Histórias de vida e luta para evitar novos feminicídios e dar mais apoio para que mulheres saiam de situações de violência em Sergipe são contadas nesta matéria da Eco Nordeste, parte do Projeto ‘Um vírus e duas guerras’, parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia Real, AzMina, #Colabora, Eco Nordeste, Marco Zero Conteúdo, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo.

Crescer vendo a mãe sofrer violência doméstica foi o primeiro impulso para Valdilene Oliveira Martins, hoje advogada, administradora e ativista dos direitos das mulheres, não ficar calada diante do poder patriarcal nas relações afetivas familiares e/ou conjugais que tem levado inúmeras mulheres à morte | Foto: Adriana Pimentel

Por Adriana Pimentel
Colaboradora

Aracaju / Lagarto – SE. A perseguição a mulheres vítimas de violência de gênero por seus agressores aumentou em 45%. Segundo a Coordenadoria de Estatística e Análise Criminal (Ceacrim) do Estado de Sergipe, os registros de descumprimento de medidas protetivas de urgência, da Lei Maria da Penha, onde o agressor tem uma ordem de afastamento de suas vítimas, durante o período de janeiro a junho deste ano foram de 108 ocorrências. Em igual período de 2019, foram 74. Já os feminicídios e homicídios dolosos, nos meses de maio e junho de 2020 (5), diminuíram em 50% se comparados com igual período de 2019, quando foram assassinadas 10 mulheres.

As dificuldades no repasse dos dados oficiais da violência contra a mulher nos impediram de analisar o quadrimestre (maio a agosto). Primeiro, identificamos uma diferença nos números de mortes. Foram necessárias três mensagens de Whatsapp, um áudio e uma chamada telefônica detalhando a diferença numérica. Só assim fomos informadas de que, por uma falta de atenção, nos repassaram os dados de maio e junho de 2019 juntos com os de 2020 como um único ano. Por fim, ficamos sem os dados de julho e agosto por conta de um problema técnico no sistema da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senaspe).

A carência de dados oficiais sobre as violências contra a mulher, inclusive a identificação do perfil dessas vítimas, reflete na dificuldade de se trabalhar de forma encadeada no combate desse que é considerado um problema de saúde pública, segundo Sônia Meire, professora universitária aposentada, feminista, ativista há mais de 20 anos nas causas da Educação. “Primeiro, algumas mulheres têm medo de fazer o Boletim de Ocorrência e serem mortas depois, embora estudos mostrem que as que não denunciam tenham uma probabilidade maior de serem assassinadas, de serem mais violentadas. Mas, elas têm muito medo porque não sentem a presença do Estado no seu cotidiano”, constata.

Alerta para saírem da situação

Crescer vendo a mãe sofrer violência doméstica foi o primeiro impulso para não ficar calada diante do poder patriarcal nas relações afetivas familiares e/ou conjugais. Desde muito jovem nunca aceitou o controle dos namorados sobre as amigas e se questionava se era só ela que achava que aquilo não estava certo e se também não ia passar pela mesma situação. Esta é Valdilene Oliveira Martins, advogada, administradora e fundadora do Instituto Professora Liete Oliveira Azevedo (Ressurgir), onde atua como presidente da Comissão de Direitos Humanos. “Meu sonho era conquistar minha independência financeira para tirar minha mãe daquela situação e superar esse desafio foi gratificante. Hoje o Instituto leva o nome dela, uma homenagem em vida pela força que sempre me inspirou”, conta emocionada.

A violência psicológica pode ser praticada sem um grito, sem nenhuma agressão física

Valdilene Oliveira Martins
Advogada, administradora e ativista dos direitos da Mulher

Durante sua trajetória, ela conseguiu alertar muitas mulheres para saírem da situação de violência, principalmente psicológica, sexual, patrimonial. Na família, depois de ajudar a mãe, foi a vez da sogra. “Inclusive fui eu quem fiz o divórcio dela, já como advogada. Atuo no âmbito civil nas causas de família e também no âmbito criminal, exclusivamente na assistência jurídica a mulheres em situação doméstica e familiar pelos artigos 27 e 28 da Lei Maria da Penha. Estou na linha de frente desde 2012”, conta. A violência psicológica pode ser praticada sem um grito, sem nenhuma agressão física. É um mal silencioso que destrói a identidade da vítima. Para Valdilene Oliveira, é preciso criar um tipo penal para essa violência. “A violência psicológica é muito complexa, difícil de reunir provas”, reforça.

