Fortaleza – CE. O povo cigano, ou romani, tem pelo menos 1.500 anos de história e está presente no território brasileiro desde o primeiro século da colonização portuguesa, somando de 800 mil a 3 milhões de pessoas de acordo com diferentes estimativas. O País teria a segunda maior comunidade fora da Índia, de onde se originaram.
Sua longa história de migrações decorre em parte de um estilo de vida nômade, adotado por grande parcela da população cigana, mas também da luta contra a discriminação e a perseguição enfrentada em diversas partes do mundo, notadamente durante o período de ascensão nazista, em meados do século XX.
No Nordeste brasileiro do século XXI, contudo, eles ainda enfrentam a realidade de preconceito e invisibilidade e os desafios para esse grupo étnico-racial se tornaram ainda mais complexos com a eclosão da pandemia de Covid-19, que impactou diretamente o seu modo de vida, para além dos aspectos sanitários e econômicos.
Passados 11 meses da chegada do vírus ao Brasil, a esperança agora é pela vacinação, mas diferentemente de outros povos tradicionais (como indígenas, quilombolas e comunidades ribeirinhas), os ciganos não foram incluídos entre os grupos prioritários no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19.
Apesar disso, em estados com forte presença cigana, como o Ceará, lideranças representativas desse povo e instituições da sociedade civil estão mobilizadas para garantir que o plano estadual e os municipais façam essa inclusão. Estima-se que existam até 16 mil ciganos em cerca de 60 municípios do Estado, pioneiro na mobilização para que fosse criado o Instituto Cigano do Brasil (ICB), com sede em Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). A entidade criada em 2018, hoje faz a articulação da defesa dos direitos de comunidades em 15 estados brasileiros e no Distrito Federal, além de Portugal e Bélgica.
No caso da vacinação do povo cigano no Brasil, o presidente do ICB, Rogério Ribeiro (cigano da etnia calon), enviou ofício ao ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, no início de dezembro, solicitando a inclusão de grupo étnico entre aqueles prioritários para receber a imunização contra a Covid-19, considerando que as tradições ciganas foram profundamente impactadas pela necessidade de distanciamento social decorrente da pandemia. Entre tais práticas socioculturais e econômicas, podem ser destacadas a quiromancia (leitura das mãos), as exibições de música e dança, o comércio (ambulante ou em feiras), e, em algumas regiões do País, a preservação do nomadismo.
Entre os ciganos do Ceará, contudo, predomina o sedentarismo assimilado da cultura ocidental, mas com um traço peculiar: as habitações ciganas no Estado costumam agregar até quatro famílias, fator que dificulta o isolamento social de pessoas com sintomas ou com diagnóstico confirmado de Covid-19.
Quanto à composição demográfica, Rogério destaca que “cerca de 10% da população cigana é formada por idosos. No Ceará, predomina a etnia calon, há poucos sintis, e rons também são poucos, concentrados em Fortaleza”.
Segundo o ICB, pelo menos dois ciganos foram vitimados pela epidemia e faleceram (um em Sobral e outro em Crateús) e outros dois precisaram de internação em Unidades de Terapia Intensiva (UTI).
Prioridades apontadas
Em resposta à solicitação do ICB, o Ministério da Saúde argumentou, por meio do secretário de Vigilância em Saúde, Arnaldo Correia de Medeiros, que diante da “indisponibilidade imediata de vacinas” priorizou grupos com maior “risco para agravamento e óbito, a fim de reduzir a morbidade e mortalidade pela Covid-19”.
Esses grupos citados no Plano, incluem pessoas com comorbidades, profissionais de saúde e outros serviços essenciais, idosos, entre outros. Também foram incluídos três povos tradicionais (indígenas, quilombolas e comunidades ribeirinhas), em um universo de quase 30 grupos étnico-raciais e culturais.
Luta contra a desinformação
Mesmo que os pleitos de garantir a inclusão do povo cigano entre os grupos prioritários de vacinação contra a Covid-18 sejam alcançados, as lideranças que representam essas comunidades agora também se deparam com o desafio de vencer a desconfiança que graça em parcela significativa dessa população quanto à vacina, decorrente em parte de outro fenômeno semelhante a um vírus: as fake news (notícias falsas).
O presidente do ICB, Rogério Ribeiro, afirma que “ainda tem muita gente no nosso povo em dúvida. Alguns não querem tomar porque as fake news sobre a vacina estão muito fortes, infelizmente. Tem grupos combatendo a aplicação da vacina. Existe um jogo pesado deles para que as pessoas não tomem as vacinas, inclusive com maldades, como dizer que quem tomar a vacina vai morrer ou ficar com alguma sequela”.
