Neste Dia Nacional do Cerrado, a Eco Nordeste traz uma visão do que significa o bioma na vida das pessoas que vivem nele e dependem dele para viver, por isso são considerados guardiões da natureza. São relatos de quem divide o Cerrado com o agronegócio na região conhecida como Matopiba, fronteira agrícola que mais avança no País, localizada entre os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
“O Cerrado é para mim um espaço de pertencimento, meu modo de vida em toda a sua sociobiodiversidade. E esse é um sentimento que não pode ser descrito em palavras, pois existe toda uma diversidade de povos, de animais e plantas e modos de vida. Precisamos sensibilizar as pessoas para que compreendam essa defesa e que a partir do Cerrado e dos demais biomas, se forma todo esse espaço onde a gente está. A importância e defender e falar vem também com esse sentimento de pertencimento e defesa de todas as vidas que existem no no bioma em que vivo”.
Ivanessa Ramos, agrônoma, agricultora familiar, do quilombo de São Bento do Juvenal, em Peritó, no Maranhão.
“Sou um sertanejo e quero agradecer pela vida que tenho aqui no sertão do Jalapão. Na minha infância nós vivíamos em meio a muita riqueza, mas não tínhamos consciência da riqueza que tínhamos. Com o passar dos anos, fomos aprendendo a conviver com toda essa natureza e a cuidar desses recursos e hoje me sinto orgulhoso por ter aqui uma vida muito tranquila, saudável, e de poder sobreviver do extrativismo no Cerrado. Aqui temos alimentos de verdade e de qualidade. O Cerrado na nossa vida é algo muito importante, que nos proporciona uma vida rica, saudável e próspera. Minha grande tristeza é que o nosso Cerrado está sendo destruído, as nossas riquezas naturais, e saúde estão acabando”
José Menininho, agroextrativista e produtor de farinha de jatobá, em Mateiros, no Tocantins
“Pra mim o Cerrado significa tranquilidade, para nós sertanejos é um lugar muito importante, pois é de onde a gente tira o nosso sustento. Aqui vivemos das frutas naturais do Cerrado, como o buriti, bacuri… No Cerrado eu só tenho paz”
Norinda dos Santos, sertaneja da comunidade de Bom Acerto , na zona rural de Balsas, no Maranhão
“O Cerrado é simplesmente um lugar de preservação em que as pessoas deveriam cuidar e não devastar, nem tocar fogo, é o nosso lugar de viver”
Maria Félix, sertaneja da comunidade Gado Bravinho, na Zona Rural de Balsas
“Ser mulher no Cerrado, bioma mais devastado e maltratado do Brasil é sobretudo força, coragem e aprendizagem para defender a vida e toda a biodiversidade que há no bioma. Um dos desafios é organizar-se por vezes silenciosamente para ver o sol raiar no dia seguinte. É um silêncio ensurdecedor que tardeia a garantia da sustentabilidade das comunidades que todos os dias são ameaçadas pelo agronegócio e desassistida pelo Estado”
Eanes Silva, comunicadora popular de Balsas, no Maranhão
O Cerrado é um bioma que em seus 2 milhões de km² resguarda uma diversidade imensurável de espécies de plantas e animais. Mais que isso, também conhecido como a “savana brasileira”, ou “berço das águas”, concentra uma mistura de povos e tradições que convivem em harmonia com as particularidades e oportunidades oferecidas pela natureza do bioma.
Rosângela Corrêa, antropóloga, ecóloga e diretora geral do Museu do Cerrado destaca que este é um dos biomas mais antigos do planeta Terra e que teve seu processo evolutivo iniciado há 65 milhões de anos, e seu ápice há 40 milhões. Contudo, os seres humanos só chegaram ao planalto central, que é a área onde ocorre o bioma, entre 13.000 a 18.000 anos do presente. A pesquisadora ressalta que algumas pesquisas arqueológicas mostram que o pequi, fruto nativo, já era comido, desde aquela época, uma prova de que os seres humanos se apropriaram dessa biodiversidade desde os tempos mais longínquos.
“Atualmente, o Brasil tem 305 povos indígenas e aproximadamente 80 desses povos habitam o que equivale ao Cerrado. Há ainda mais as comunidades tradicionais não contabilizadas pelos dados oficiais”, enfatiza Rosângela.
Como exemplo desses povos, a diretora do Museu do Cerrado cita as apanhadoras de sempre-viva, na Serra do Espinhaço, em Minas Gerais; as comunidades de fundo e fecho de pasto, no Oeste da Bahia; as quebradeiras de coco babaçu, na área de transição entre o Cerrado e a Amazônia; os brejeiros no Sul do Piauí; os vazanteiros, nas margens do Rio São Francisco; os veredeiros; os povos de terreiros, os pescadores artesanais e tantos outros.
