação de informações para gerenciar bem a questão dos resíduos. Tanto é assim que ainda hoje os municípios dos estados do Sul e Sudeste praticamente todos são atendidos por aterros sanitários. Mas, quando sobe para o Norte, Nordeste e Centro-Oeste, excluindo Brasília, você tem lixão, salvo as capitais que já têm aterros. Hoje o Brasil tem mais de mil aterros, uns bons, outros ruins, bem classificados, mal classificados. Mas quando sobe pro Nordeste, complica tudo. Norte é um Deus nos acuda, chega a dar medo”, avalia.
Para ele, a Política não tratou diferencialmente esse assunto. “O decreto regulamentador que sai já já trata os municípios por tamanho, o que já é um avanço. Mas um município de 10 mil habitantes no Sul é uma coisa, em termos de meio ambiente, de consciência ambiental, economia, educação. No Pará, é outra. O tamanho ajuda, mas não resolve”, pondera. Para o pesquisador, tanto a Política quando o Decreto regulamentador deveriam incorporar as regiões brasileiras e tratar de forma diferenciada, não só pelo tamanho, mas também localização geográfica em relação ao desenvolvimento econômico, educação, educação ambiental de cada um desses municípios.
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