Mergulhador em vista ao ferry-boat Agenor Gordilho, após um ano de seu afundamento na Baía de Todos os Santos, em Salvador, Bahia. Foto Roberto Costa Pinto

  Por Adriana Pimentel e Marília Camelo

Fortaleza – CE / Recife – PE / Salvador – BA. Recifes são estruturas naturais riquíssimas em biodiversidade. Algumas experiências no mundo vêm tentando recriar esses ambientes. No Brasil, isso começa a preocupar a comunidade acadêmica pelos riscos que podem trazer para a própria vida submarina. Pois ainda carece de pesquisas, monitoramento e fiscalização. Esta reportagem mergulha neste assunto que divide a opinião científica sobre riscos e benefícios, a partir do litoral de três estados nordestinos: Bahia, Ceará e Pernambuco.

Desde quando o ser humano criou a navegação são incontáveis os naufrágios que ocorreram nos mares ao redor do mundo. Lendas, pirataria e guerras aguçam o imaginário popular e inspiram produções cinematográficas, como “Titanic” e “Piratas do Caribe”. Esses cenários também podem servir de suporte para a vida marinha, tornando-se recifes artificiais.

Entre os recifes naturais, ricos em biodiversidade marinha, o mais famoso é a Grande Barreira de Coral, na Austrália, retratado na animação “Procurando Nemo”. No Brasil, os mais conhecidos são Abrolhos, na Bahia; e Fernando de Noronha, em Pernambuco.

“O recife artificial é uma estrutura rígida, dura, que é colocada no fundo do mar por ação do homem, podendo ser navios, aviões, tanques de guerra, pneus, entre outros objetos, ou mesmo construções feitas no fundo do mar”, explica Marcelo Soares, professor-doutor do Instituto de Ciências do Mar (Labomar) da Universidade Federal do Ceará (UFC).

Está gostando deste conteúdo? Apoie a Eco Nordeste e fortaleça o jornalismo de soluções, independente e colaborativo!

Os afundamentos de navios para a criação de recifes artificiais (RAS) ganhou destaque nos últimos anos no Brasil, principalmente com o intuito de incrementar o turismo subaquático. Os RAS têm como principal objetivo recriar ambientes similares aos recifes naturais, com a formação de corais, esponjas, plânctons, ou seja, fauna e flora da biota marinha.

Mas, alguns desafios emergem dessa iniciativa. Um deles é entender se os RAS atraem ou produzem vida marinha, uma questão sobre a qual se debruçam pesquisadores e gestores ambientais que analisam os afundamentos de navios, entre outras estruturas, como recifes artificiais.

O navio Mara Hope encalhou acidentalmente na costa de Fortaleza e hoje é um dos cartões-postais da cidade. Foto Marília Camelo

“Ninguém discorda que os peixes são encontrados junto a navios afundados propositalmente ou acidentalmente. Porém, se os peixes foram simplesmente atraídos de outras áreas, como recifes de corais, para os navios, isso não é considerado benéfico para as populações, uma vez que pode facilitar um aumento das capturas a partir das pescarias. Por outro lado, se os afundamentos produzirem peixes, será benéfico, pode contribuir para um aumento das populações. Porém, os resultados recentes têm mostrado que essa produção é rara”, ressalta Soares.

Estudo de localização

Mesmo que a instalação dessas estruturas se justifique, antes da implantação de um recife artificial, seria necessário um estudo criterioso para a escolha do local. A princípio, existem três tipos de ambientes marinhos que devem ser considerados na hora da escolha para evitar a ampliação de riscos de danos ambientais ou gerar impactos positivos.

Segundo informações do professor Soares, o local menos indicado, e que recebe mais críticas, é próximo a recifes naturais, ricos em biodiversidade marinha. Já para áreas degradadas, a iniciativa é vista como positiva, pelo potencial de recuperar locais impactados, por exemplo, pela pesca predatória, turismo excessivo, obras ou mesmo ação da natureza. A outra alternativa, mais utilizada, é em locais onde só tem areia, considerados desertos no fundo do mar.

