A temperatura amena tão perto do sertão e o verde das árvores altas e densas ficaram guardados na memória | Foto: Maristela Crispim

Por Antonio Rocha Magalhães
Economista
Ex-Secretário de Planejamento do Ceará
armagalhaes@gmail.com

Canindé / Mulungu – CE. Não apenas sou originário do sertão, mas sobretudo sou um produto do sertão. Aí cresci e me tornei gente, até emigrar para Fortaleza e seguir o meu caminho sem entretanto nunca desligar das origens. Acostumei-me com o sol e o calor do sertão, com a vegetação da Caatinga, com os caminhos tórridos que se tornavam brejos nos invernos rigorosos, como o de 1950.

Como menino, muitas vezes voltava estorricado para casa, depois de brincar ao sol, juntando ossinhos de animais mortos, caçando passarinhos ou simplesmente andando pela Caatinga. Sentia frio nas madrugadas, mas era um frio suportável, sem necessidade de cobertores.

Quando eu tinha 10 anos, ganhei como presente passar as férias na casa do meu avô materno, no município de Mulungu, em cima da Serra de Baturité. Eu não sabia o que me esperava. Meu pai conseguiu que um amigo dele que era tangerino, isto é, fazia comboios para ir buscar na serra rapadura e farinha para a feira de Canindé, que ele me levasse.

Montei em um dos seus jumentos e seguimos, por dois dias, a caminhada entre Canindé e a Serra (hoje se faz o percurso de automóvel em 30 minutos). Um dia vou falar sobre o trabalho dos comboieiros, mas por enquanto quero me deter sobre essa viagem. Pernoitamos, alta noite, em uma fazenda no pé da serra. Era lua cheia, víamos a estrada iluminada pela luz da lua. A temperatura no sertão, à noite, é sempre amena. Apesar de lembrança de menino, não consigo esquecer a beleza do sertão numa noite de luar.

No dia seguinte, subimos as quebradas, isto é, a ladeira que leva até o cimo da serra, onde se localizam os principais sítios que na época produziam café, cana e mandioca. O caminho das Quebradas chegava diretamente no lugarejo chamado, ainda hoje, de Lameirão, porque é uma ladeira que fica enlameada durante as chuvas, isto é, na maior parte do tempo, naquela época.

O Lameirão se localiza entre os municípios de Mulungu e Aratuba. Em cima da serra, as cidades são Aratuba, Mulungu, Guaramiranga, Pacoti e Palmácia. Em geral, os sítios eram – e continuam sendo – pequenos, mas a combinação de solo e água e o tipo de atividade permitiam o sustento das famílias.

O amigo do meu pai me entregou ao meu avô, no Sítio Ipiroá. Depois de uma longa viagem em lombo de jumento, eu não me sentia cansado. Tudo era novo, a curiosidade suplantava qualquer dificuldade. A primeira coisa que me ocorreu foi a diferença de temperatura. Eu sentia frio de verdade e não conseguia acreditar que estava tão perto de Canindé. A segunda coisa foi ver o verde, as árvores altas e densas, que vim depois a saber que fazem parte da Mata Atlântica brasileira.

O relevo acidentado também me chamou a atenção, assim como os olhos d´água, a água saindo da terra, em cada lugar que se fosse. Isso era na década de 1950. Esses olhos d´água hoje desapareceram, houve desmatamento, mudança de lavouras. O Instituto Brasileiro do Café, na década de 1970, proibiu o plantio do café em área sombreada, recomendando o corte das árvores que protegiam essa cultura. Mas não é isso o que quero falar agora.

A grande surpresa foi descobrir que, no meio do sertão, existem essas ilhas que mais parecem de regiões temperadas, com temperatura amena ou baixa, com muita água (exceto, agora, nos anos de seca extrema), com muitas árvores. Não imaginava que isso fosse possível. Foram férias inesquecíveis, que eu sempre fiz questão de repetir enquanto pude, nos anos seguintes.

Participava nas atividades de moagem de cana e de feitura da rapadura, logo em frente à casa. Observava a alimentação das fornalhas, com o bagaço da cana que se ia acumulando na medida em que a moagem progredia. Via a moagem propriamente dita, quando a cana era colocada em cilindros que a moíam e faziam escorrer o caldo que era despejado nas enormes caldeiras que eram aquecidas pelas fornalhas, até que o líquido fervesse e que se alcançasse o ponto para a produção de rapadura. Gostava de fazer alfenins, antes que a matéria-prima da rapadura se solidificasse.

No mesmo local, havia também uma casa de farinha, cujo produto era enviado para o sertão. Para uma criança, o maior interesse na produção de farinha era a produção de bijus, um tipo de tapioca que se produzia ainda enquanto se torrava a farinha.

Anos depois, visitei a Serra da Ibiapaba pela primeira vez. Eu já morava em Fortaleza e tinha um amigo, também estudante, cujo pai tinha um sítio para aquelas bandas. Uma vez ele me convidou para ir junto e eu aceitei. Para quem vai do Ceará em direção ao Piauí, depois de muito viajar no meio da Caatinga, sobe a serra e sente a mudança de clima.

Parece um outro lugar, é sertão sem ser sertão. Senti um frio danado em Tianguá. Vi a produção de café, nos moldes em que se fazia na Serra de Baturité. Era outra ilha, no meio do Sertão. E, no entanto, era complementar. Esses lugares também existem em outros estados do Nordeste, onde a paisagem do sertão é substituída por outra de região úmida ou temperada, em brejos e serras.

Havia perfeita integração entre as duas regiões. Na minha época, o sertão era o lugar de produção de algodão, produtos de gado, feijão e milho, principalmente. A serra lhe mandava produtos alimentícios, especialmente o café, a rapadura e a farinha. Com a crise do cafezal, a serra aumentou a sua produção de hortaliças, para abastecer o Estado. No sertão, o algodão também entrou em colapso e, com isso, a renda das famílias. As respectivas economias foram forçadas a buscar alternativas, nem sempre encontradas.

Ao lado disso, a população aumentou, tanto na Caatinga como na serra. Houve um processo de urbanização, mudou a estrutura etária, o meio rural começou a esvaziar-se. Expandiram-se as periferias urbanas, onde a pobreza rural se localizou. Disputando o mesmo espaço, houve mais desmatamento e mais destruição ambiental. Esse é um problema comum tanto das áreas de serra como das de sertão. Não é só a Caatinga que está ameaçada, mas também os oásis que permeiam o sertão e que sempre foram refúgio para um número significativo de pessoas.

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