Recife (PE). A cabeça pensa onde os pés pisam. Hoje, adulto, entendo que a socialização nos morros da Zona Norte do Recife moldaram minha forma de ver o mundo. Até os dez anos de idade, morei no bairro do Alto Santa Terezinha, junto da minha avó. Por ser uma senhora de idade e analfabeta, eu a acompanhava nas atividades cotidianas. Lia os letreiros dos ônibus, as bulas dos remédios, os versículos da Bíblia.
Quando ela morreu, me mudei com meus pais para a comunidade vizinha, na parte alta do bairro de Água Fria. Era uma casa própria. Mas uma casa na beira da encosta. Quando criança, não entendia os perigos desse tipo de moradia. A barreira de mais 30 metros no quintal não me assustava. Pelo contrário. Me lembro de ter ficado encantado com a vista para o mar, a cinco quilômetros de distância. Do alto da laje, via o prédio da Prefeitura e a área portuária, próximo à divisa com Olinda. Durante o verão, observava a chegada de cruzeiros à capital, a passagem do Carnaval.
Meses depois, vinha a estação chuvosa. E tudo mudava. Os morros e córregos tomavam o protagonismo da planície central: barreiras caindo, famílias em abrigos improvisados, pessoas morrendo. Ainda acontece todo ano, no mesmo período. As tragédias na periferia estampam manchetes, mas não mais sob a ótica da violência urbana. A “culpada” é a chuva que, todo ano, na mesma época, vem acima do esperado. Assim ouço dizer na TV.
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Como minha mãe sempre foi de andar muito, e me arrastar junto com ela, conheci a realidade dos altos e córregos ainda na infância. Não éramos os únicos à beira de uma encosta, em uma área de risco. Ainda hoje, enquanto escrevo, é bem simples atestar: basta olhar o panorama do morro pela janela da cozinha. Repetidamente, a chuva forte deixa uma multidão em alerta. Em casa, meu pai é o mais atento. Ele sempre destaca o fato de ter um sono leve, o que possibilitaria uma ação rápida, em caso de deslocamento no solo.
Isso não aconteceu conosco, que moramos aqui há 14 anos. Porém, antes de virmos para cá, minha vizinha da parte de baixo perdeu a mãe nesta mesma encosta, em um deslizamento de terra, em 1996. Ela também perdeu a memória e ficou depressiva por bastante tempo. Hoje está recuperada. Nós conversamos uma vez quando eu ainda era estudante de jornalismo. A tragédia aconteceu após um pé de coco se desprender do solo, arrastando lama sob a sua residência. O pé de coco foi uma novidade para mim. Na época ouvia dizer que era perigoso plantar bananeira. E só. À medida que fui estudando, descobri que árvores de grande porte, de uma maneira geral, oferecem risco. Elas acumulam água no solo, podendo provocar deslizamentos.
As leituras mudaram a minha forma de observar o território. Já adulto, conseguia identificar os erros, nem sempre intencionais, cometidos pela população. Compreendia cada vez mais a importância da educação ambiental. No ano passado, aqui no quintal, nasceu um pé de mamão. E ele começou a crescer muito. Sem pensar duas vezes: fui lá, peguei o machado, e cortei o mamoeiro.
Por conta própria
Falando em não dar sorte ao azar, outro assunto que já virou pauta aqui em casa diz respeito ao esgoto. Nós nunca tivemos tratamento. Isso ainda não existe na região, apesar de ser uma das mais antigas ocupações de morro do Recife. Antes, a água da pia, banheiro e máquina de lavar escoava para o canal, na parte baixa do morro, passando pela barreira. Como a lona plástica vivia rasgada, a água conseguia se infiltrar no solo. Um vizinho, morador do córrego, veio nos alertar do risco. E meu pai tratou de resolver o problema. Chamou uns amigos da comunidade e, juntos, eles instalaram um sistema de canos entre a nossa casa e o canal.
A falta de infraestrutura urbana nunca impediu os moradores de se virarem. Quando é preciso (quase sempre), muitos arregaçam as mangas e os bolsos para melhorar o lugar onde vivem. Arrumam a calçada, o corrimão, a escadaria, a ladeira… e até mesmo a própria barreira. Fazem o que o poder público deveria fazer. Cansei de ver meu pai pendurado no alto da encosta, sem camisa, recolocando cano solto, ou cortando mato alto. Isso sozinho, sem nenhum equipamento de proteção. Ele nunca foi de esperar a Defesa Civil do Recife. E com razão. O órgão demora a atender nossos pedidos, mesmo sabendo da vulnerabilidade e complexidade do lugar.