Depois que o local é predeterminado, é preciso comprovar que é adequado para receber o recife artificial. Para isso, entra em ação uma empresa de serviço subaquático que deve fazer um estudo geológico aprofundado que inclui a análise granulométrica do solo, da distribuição e das dimensões dos grãos, para ver se não tem partículas que podem formar um recife de coral, afirma Fernando Clark, engenheiro responsável por estudos técnicos para afundamento controlado de recifes artificiais.

“Esse tipo de trabalho é realizado por uma empresa de mergulho comercial. Nenhuma empresa de mergulho recreativo, de contemplação pode fazer serviço subaquático. São usados equipamentos específicos para estudar a morfologia da região, se ela é adequada para receber um recife artificial”, explica.

“Atualmente, os afundamentos podem ser propostos por qualquer órgão, federal, estadual ou municipal, que abre uma licitação para a implementação do projeto”, declara Clark. Nos últimos anos, até 2020, os projetos de afundamentos assistidos de navios para RAS vinham crescendo no Brasil, com experiências que se destacavam no Nordeste. Em Salvador, foram os afundamentos mais recentes, de dois navios, em 2020. Em Recife, considerada a capital dos naufrágios, foram 16, entre o fim da década de 1990 e 2019.

Baía de Todos os Santos

A Baía de Todos os Santos, com naufrágios históricos, ganhou novos afundamentos há pouco mais de um ano. Foto Marília Camelo

Kirimurê era como os indígenas denominavam a Baía de Todos os Santos (BTS), que acaba de completar 520 anos. A maior baía do País e a segunda maior do mundo, no período colonial, era um importante porto de onde saia açúcar do Brasil para as grandes cidades da Europa. Ainda hoje tem um papel cultural, socioeconômico e ambiental importante para o Estado. Há pouco mais de um ano, suas águas receberam o ferry-boat Agenor Gordilho e o rebocador Vega, dois grandes navios que foram afundados para tornarem-se recifes artificiais.

O projeto teve início cinco anos antes do afundamento, realizado em novembro de 2020. Antes de as embarcações submergirem, o primeiro ponto a ser pensado e estudado foi o local dentro da Baía onde afundar esses navios.

“Não pode ser uma Área de Proteção Ambiental (APA), uma área que tenha risco muito grande à biodiversidade local, uma área que vá aumentar o impacto com afundamento de navio. Por outro lado, precisa ser um local economicamente viável, onde as operadoras consigam chegar facilmente para promover os mergulhos. E que todos os possíveis questionamentos sejam respondidos antes de procurar um navio ou qualquer objeto que seja para afundar”, afirma Igor Carneiro, presidente da Associação de Mergulhadores da Bahia.

Para isso, o navio deve passar por um processo de limpeza e remoção de materiais que tenham potencial de poluir, uma forma de minimizar os riscos de contaminação ambiental que essa embarcação possa gerar depois de afundada. “O motor é retirado por causa dos resquícios de óleo, também todos os canos por onde passava óleo, o tanque, o isolamento térmico, amianto, objetos de plásticos, janelas, fios, luminárias, lâmpada, alguns objetos de banheiros, só fica a parte de ferro e cerâmica”, detalha.

Também são feitas aberturas nos compartimentos para os mergulhadores entrarem e saírem sem dificuldade e nem riscos, assim como para a fauna marinha circular livremente. “É todo um processo”, destaca Carneiro.

A Marinha do Brasil e o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema) foram os principais órgãos oficiais que acompanharam o processo de preparação das embarcações, desde a retirada de materiais até onde eles eram descartados. “A Marinha do Brasil, obviamente, trata da segurança do tráfego aquaviário. Mas, nesse processo, eles trataram também da segurança ambiental, em conjunto com o Inema”, afirma Carneiro.

Mergulhadores vistoriam o Ferry-Boat Agenor Gordilho, na Baía de Todos os Santos, em Salvador, um dia após a operação de afundamento. Fotos Roberto Costa Pinto

A Marinha, Inema, Patrimônio e Agência Estadual de Regulação de Serviços Públicos de Energia, Transportes e Comunicações da Bahia (Agerba) colaboram com a Secretaria de Turismo do Estado da Bahia (Setur-BA) na execução do projeto, que afundou o Agenor Gordilho e o Vega, ação que tinha como meta incrementar o turismo na Baía de Todos os Santos.