Isabel Figueiredo, coordenadora do Programa Cerrado do Instituto Sociedade População e Natureza (ISPN), considera que esses são povos que se organizam em “grupos identitários que praticam modos de vida integrados com o Cerrado, como o extrativismo de frutos, a solta do gado, o cultivo nas vazantes dos rios. São comunidades que possuem imensa diversidade cultural e são essenciais para a conservação do Cerrado”.
Rosângela Corrêa destaca que para compreendermos essas comunidades, é preciso antes explicar que o Cerrado tem formações florestais, como formações de Savana e formações campestres. Essas formações é que permitem uma enorme diversidade distribuída em 13 fitofisionomias. Esses povos vão estar relacionados com determinadas fitofisionomias, por exemplo, os vazanteiros vão estão relacionados à Ilhas no meio do Rio São Francisco. Essas Ilhas desaparecem no tempo da chuva, mas no tempo da seca elas aparecem e é quando eles conseguem fazer agricultura. Assim também ocorre com as apanhadoras de flores sempre-vivas, elas estão nos campos rupestres, que é um tipo de fitofisionomia específica do Cerrado.
“Essa relação íntima dessas comunidades com as particularidades do Cerrado é que gera a proteção do bioma, porque eles são profundos conhecedores dessa biodiversidade e dependem desses recursos para o sustento e sobrevivência”, frisa a pesquisadora.
Guardiões do bioma
Um estudo realizado pelo MapBiomas revela que os povos tradicionais do Cerrado perderam apenas 1% da área de vegetação nativa do bioma, ou seja, eles conseguem comer os frutos do Cerrado e seus derivados, utilizar suas plantas medicinais, utilizar dos recursos e ainda assim evitar a devastação do bioma.
Para Rosângela Corrêa, “o ecocídio do Cerrado vai conjuntamente com genocídio dos povos indígenas e comunidades tradicionais. A realidade é que o uso de agrotóxicos nas áreas do Cerrado são armas para eliminar essas comunidades de seus territórios para o agronegócio, então é uma política de extermínio e isso é preciso ser dito com todas as letras”.
A pesquisadora lembra ainda os dados alarmantes do Atlas da Violência de 2023, que aponta que quem mais morreu no nosso país foram as lideranças de comunidades tradicionais e povos indígenas do Cerrado. Além de estarem sendo assassinadas essas pessoas são ameaçadas, têm suas casas queimadas e destruídas. “A não visibilidade desses povos é constituída de um modelo colonialista no nosso país”, finaliza Rosângela.
Para Isabel Figueiredo, coordenadora do Programa Cerrado do Instituto Sociedade População e Natureza (ISPN), o não reconhecimento do bioma como patrimônio brasileiro dificulta o engajamento da sociedade na proteção do bioma, que não se importa com o desmatamento acelerado e, portanto, não pressiona o governo e o agronegócio a mudar tais práticas, além disso a invisibilidade que é dada às pautas dos povos tradicionais do bioma e ao enfrentamento que fazem ao agronegócio e à mineração são fatores que desfavorecem a luta pela conservação do Cerrado e de seus povos.
Dia do Cerrado
A data instituída há 21 anos pelo governo federal é uma alusão ao nascimento do artista e ativista Ary José de Oliveira (1939-2003), conhecido como Ary Pára Raios. Nascido em Sertanópolis (PR), viveu em Brasília, onde em 1995 invadiu uma reunião do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama) que discutia o afrouxamento da legislação protetiva da Mata Atlântica cantando Bichos Escrotos, da banda Titãs.
Denominado com as sílabas iniciais dos quatro estados que abrange – Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia –, o Matopiba inclui 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais desses três estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho e algodão.
O Matopiba tem 73 milhões de hectares em três biomas: Cerrado ( 66,5 milhões de hectares, o equivalente a 91% da área), Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a 7,3%) e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.
Projeto ma.to.pi.ba.
Este conteúdo faz parte do Projeto ma.to.pi.ba., uma ação multimídia da Eco Nordeste, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Com início em janeiro de 2024, traz matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo em que aborda os problemas socioambientais, a iniciativa multimídia aponta experiências que têm dado certo na região, seguindo a linha editorial de jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.
O projeto é executado por uma equipe premiada composta pelas repórteres Alice Sales e Camila Aguiar, com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação geral da jornalista Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação, Flávia P. Gurgel é responsável pelo design; Isabelli Fernandes, edição de podcasts; Adriana Pimentel a edição das newsletters; e Andréia Vitório faz o gerenciamento das redes sociais.