Uma prova é que, só para capinar e colocar a lona, são necessários seis a oito agentes operacionais. Funcionários terceirizados da Prefeitura que ganham pouco e que também se arriscam. Recentemente, sob reserva de fonte, em um dia de muita chuva, um deles fez um desabafo a mim: “às vezes muitos nem reconhecem o sacrifício que essa equipe faz por vocês (moradores). Posso cair daqui (da encosta) e morrer. Tenho família, e aí? Minha esposa, meu cachorro, sentindo falta de mim…”. Trabalhando na linha de frente, emprestando suas mãos e rostos ao Estado, os agentes não lidam com o orçamento público, tampouco detém poder de decisão. E, independentemente da gestão, estão nas comunidades servindo a população, carregando lonas, arames, piquetes, cordas, marretas e enxadas.
Apesar do medo, apenas por uma vez vivenciamos uma situação de emergência. E nem foi por chuva. Era um domingo de sol quando o fogo, de autoria desconhecida, começou a se alastrar pela barreira, vindo de baixo para cima. Ele subiu até rente às janelas que ficam na parte de trás de casa. Havia fumaça por todos os lados. Respirar estava sufocante. Tivemos que sair.
Ficamos na rua, junto aos vizinhos, ligando para os bombeiros. E rezando para que eles viessem o mais rápido possível. Deu certo. A estrutura das casas não foi comprometida, porém o fogo acabou com a vegetação natural da encosta, tornando ela ainda mais perigosa. Isso foi há uns sete anos. Desde então, sem vegetação, a barreira precisa ser protegida por uma lona plástica gigante. E é aí que mora o problema.
A grosso modo, o Recife, que fica na Zona da Mata nordestina, é uma cidade que tem duas estações: chuva constante durante três a seis meses do ano, e uma radiação solar intensa nos meses restantes. Além disso, sem outros edifícios ou morros maiores na frente, a brisa marítima do Atlântico Sul vem reto na parte de trás de casa. Todos esses elementos climáticos aceleram o desgaste da lona. Ela fica intacta por pouco tempo.
Só no ano de 2022, aqui em casa, precisou ser trocada seis vezes. Passamos 21 dias com o solo exposto entre os meses de novembro e dezembro. E choveu forte nesse período. Até postagem no Instagram eu cheguei a fazer. Liguei para a regional norte da Defesa Civil por diversas vezes, mas o telefone não funcionava. Fui presencialmente até a sede, mas eles não me deram previsão.
Minha irmã, uma pessoa pragmática, disse que eu deveria ter me apresentado como jornalista; chegar já fazendo barulho com uma câmera na mão. Dar “carteirada” vai de encontro ao que acredito, mas eu entendi seu conselho. É sobre lutar pela sobrevivência com todas as armas possíveis. Sabemos que um deslizamento levaria a interdição da área. Basta acontecer uma vez. E ninguém quer perder seu lugar, ou até coisa pior, de uma hora para outra.
Urbanização excludente
A urbanização excludente nos leva a brigar, literalmente, para conseguir o mínimo, como uma lona de plástico para impermeabilizar o solo. “Chama a imprensa”, “coloca na internet”, “procura um vereador”. Na periferia, sempre tem alguém para aconselhar. Da mesma forma, também existe o oposto: “por que fulaninho foi construir a casa ali?”; “diz que não tem dinheiro para ajeitar a casa, mas vive na farra”; “também, quem mandou fazer tanto filho?”.
Ano retrasado, a família que mora na casa abaixo da nossa, no córrego, aumentou. Mesmo inseridos em uma área de alto risco, ou grau 3, começaram a levantar um segundo andar. Quando eu abria a janela de manhã, lá estava meu vizinho: um homem negro, sob o sol, geralmente sem camisa, misturando cimento e areia com uma pá. Eu o via trabalhar quase todos os dias.