A operação do naufrágio controlado foi parte do Prodetur Nacional Bahia, programa de valorização do turismo náutico, executado pela Setur com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O projeto de requalificação em torno da Baía é de U$ 76 milhões.

A iniciativa inspira o planejamento de novos afundamentos assistidos no País. “Isso realmente chamou a atenção de outros Estados que já indicaram interesse em realizar projetos similares, inclusive com outro tipo de estrutura”, revela Clark.

Ganhos são questionados

Por outro lado, valorizar as riquezas históricas que a Baía de Todos os Santos possui e analisar os ganhos econômicos reais no setor turístico a partir dos afundamentos são algumas das críticas que Zé Pescador, diretor-presidente da Organização socioambientalista PRÓ-MAR, faz à criação dos recifes artificiais na região.

“A Baía de Todos os Santos já tem naufrágios naturais e históricos. Ela é muito rica nesse tipo de arqueologia. Tem também sítios naturais belíssimos. Não é um lugar carente para o turismo. Vai trazer algum tipo de incremento a mais para o mergulho recreativo? Seria até interessante as operadoras de mergulho medirem o movimento antes e depois. Acredito que não vai ter nenhum tipo de mudança porque tem um ferry boat afundado próximo à costa de Salvador”, questiona.

Visita ao ferry-boat Agenor Gordilho, afundado na Baía de Todos os Santos, em Salvador, um ano após a ação. Fotos Roberto Costa Pinto

Risco de o fundo do mar virar um lixão

Quando a vida útil de uma embarcação chega ao fim, ela se retira de suas atividades. Mas, para os proprietários ou responsáveis, a partir desse ponto, nascem problemas relacionados com a destinação, processo conhecido como descomissionamento, ou seja, a ação de desmantelar ou de desativar alguma coisa. “Muitas empresas que fazem atividades náuticas, de transporte, a própria Marinha têm embarcações que passam a dar prejuízo”, explica Múcio Banja, doutor em Oceanografia, pós-doutor em Ecologia e professor da Universidade Estadual de Pernambuco (UPE).

“O que vemos é um bom negócio para as empresas que não estão tendo responsabilidade com a destinação final das suas embarcações, que poderiam ir para siderúrgicas. O ferro e o aço são materiais que podem ser reaproveitados, reciclados. Vemos essa coisa de afundar navio com muita preocupação porque acaba virando moda e o fundo do mar, lixeira”, avalia Zé Pescador.

O Professor Banja reforça essa preocupação: “Qual é o nosso grande medo? Uma facilitação. Nós passamos um hiato de mais de um ano, quase dois anos sem nenhuma normatização de afundamento. O medo era que, de repente, colocassem um monte de coisas que não serviam mais no mar, como se fosse um depósito”.

A capital dos naufrágios

A capital de Pernambuco, Recife, teve seu nome inspirado nos recifes de arenitos, também conhecidos como arrecifes. É também considerada a “Capital Brasileira dos Naufrágios” porque a plataforma continental pernambucana conta com 104 naufrágios, a maioria de forma acidental. Mas 16 deles foram afundamentos assistidos dentro de áreas estratégicas de conservação ambiental e exploração do ecoturismo de mergulho, que deram origem ao Parque dos Naufrágios Artificiais.

“Pernambuco tem água limpa, o que ajuda a desenvolver muito o turismo. Já os naufrágios são um show à parte. Com rica vida marinha, Recife, para mim e vários mergulhadores que eu conheço, é o melhor lugar de mergulho do Brasil”, ressalta Clark.

Tubarão-lixa, espécie muito comum em recifes artificias, passeia pelo Servermar, uma das primeiras embarcações do Parque dos Naufrágios de Recife, PE. Foto Múcio Banja

Entre os naufrágios por acidentes, o mais conhecido é resultado da colisão entre o Vapor Pirapama, em 1887, contra o Vapor Bahia, que afundou e levou  muitas vidas. O Pirapama seguiu viagem. O acidente resultou em uma lenda urbana, segunda a qual a disputa entre os comandantes das embarcações pelo coração de uma mulher teria sido o motivo do acidente, algo que nunca ficou comprovado, mas que segue até hoje no imaginário popular.