Para a mulher que sofre com a violência psicológica, provar que aquele homem, que na maioria das vezes é muito bem visto socialmente, é desencorajante. Diferente do homem drogado, que bebe e tem um perfil agressor, conflitivo e de fácil identificação, o homem que é agradável, prestativo, constrói uma imagem quase inabalável e fica difícil vê-lo como agressor. “É o funcionário competente, o bom vizinho. Tenho um caso que o homem era pastor, ia para a audiência com a bíblia na mão e ele quebrou a mandíbula dela. E eles são conscientes do que estão fazendo. A regra deles é serem bem-vistos. Tem deles que dão até conselho. Se você não conhece o caso, pensa: o que esse homem está fazendo aqui?”, esclarece.

Polícia Civil e terapia ocupacional

O processo de mediação antecipado reduziu claramente a ocorrência de feminicídio em Lagarto (SE) | Foto: Adriana Pimentel

Duas mulheres com contextos históricos e trajetórias profissionais bem diferentes, mas, que tinham em comum a luta no combate à violência de gênero. Carol Jorge, delegada de Polícia Civil em Lagarto (SE); e Sandra Aiache Menta, doutora em Terapia Ocupacional, professora da Universidade Federal de Sergipe (UFS) – Campus de Lagarto. O encontro inusitado se deu por Sandra escolher a Delegacia de Lagarto como local de estudo de casos, para entender os números da violência. Justamente nessa época, que era o ano de 2011, a delegada Carol conheceu a mediação de conflitos por uma capacitação e ficou fascinada. Assim nasceu o projeto de ressocialização de homens agressores pela mediação de conflito e as técnicas da terapia ocupacional no município de Lagarto que fica a 78 Km da capital, Aracaju.

“A mediação é uma técnica, uma metodologia extremamente trabalhosa e que realmente atua no conflito, nas causas, na qual a gente atende as reais necessidades e empodera a mulher. Porque, em muitos casos, para haver o processo contra a violência doméstica, é preciso ter a autorização da vítima, e, quando a gente mostra isso para o homem, que ele não está sendo processado porque a mulher não autorizou, naquele momento a vida dele está na mão daquela mulher que ele tanto agrediu, tanto bateu, tanto ameaçou. É quando a mulher começa a perceber o valor que tem e começa a perceber que existe sim uma lei para ela, por ela, e que ela vai ter voz ativa”, afirma Carol Jorge.

E, como resultado da mediação, esse homem e essa mulher são encaminhados para o grupo de apoio que vai trabalhar os papéis desempenhados por cada um dentro da relação e as origens das violências. E por oito anos a metodologia era disponibilizar os serviços. Assim, essa mulher não ficava batendo em porta em porta. Era acolhida imediatamente, e o homem, no dia seguinte. “Alguns conhecimentos que vinham da minha tese do doutorado, como a teoria de autodeterminação em relação ao empoderamento da mulher, me deram muitas ferramentas, como identificar que aquele homem não sabia sair do ‘fazer violento’ porque não falava sobre seus sentimentos. Nós víamos que ali tinha afeto, mas não em todos os casos”, detalha Sandra Aiache.

Segundo Carol Jorge, também é trabalhado o princípio da proporcionalidade: “a gente atua com o mais simples nos casos mais simples e o mais grave nos casos mais graves. É como remédio, de acordo com a doença”. No Brasil, não existiam modelos desse tipo de trabalho com grupos de reflexão para homens. Daí, Sandra Aiache criou: “existia modelo de trabalhar com homens já no período de inquérito ou processual. Todos os grupos reflexivos que existiam estavam ligados à Justiça, nenhum à Polícia, e por que a Polícia era importante? Porque era uma das portas de entrada da mulher”, esclarece.

Quando o projeto ganhou visibilidade nacional, espaços na mídia, a duas idealizadoras, que viviam no anonimato, e mais do que isso, recebiam críticas muito fortes porque a Polícia não fazia isso. Eram consideradas visionárias e loucas. Mas, quando os números comprovam a eficácia do projeto, outros municípios convidaram as duas para implementar novas unidades.

“É por isso que lá em Lagarto não teve registro de feminicídio dos participantes. De 2012 a 2014, só teve um feminicídio e foi de uma vítima que não tinha registro de ocorrência. Eu saí do município em 2015 para assumir o Sindicato dos Delegados e ocorrem três feminicídios, uma tristeza. Em 2018, eu retornei e entreguei agora em junho 2020 o município sem feminicídio consumado.

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