Eles chegaram ao Cerrado antes do agro

A plataforma “Tô no Mapa”, uma das iniciativas que cadastra povos e comunidades tradicionais do Cerrado brasileiro, funciona como um espaço de automapeamento, para dar visibilidade aos territórios subestimados pelos dados oficiais

Foto colorida de rebanho de cabritos conduzido por um senhor em uma estrada de terra ladeada por arbustos cinzas sob um céu azul

A criação de gado é uma das atividades das comunidades de fundo e fecho de pasto, na Bahia | Foto: Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA)

Muito antes das atividades do grande agronegócio se expandirem na divisa agrícola formada pelo Maranhão, Tocantins, Piauí, e Bahia, conhecida como Matopiba, na década de 1960, o espaço já era habitado por diversos povos de comunidades tradicionais, que até hoje resistem para permanecer em seus lugares e preservar seus modos de vida.  Ao contrário do que muitos imaginam, a região tida como a menina dos olhos do agronegócio brasileiro, não era uma terra inabitada, onde nada se produzia.

Em comunhão com as florestas de Cerrado em pé, vivem no Matopiba extrativistas, pescadores artesanais, agricultores familiares, ribeirinhos, comunidades de fundo e fecho de pasto, quebradeiras de coco babaçu, gerazeiros, veredeiros, indígenas, quilombolas e tantos outros. Esses povos que podem ser considerados guardiões de florestas e nascentes, retém preciosos conhecimentos sobre a natureza e seus sistemas agrícolas, que passam de geração em geração. Muitas vezes são as mãos que geram produtos únicos da sociobioeconomia do Brasil, além de contribuírem para que as produções de agricultura familiar do País correspondam a 70% dos alimentos que vão para a mesa do brasileiro. 

Contudo, com a expansão da fronteira agrícola e as mudanças que o agronegócio trouxe para a região, muitas dessas comunidades tradicionais passaram a sofrer pressões, conflitos por terra e a terem a integridade de seus tradicionais modos de vidas ameaçados. 

Foto colorida de casal de agricultores formados por um homem e uma mulher rodeados por um rebanho caprino

Agricultores de comunidade tradicional de fundo de pasto da Bahia | Foto: Instituto Regional da Pequena Agropecuária Apropriada (IRPAA)

Em uma expedição à porção maranhense do Matopiba, a equipe de reportagem da Eco Nordeste entrevistou lideranças de diversas comunidades tradicionais da região e como unanimidade todos declararam que esses povos não foram consultados e ouvidos durante o processo do avanço do agronegócio local. A mesma ausência de diálogo ocorreu no Oeste da Bahia, de acordo com Marcos Rogério Beltrão, ativista do Movimento Ambientalista Grande Sertão Veredas (Maisverde).

“Podemos afirmar que, no Matopiba, as comunidades tradicionais não foram nada consideradas em toda a concepção do avanço do agronegócio. Inclusive na época da construção do Plano de Desenvolvimento Agrícola do Matopiba, desenvolvido pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o documento afirma que há um vazio populacional na região e não se refere de maneira alguma a toda a riqueza cultural que o lugar apresenta, quando há uma série de segmentos de comunidades tradicionais que habitam o Matopiba”, destaca Isabel Figueiredo, coordenadora do Programa Cerrado e Caatinga do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN).

Foto colorida de mão de agricultora familiar segurando um maxixe: fruto verde com espinhos vistosos

Maxixe é um fruto comum cultivado entre os roçados das comunidades tradicionais | Foto: Camila de Almeida

A pesquisadora enfatiza que há todo um estigma com relação aos meios de vida dos povos e comunidades tradicionais e agricultores familiares, considerando que vivem em extrema pobreza e que os sistemas que usam são muito rudimentares. Na verdade, é possível atestar que esses povos desenvolveram técnicas de produção extremamente eficazes, adaptadas à região e aos ritmos da natureza. 

“As comunidades plantam uma diversidade enorme de produtos de roça, além dos seus quintais com fruteiras, plantas medicinais e aromáticas. Também utilizam as plantas da transição entre os biomas Cerrado, Caatinga e Amazônia  para a geração de renda. Cadeias produtivas como a do coco babaçu, pequi, mangaba, jatobá e capim dourado, são fontes de renda importantíssimas para essas comunidades. E uma vez que estão mantendo o Cerrado em pé, estão também garantindo a provisão de água para o nosso País. São comunidades que contribuem para evitar as mudanças do clima, a extinção de espécies e que também geram renda. “

Foto colorida de panela cheia de frutos vermelhos de cascas grossas (buritis) de molho na água

O buriti é um fruto nativo do Cerrado comumente colhido por extrativistas de comunidades tradicionais | Foto: Camila de Almeida

Automapeamento de comunidades

A pesquisadora destaca que constam ainda poucas informações sistematizadas sobre esses povos, mas que já há avanços com o auxílio de ferramentas como o site e aplicativo Tô no Mapa. A plataforma funciona como um automapeamento, feito pelas próprias comunidades e já conta com o mapeamento de cerca de 300 comunidades tradicionais em toda a abrangência do bioma Cerrado, mas estima-se que há ainda cerca de 7 mil povos a serem mapeados. 