“O Pirapama, depois da colisão sofreu uma série de danos, foi consertado, mas o casco nunca se recuperou de forma eficiente. Segundo dados históricos, em torno de 1889, a embarcação teria sido descartada à frente da cidade do Recife por não ter onde guardar essa embarcação que era grande e transportava materiais no Nordeste do Brasil. Se nós considerarmos que foi um descarte, seria talvez o primeiro naufrágio programado aqui”, teoriza Banja.

Quase cem anos após esse naufrágio, tiveram início os afundamentos assistidos na costa de Pernambuco, mais precisamente em 1998, por iniciativa de um empresário do Estado, que afundou o primeiro rebocador, o Marte.

Entre os afundamentos assistidos que deram origem ao Parque dos Naufrágios Artificiais há o Gonçalo Coelho, em 1999; e alguns anos depois, três embarcações ao mesmo tempo: o Minuano, o Servemar X e o Lupus, em 2002. Em 2004 teve o Servemar; e em 2006 mais três rebocadores: Taurus,  Saveiros e Mercurius. Teve o Walsa em 2009; e uma nova iniciativa afundou quatro embarcações ao mesmo tempo: Virgo, São José, Phoenix e o Bellatrix, em 2017. Os últimos afundamentos para a criação de recife artificial na região foram o Natureza e o RioBaldo, em  2019.

“Quando você mergulha nos naufrágios do Parque, eles são realmente verdadeiros oásis repletos de vida marinha, tartaruga, tubarão, peixes pequenos, peixes grandes, raias, algo diferenciado”, ressalta Clark.

 

Mergulhe nas curiosidades sobre corais, afundamentos e naufrágios na costa do Nordeste. Clique aqui e navegue nos webstories deste especial!

 

Faltam leis e ações em defesa do mar

Dentro deste cenário dos afundamentos assistidos, alguns questionamentos surgem em relação à fiscalização, autorização e monitoramento. Para nos contextualizar um pouco sobre o tema, ouvimos o professor Múcio Banja, biólogo que tem uma larga experiência, doutorado em Oceanografia Biológica e pós-doutorado em Ecologia, além de ter participado em alguns dos afundamentos citados.

“Confesso que, quando participei dos afundamentos das embarcações, de 2002 a 2006, nós tivemos muitas discussões e muitas dificuldades”. Ele conta que, depois de peregrinar por diversos órgãos ambientais das três esferas, sem respostas adequadas, emitiu  um termo de responsabilidade e afundou.

Na mesma época. Mas depois desses afundamentos, teve início a formatação de instrução normativa, pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA), lançada ainda em 2006. A Instrução Normativa Nº 125 (IN125) foi a primeira normatização a estabelecer um conjunto de ações para o afundamento de embarcação do ponto de vista da Oceanografia Química, Física, Geologia e Biologia, fora vários outros procedimentos legais jurídicos que precisavam ser estabelecidos por uma empresa de afundamento.

“Em 2009, saiu a Instrução Normativa Nº 22 para normatizar o afundamento de recifes artificiais e que, na prática, afrouxava a instrução normativa Nº 125. Em 2019, a IN 17 simplesmente revogou a IN 22 e nós passamos de 2019 até este ano sem nenhum tipo de regimento que pudesse normatizar um afundamento”, explica.

Uma preocupação, principalmente para a comunidade acadêmica, foi justamente essa brecha legal, que coincidiu com a propaganda do Governo Federal, a partir do Ministério do Turismo, da intenção de afundar, ao longo da Costa Brasileira, quase 300 embarcações. Mas, o projeto não conseguiu apoio suficiente e tampouco leis que garantissem sua realização.