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Já o coordenador da comunidade cigana do Barroso, em Fortaleza, Joaquim Ferreira, apesar de incentivar a vacinação de seu povo, teme algum tipo de discriminação durante a campanha de imunização. “Acho que vão liberar para todo povo a vacina certa. Tem vários tipos de vacina. Vai que para o povo cigano eles colocam outro tipo de vacina. A gente tem que ver qual é a vacina boa lançada no comércio”, especula.
Vale lembrar que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) já autorizou o uso emergencial da Coronavac, desenvolvida em parceria entre a empresa chinesa Sinovac e o Instituto Butantã, de São Paulo, e da vacina desenvolvida pela empresa Astrazeneca em parceria com a Universidade de Oxford, no Reino Unido.
Por sua vez, os desenvolvedores da vacina Sputnik V, de origem russa, e o grupo farmacêutico brasileiro União Química estão pleiteando o uso emergencial do imunizante ou, pelo menos, o início da fase 3 de testes no Brasil.
Até o fechamento dessa reportagem, 10,1 milhões de doses da vacina da Coronavac e 2 milhões de doses da Astrazeneca estavam à disposição da população brasileira.
Desafio diário
Além da luta pela vacinação, o povo cigano no Ceará e no Brasil, também já enfrentou o desafio de sobreviver e manter, ao menos minimamente, seu modo de vida tradicional, com pouca ou nenhuma ajuda do poder público. A Eco Nordeste, inclusive, relatou o impacto inicial da pandemia sobre essas comunidades em abril do ano passado.
A articulação do povo cigano e outros povos tradicionais ajudou a minimizar a escassez de itens alimentícios e de higiene. O presidente do ICB, Rogério Ribeiro, destaca que esse movimento conseguiu mais ajuda efetiva que a recebida pelos órgãos governamentais e cita o exemplo das dificuldades que os ciganos, sobretudo aqueles que adotam o estilo de vida nômade, tiveram para se cadastrar no Programa de Auxílio Emergencial, que variou de R$ 600 a R$ 300 durante os meses de abril a dezembro de 2020.
“Esse auxílio emergencial, muitos ciganos que precisavam não conseguiram acessar enquanto muitos picaretas o acessaram de forma até covarde”, condena. “Por essas razões, criamos o Fórum das Comunidades e Povos Tradicionais, do qual sou coordenador, dentro do qual se reúnem 11 entidades seríssimas que vêm buscando trabalhar para não ficar de pires na mão ou pedindo benção aos governos Camilo ou Bolsonaro”, acrescenta Rogério.
Nesse sentido, quando do lançamento de um edital de mapeamento das comunidades ciganas, em outubro do ano passado, o Governo do Estado do Ceará justificou que “ainda se conhece muito pouco sobre as comunidades ciganas no Ceará, o que dificulta o acesso às políticas públicas, incluindo acesso à terra, implantação de equipamentos sociais e realização da inclusão produtiva”.
Parcerias e campanhas
Seja por falta de dados disponíveis ou descaso, a ausência de políticas públicas específicas para o povo cigano levou o ICB a apostar nas parcerias com entidades e empresas.
No Ceará, as principais delas foram com o Mesa Brasil, do Serviço Social do Comércio (Sesc), que doou principalmente alimentos; a Naturágua que forneceu sobretudo álcool 70% para higienização; além da Cruz Vermelha que realizou um trabalho de desinfecção do novo coronavírus, na comunidade do Barroso, em Fortaleza. Lá um cigano precisou ser hospitalizado e ficou cerca de 30 dias em um leito de UTI até se recuperar da Covid-19.
“Nós não recebemos nenhuma cesta básica dos governos. Se não fossem as parcerias que fizemos ia ficar muito difícil. Nosso povo cigano é composto, em sua maioria, por pessoas que vivem do comércio e têm de sair de casa para trabalhar. Foi uma situação muito delicada. Inclusive, tivemos casos de ciganos na Bahia que entraram em depressão e cometeram suicídio”, lamenta Rogério. “Nós vamos saber só após o fim da pandemia o tamanho do estrago que eu comparo a um furacão”, acrescenta.
O ICB lançou ainda uma campanha intitulada “Fique na Barraca, Cigano”, que incluiu elaboração de cartilhas com orientações básicas de prevenção à doença e de página nas redes sociais, voltada prioritariamente para ciganos que vivem em estados onde predomina a tradição nômade, além de ter confeccionado e distribuído máscaras personalizadas com as cores e símbolos da bandeira cigana/romani.
O instituto elaborou ainda o projeto “Sementes da Memória Cigana”, que plantará um bosque com árvores representando as 46 vidas ciganas já perdidas no Brasil para a Covid-19. Desse total, o Nordeste responde por mais da metade das mortes (24). Só no Estado da Bahia, 12 ciganos perderam a batalha contra a doença.