Por Fernanda Cruz
Da Asacom

A investigação revelou a inclusão feminina em uma política pública que trouxe uma gestão mais sustentável da água no âmbito doméstico e comunitário | Foto: Bruno Spada / ASA

Serra Talada – PE. Nos últimos anos, as políticas de convivência com o Semiárido, especialmente as de acesso à água, têm inspirado outras regiões brasileiras e outros semiáridos no mundo. Elas também têm sido objeto de estudo de universidades, centros de pesquisa e acadêmicos.

No último dia 20, Islene Pinheiro Façanha, economista e doutoranda no Curso de Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável, na Universidade Nova de Lisboa, em parceria com a East Anglia University, defendeu sua tese sobre Gênero e Água a partir da experiência do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC).

Em entrevista à Asacom, ela explicou os impactos e desafios de uma política pública como o P1MC na vida das mulheres rurais de Serra Talhada, no sertão pernambucano; bem como as possíveis contribuições da academia nas políticas afirmativas para as mulheres.

Asacom – Você se dedicou a olhar o Semiárido para além da perspectiva do acesso à água enquanto política pública, mas sobretudo o impacto desse tipo de política na vida das mulheres rurais. O que a sua pesquisa revela?

Islene – A investigação revelou a inclusão feminina em uma política pública que trouxe uma gestão mais sustentável da água no âmbito doméstico e comunitário. Em nível doméstico, as mulheres afirmaram que aprimoraram os seus conhecimentos sobre a gestão hídrica e adquiriram novas habilidades práticas, como: capacitação em gestão financeira e sobre a problemática ambiental. Além de capacitação profissional, como o curso de cisterneiras. As mulheres sentiram-se empoderadas ao serem as titulares da cisterna. Além disso, possibilitou uma maior autonomia hídrica das famílias. A poupança de tempo na coleta de água favoreceu a realização de outras atividades.

Em nível comunitário, verificou-se uma maior participação feminina nas associações e em outros setores, com um maior destaque para o papel das mulheres na Feira Agroecológica de Serra Talhada. A partilha de conhecimentos sobre a água durante os cursos de gerenciamento de recursos hídricos foi apontada pelos informantes-chaves como uma experiência enriquecedora para o programa, contribuindo para a componente de valorização dos conhecimentos tradicionais.

Com base nas evidências empíricas apresentadas, pode-se afirmar que, a abordagem bottom-up (estratégias de processamento de informação e ordenação do conhecimento) do P1MC, que incluiu as mulheres na governança local hídrica está fundamentada na comunidade, respeitando os conhecimentos locais e com uma visão estratégica para o Desenvolvimento Rural.

O programa definido para promover o acesso hídrico, sobretudo para mulheres chefes de famílias, levou em consideração experiências de vida reais e o contexto onde o paradigma participativo foi implementado e, portanto, é considerado bem-sucedido.

Asacom – Nos últimos anos o mundo tem voltado suas atenções para as mulheres e jovens, muito em função da Agenda 2030. No entanto, essa ‘atenção’ parece pouco se reverter em políticas concretas, que tratem as especificidades desses públicos. Quais os desafios que estão colocados? Porque parece ser tão difícil termos algo concreto que possa, de fato, impactar na vida das mulheres?

Islene – O desafio de ultrapassar a lacuna existente entre a teoria e as políticas, e as políticas e a prática. Este já é por si um grande desafio. Reverter necessidades em políticas concretas que só podem ser alcançadas com o conhecimento das realidades aos quais estes projetos são propostos e com parcerias, como com o trabalho conjunto com organizações da sociedade civil e governo.

Um dos motivos pelos quais o P1MC foi um grande sucesso foi porque o diálogo entre a sociedade civil organizada e o governo teve como produto final um compromisso com as populações do Semiárido. E esta parceria trouxe um programa que mudou a vida da famílias residentes na zona rural, sobretudo das mulheres que são peças chaves na gestão hídrica.

No caso de políticas que incluam as mulheres, construir algo concreto parece ser uma realidade longínqua porque ainda vivemos sob uma sociedade patriarcal. O patriarcado é uma posição ideológica usada para justificar o tradicional domínio do homem como mais “forte” social e politicamente. A partir desse pensamento é que o homem é associado ao poder e superioridade. E o meio político ainda é dominado por homens. A inclusão da perspectiva de gênero é crucial para termos políticas mais igualitárias porque todos os stakeholders-homens e mulheres devem ser incluídos nas tomadas de decisões para que as necessidades de ambos sejam atendidas.

Asacom – Em um dos seus artigos você explica que a estrutura formal pode ser impactada a partir das mudanças nas relações de gênero. A partir dessa vivência, como você avalia que nós mulheres podemos nos organizar para incidir sobre essas estruturas?

Islene – O que eu quis dizer foi que as estruturas formais (constituição escrita, leis, políticas, diretrizes e regulamentos legais) proporcionam às mulheres oportunidades de participação na tomada de decisões, mas são as estruturas informais (tradições, normas sociais, crenças religiosas) que regem o acesso e o desempenho reais das mulheres. Desse modo, mudanças que acontecem ao nível da comunidade também podem afetar os papéis de gênero e as necessidades no espaço doméstico.

Igualmente, mudanças nas práticas domésticas podem também influenciar a representação feminina na comunidade. O que as mulheres podem fazer para incidir nas estruturas informais, por exemplo, é unirem-se e partilharem impressões sobre a importância da mulher no contexto em nível comunitário. Porque eu também percebi que, devido aos papéis de gênero, as mulheres ainda não valorizam-se como peças fundamentais das políticas públicas ou são reticentes a falarem disto. Algumas ainda desconhecem que o seu conhecimento e militância em prol das causas femininas podem fazer toda a diferença.

É essencial a capacitação e também falarem sobre as suas necessidades e tentar encontrar soluções entre si para lutarem por uma causa, para a melhoria; e contarem com a sociedade civil organizada como base dessa luta para criar mais políticas adequadas para a realidade local e descentralizar a tomada de decisões do governo central.

Asacom – Todos sabemos a diferença entre homens e mulheres com relação às questões salariais e até mesmo na pesquisa, como você mesma chega a comentar em um dos artigos. Como a academia pode contribuir para minimizar essas diferenças em tempos de conservadorismo como o que estamos vivendo no mundo?

Islene – A academia usa a informação como a sua principal arma. Por meio dos artigos acadêmicos, teses e participações em conferências, por exemplo, pode-se espalhar a informação, denunciar realidades que normalmente nem os jornais publicam tão frequentemente, e também colaborar com recomendações para políticas públicas e trazer evidências para avaliar e aprimorar políticas. O que eu sempre penso quando faço um trabalho é que a minha missão é produzir uma pesquisa que não fique trancada numa gaveta ou esquecida no repositório da faculdade. Eu busco contribuir com uma causa e disseminar informação. Acho que esta é a mais importante missão de um acadêmico.

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