“Neste contexto, no fim de 2020, saiu a Instrução Normativa Número 28, que estabelece um conjunto de ações que normatizam os afundamentos. Existem situações na normativa preocupantes? Existem! Entre elas, uma discussão muito interessante, muito controversa sobre plataformas de petróleo que fixadas em determinados locais  durante vários anos, que já teriam criado ali um ambiente marinho de fauna e flora, então poderiam ser afundadas e continuarem se mantendo como recifes artificiais. Pela IN 28, isso não é possível hoje. Se terminar o uso de uma plataforma continental, ela precisa ser trazida para o continente e ser descomissionada”, ressalta Banja.

E pior: “não está exatamente claro se a autorização é do Governo Federal ou das agências estaduais ambientais, uma discussão do campo jurídico. Mas, eu acho que as licenças vão ter que seguir um padrão e hoje o que se estabelece como padrão é a Resolução CONAMA 237 de 1997”, afirma.

“Apesar de o Brasil não ter nenhuma normativa sobre o tema, o processo para a realização dos afundamentos é bem complexo e exige o cumprimento de uma série de normas internacionais (Convenções de Londres – MARPOL 73/78 e a convenção de Hong Kong – 2009), além de seguir as Normas da Marinha do Brasil. Há também a necessidade de se cumprir as exigências de normas locais definidas pelos estados e as peculiaridades das áreas escolhidas”,  relata Carneiro.

Coral-sol desacelera novos afundamentos

Além das incertezas legais, uma série de acontecimentos negativos, como o derramamento de óleo no litoral nordestino, o aparecimento misterioso das caixas de borrachas, a poluição por plástico; e o próprio cenário político com eleições presidenciais no ano que vem, pesam na hora de tomar decisões sobre novos afundamentos assistidos.

Uma delas foi a chegada do coral-sol, que aproveita os RAS como nova morada. Coincidência ou não, juntos, eles ajudam a desacelerar a realização de novos projetos para a criação de recifes artificiais no momento. Segundo pesquisadores, recifes artificiais são locais que favorecem o desenvolvimento do coral-sol, espécie do gênero Tubastraea, que tem origem no Oceano Indo-Pacífico e que chegou ao Brasil há muitos anos, pelas plataformas de petróleo e nos cascos dos navios de rotas internacionais.

O coral-sol é uma ameaça as espécies nativas devido ao seu rápido desenvolvimento e ausência de predadores. Foto Juliana da Costa Gomes

A falta de predadores e o rápido desenvolvimento dele representam uma grande ameaça às nossas espécies nativas. “Quem chega de fora, chega com uma velocidade maior e comendo tudo, e vai naturalmente substituindo aquelas espécies nativas. Se uma espécie nativa é substituída, quebra uma cadeia de equilíbrio de sustentabilidade do sistema”, alerta Banja.

Como resultado do trabalho do comitê de avaliação permanente sobre o coral-sol, o governo de Pernambuco, em março deste ano, assinou o Decreto Nº 52 351 que, no capítulo II, Art.3º, determina a proibição de instalação de recifes artificiais. “Pelo menos um estado está resolvendo, mas, é um estado de 200 km de linha de costa que ao lado tem estados contaminados como Alagoas, Sergipe, Bahia, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará. Um estado só não vai conseguir resolver esse problema aqui no Nordeste do Brasil”, ressalta Banja.

Carros velhos como atratores

Com suas dunas, falésias e praias famosas internacionalmente, como Canoa Quebrada e Jericoacoara, o litoral do Ceará tem 573 quilômetros de extensão, sendo o sétimo maior do País. Sua área marinha, de 279 mil quilômetros quadrados, se comparada com a terrestre, de 179 mil quilômetros quadrados, é 60% maior. Essa grandeza também se reflete no tamanho dos problemas que representam gerenciar, fiscalizar e proteger o ambiente marinho cearense.

Para Marcelo Soares, professor do Labomar / UFC, “no geral, a fiscalização é muito precária e ainda há um problema de atribuição, de competência na legislação brasileira. Não se sabe muito bem, dependendo do caso, se a competência é da Marinha do Brasil, do Município, do Estado ou de outra esfera do Governo Federal. O ideal é que haja uma atuação conjunta entre esses entes na forma de forças-tarefas”, sugere.