Lançada em 2020, como uma iniciativa do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), com o apoio do Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos (CEPF),  a plataforma Tô no Mapa veio para preencher a lacuna que existe nos mapas oficiais sobre a presença dos povos tradicionais.

Foto colorida de homem pardo e barbudo vestindo camisa polo verde segurando um smartphone enquanto mostra o conteúdo da tela para outro rapaz pardo de cabelos quase raspados vestindo camiseta branca e sem barba que observa

Comunidades tradicionais de todo o País podem se automapear de forma interativa e gratuita na plataforma Tô no Mapa | Foto: Bibiana Garrido/ Ipam

“Tô no Mapa veio exatamente com o objetivo de tirar essas comunidades da invisibilidade e mostrar que elas habitam esses espaços há muito tempo, utilizando esses territórios de forma tradicional, ligados à biodiversidade do bioma Cerrado. A intenção é que as comunidades façam delimitações e informem características de seus territórios, assim como os conflitos que enfrentam, e que esse automapeamento seja feito de forma coletiva”, ressalta Isabel de Castro, pesquisadora do Ipam. 

A cientista lembra que essa iniciativa foi construída com base em um projeto chamado Mapeamento de Comunidades Tradicionais Invisibilizadas: “Na região do Matopiba realizamos oficinas com lideranças que conheciam a região. Essas pessoas iam apontando onde estavam as comunidades tradicionais. Nos dados oficiais, no Matopiba continham 667 comunidades. Quando o projeto foi encerrado, já havia um levantamento de um número muito maior que os apontados inicialmente por esses dados, somando 3.240 comunidades. Com o lançamento do “Tô no Mapa”, a ideia é que esses territórios e comunidades sejam automapeados e apontados, não por terceiros, mas de uma forma coletiva, pelas próprias pessoas que vivem nessas comunidades tradicionais.”

Foto colorida de homens indígenas sentados em círculo, enquanto um deles manuseia um facão e corta palhas dispostas no chão

O grupo Kanela, do Sul do Maranhão, é um dos povos indígenas que habitam a região do Matopiba | Foto: Eanes Silva

Em paralelo, existe uma outra iniciativa: a Plataforma Territórios Tradicionais, liderada pelo Conselho Nacional de Comunidades e Povos Tradicionais, em parceria com o Ministério Público Federal (MPF). Essa também funciona como um repositório de automapeamento e há um acordo de cooperação entre o Tô no Mapa e essa plataforma, que possui um grande peso por estar hospedada no site do MPF, com o protagonismo dos povos tradicionais. A ferramenta tem como grande objetivo incentivar a criação de políticas públicas para esses povos e que qualquer empreendimento que pretenda se instalar na região leve em consideração a presença dessas pessoas. 

“Estudos apontam que as comunidades tradicionais presentes no Cerrado estão sendo muito impactadas com pressões, desde a contaminação dos recursos hídricos, até a proibição de acessos à áreas dos territórios. Há a necessidade de um esforço muito grande para divulgar essa ferramenta e possibilitar que esses povos se automapeiem e povoem esse território onde eles estão excluídos. A gente segue nesse esforço  para fortalecer a luta pela garantia da proteção desses territórios”, finaliza Isabel de Castro. 

Foto colorida de quintal com um roçado com plantações rasteiras rodeado por grandes árvores da vegetação nativa do Cerrado com árvores e palmeiras

Agricultores familiares da comunidade Gado Bravinho, Sul do Maranhão, alia o roçado às plantas nativas do Cerrado | Foto: Camila de Almeida

Projeto Ma.to.pi.ba

Este conteúdo faz parte do Projeto ma.to.pi.ba., uma iniciativa multimídia da Eco Nordeste, com o apoio do Instituto Clima e Sociedade (iCS). Com início em janeiro de 2024, traz matérias, reportagens, podcasts, webstories e newsletters que lançam sobre a região do Matopiba um olhar para além do agronegócio. Ao mesmo tempo em que aborda os problemas socioambientais, o projeto aponta experiências que têm dado certo na região, seguindo a linha editorial de jornalismo de soluções adotada pela Eco Nordeste.

O projeto é executado por uma equipe premiada composta pelas repórteres Alice Sales e Camila Aguiar; com edição da jornalista Verônica Falcão e coordenação geral da jornalista Maristela Crispim. Líliam Cunha assume a Assessoria de Comunicação; Flávia P. Gurgel é responsável pelo design; Isabelli Fernandes, edição de podcasts; e Andréia Vitório faz o gerenciamento das redes sociais.

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