Curiosos e migratórios, os peixes se atraem por estruturas diferentes que encontram em suas rotas. Desde a antiguidade, os povos originários já se aproveitavam dessa característica e construíam atratores com folhas e troncos de árvores para facilitar a pesca. Com o passar do tempo e o avanço das tecnologias, hoje pescadores utilizam o Sistema de Posicionamento Global (GPS) para encontrar os pontos que criam no mar com os mais variados tipos de materiais. Mas essas ações necessitam de monitoramento, principalmente em relação à poluição ambiental e à pesca predatória.

A lagosta, da qual o Ceará já foi um grande exportador, hoje anda escassa. A facilidade para capturá-las, devido à criação de ambientes artificiais, é um fator agravante da “sobrepesca” ou pesca predatória, quando uma espécie é capturada além da sua capacidade natural de reprodução. Além disso, este tipo de iniciativa também não é recomendada pelo grande risco de contaminação devido ao material utilizado na fabricação desses atratores, como tambores de metal, originalmente utilizados para armazenamento de produtos químicos ou óleos.

“Eles amassam no meio, cortam as tampas e colocam deitados no fundo do mar para criar esse ambiente. Teve um período em que nossa lagosta não foi aceita no mercado estadunidense. Foi proibida a comercialização lá porque as lagostas estavam contaminadas”, lembra o pesquisador Marcus Davis, que tem 20 anos de experiência em mergulho, principalmente para estudos arqueológicos.

Já para a pesca de peixes, os pescadores querem grandes estruturas, onde a cadeia alimentar das espécies maiores possa se formar a partir das algas, esponjas, peixes pequenos e outros seres que crescem nesses atratores afundados. E é neste contexto que os riscos de agressões ao ecossistema marinho aumentam.

Carcaça de carro e pneus, utilizados como atratores de peixes, na Praia de Ponta Grossa, em Icapuí, Litoral Leste do Ceará. Foto Marcus Davis

São utilizados materiais que não têm mais vida útil, como geladeira, fogão, caixa de ar-condicionado e até carro velho. Comprados em sucatas, é retirado tudo de dentro e usada só a carcaça. “Fazem isso com regularidade. Às vezes, a gente vai caminhar e vê um monte de carro velho na beira de praias como Prainha do Canto Verde, Cumbuco, Taíba, Pecém, Icapuí. Estão ali para serem afundados em algum lugar que o pescador vai marcar no GPS e só ele vai saber”, denuncia Davis.

Fontes oficiais não respondem

Navegamos por águas turbulentas em busca de informações sobre fiscalização e monitoramento dos recifes artificiais no Nordeste e no Brasil. Nossa viagem começou dois meses antes dessa publicação. Procuramos as assessorias de comunicação do Ministério do Meio Ambiente (MMA), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e não obtivemos resposta. Depois de várias tentativas sem sucesso, tentamos a Lei de Acesso à Informação (LAI).

Em resposta à nossa solicitação, o MMA nos informou que “a Secretaria de Áreas Protegidas e Ecoturismo do Ministério do Meio Ambiente (SAPE/MMA) solicitou o encaminhamento do presente Pedido de Acesso à Informação ao Ministério do Turismo por pertinência temática”. Seguiu: “Conforme tratativas entre o MMA e o Ministério do Turismo, decidiu-se que o apoio ao planejamento e atuação integrada às atividades náuticas e turísticas, incluindo o desenvolvimento do Plano Nacional de Recifes Artificiais, será realizado pelo Ministério do Turismo”. E concluiu: “informo que até o momento este Ministério não realizou nenhuma ação de afundamento de estruturas no mar com o intuito da criação de recifes artificiais, portanto não há dados sobre fiscalização e acompanhamento e monitoramento ambiental”.

Já o Ibama nos comunicou: “cabe esclarecer que a IN Ibama Nº 28, de 24 de dezembro de 2020, estabelece procedimentos a serem observados no licenciamento ambiental para instalação de recifes artificiais, no âmbito das competências atribuídas à União, e se aplica aos procedimentos de licenciamento ambiental para instalação de recifes artificiais no Mar Territorial, Zona Econômica Exclusiva e Unidades de Conservação instituídas pela União (exceto APAs) e demais situações que venham a atrair a competência para a União licenciar. Orienta-se que seja realizada consulta aos órgãos de meio ambiente estaduais quanto à aquisição de dados de fiscalização e acompanhamento dos procedimentos, visto que não cabe ao Ibama o licenciamento ambiental de recifes artificiais localizados em águas interiores, como baías”

Também procuramos a assessoria de comunicação da Secretaria do Meio Ambiente (Sema), Inema e do Comando do 2° Distrito Naval-BA. Este nos informou que não existe monitoramento da Marinha depois do afundamento, somente em caso de denúncia. A Sema e o Inema não responderam. E até o fechamento desta reportagem, seguimos sem respostas sobre quem autoriza, fiscaliza e/ou monitora o afundamento de estruturas para a criação de recifes artificiais e, principalmente, se ocorrer algum acidente em decorrência dessa iniciativa, quem será responsabilizado? E por quem?

“Muitos pesquisadores avaliam que os naufrágios artificiais estampam claramente uma privatização dos lucros e socialização dos prejuízos futuros”

Marcelo Soares

“O rigor é extremamente necessário e o Ibama deve zelar por isso. Afundamentos realizados sem planejamento adequado e sem o envolvimento de múltiplos atores, como comunidades de pescadores, gestores e pesquisadores, infelizmente tendem a trazer prejuízos socioambientais para o litoral brasileiro, como a poluição química. Muitos pesquisadores avaliam que os naufrágios artificiais estampam claramente uma privatização dos lucros e socialização dos prejuízos futuros”, afirma o professor Soares.

Os nossos mares e sua fauna e flora pagam o preço dessa falta de fiscalização e ações conjuntas de monitoramento, fiscalização e conservação. Durante o trabalho de produção desta reportagem, encontramos vários relatos de agressões ao ecossistema marinho nas quais os responsáveis não só não respondem pelos crimes cometidos como navegam livremente na impunidade. A fiscalização das Capitanias dos Portos, por exemplo, se resumem às documentações para navegação. Se tudo está regularizado, a pessoa pode seguir tranquilamente. Mesmo que leve uma carga de materiais potencialmente poluentes.

“Isso é muito ruim. Se não há fiscalização na superfície da água, imagine fiscalizar embaixo d’água.  Um exemplo: em área de naufrágio a gente encontra uma embarcação pequena e  mergulhador com arpão pegando peixe. Isso é crime ambiental, inafiançável. Se a gente fotografa e denuncia na Capitania dos Portos, nada acontece”, reclama Banja.

Esperança na Década Oceânica

A tendência é que nesses próximos 10 anos, a partir de agora que entramos na Década das Nações Unidas da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável (2021-2030), as ações conjuntas em defesa de nosso mar brasileiro possam ganhar força de atuação. “A Década fortalecerá a cooperação internacional necessária para desenvolver pesquisas científicas e tecnologias inovadoras que sejam capazes de conectar a ciência oceânica com as necessidades da sociedade”, diz o acordo.

Para Soares também é uma possibilidade de melhoria do conhecimento sobre o mar. “Embora a gente não note, isso tem um grande impacto social e econômico no nosso Brasil. Só para citar um número interessante, no Brasil o pessoal fala muito na agricultura que é 23% do nosso PIB. Mas, o PIB do mar é 19%, ou seja, é quase o valor da nossa agricultura. A gente precisa cuidar do mar também”, resume.

 

 

Esta reportagem é parte integrante do especial “Entre Recifes”, publicada pela Eco Nordeste, contemplada pelo Edital Conexão Oceano de Comunicação Ambiental, promovido pela Fundação Grupo Boticário.

Coordenação e edição: Marília Camelo

Produção, entrevistas e reportagem: Adriana Pimentel

Fotografia e vídeo: Marília Camelo

Edição de texto: Maristela Crispim

Assistente de produção: Líliam Cunha

Artes: Flávia P. Gurgel

Edição Ecocastnordeste: Isabelli Fernandes

Edição de vídeo: Giovanna Campos

1 Comentário

    Deixe uma resposta

    O seu endereço de e-mail não será publicado.

    Pular para o conteúdo