A pandemia me obrigou a passar um tempo em casa que eu jamais passara. Pela primeira vez, desde a infância, não estudava nem trabalhava fora da comunidade. E isso me reaproximou do lugar onde cresci. Para aliviar a ansiedade, com frequência, saía de casa para caminhar pelos altos e córregos vizinhos. Mascarado, só em um ano, subi e desci ladeiras e escadarias mais de quinhentas vezes. Definitivamente, não éramos os únicos a viver sob o risco iminente. Esse “estar próximo” fez nascer um sentimento de pertencimento que até então eu não tinha. Fez nascer raiva também.
Como cidadão, pude entender, de forma ampla, o drama que é viver numa capital campeã em desigualdade. Não é uma ou outra família, é uma multidão. Segundo este plano lançado em 2017, antes da pandemia, o Recife tem um déficit habitacional de mais de 70 mil moradias. Estima-se que mais de 200 mil pessoas morem em áreas de risco.
Um dia desses, funcionários da Prefeitura estiveram na nossa barreira, fardados, realizando estudos topográficos. Era outubro de 2022, o mês no qual minha mãe faz aniversário. Só de ver aqueles homens trabalhando, ela já ficou esperançosa. Me lembro de ela ter dito que um muro de arrimo seria o melhor presente que ela poderia ganhar. A gente não investe na infraestrutura da nossa casa muito devido à ausência de uma proteção definitiva. Tudo pode acabar de repente. Mas ninguém fica pensando nisso, do contrário é impossível viver.
Às vezes, quando preciso me concentrar para escrever, levo o notebook para a parte de trás de casa, próximo da encosta. É, ao mesmo tempo, o lugar mais silencioso e perigoso. É tranquilo quando não tem nuvens carregadas no céu. Mas basta o sol se esconder para meu pai aparecer e me dirigir a palavra alertando: “Sai daí, tá chovendo”. Ele diz como se eu não soubesse disso.
Meu pai trabalha informalmente ao lado de casa e está presente com frequência. No período mais crítico das chuvas, nem ele, nem eu (que geralmente faço home office), trabalhamos direito. Em maio e junho do ano passado, era impossível não acompanhar a tragédia anunciada que matou 133 pessoas no Estado de Pernambuco, 50 no Recife, quase a totalidade por deslizamentos de terra. Fora as milhares de famílias desabrigadas.
Muitas notícias me deixaram emocionalmente instável, mas saber que a gestão municipal, nos últimos 10 anos, utilizou apenas 17% do orçamento disponível para áreas de risco foi a gota d´água. A serviço, eu pouco fiquei em casa nos dias de maior precipitação, mas estar distante era pior do que estar perto. A preocupação aumenta especialmente de madrugada quando as pessoas estão dormindo ou tentando dormir.
Em um ciclo sem fim, comecei 2023 solicitando à Defesa Civil do Recife a reposição de lona plástica. Mas, aqui em casa, a primeira grande pauta do ano foram os ataques terroristas em Brasília. Era um domingo à tarde, e estávamos todos atentos à TV vendo aquelas cenas horríveis. Quando o atual presidente começou a falar, me lembro de ter desviado a atenção para um colete laranja com detalhes em azul, vestuário tão familiar a quem já viveu “invernos” nas periferias deste País.
O que é prioridade?
Na ocasião, Lula e ministros visitavam Araraquara, no interior de São Paulo, que acabara de decretar estado de emergência devido aos danos causados pelas chuvas concentradas. Acontecera um desastre. Mas ele precisou mudar o discurso a partir do momento em que tomou ciência dos ocorridos na Capital Federal. É óbvio que combater o fascismo é prioridade. Ele prova que existe todos os dias, sendo inclusive capaz de pautar o debate público quando bem quiser. Odeio esse extremismo, também, por isso. Ele me força a lutar por uma “democracia” que vira as costas para milhões de brasileiros, porque uma ditadura seria muito pior.
Na Zona Norte empobrecida do Recife, na bacia do Rio Beberibe, novas famílias continuam chegando aos seus morros e córregos, apesar da falta de espaço. A região já tem a maior densidade populacional da cidade. Mas as pessoas não têm para onde ir. Aqui o custo de vida é bem menor. Ainda não tem especulação imobiliária. E ninguém precisa pagar IPTU.
O problema é que, eliminando um ponto de risco neste ano, nascem dois no ano seguinte. Enquanto que nas áreas centrais, com mais infraestrutura, muitos imóveis e terrenos se encontram vazios. Em um país continental, temos mais de 8 milhões de pessoas vivendo em áreas de risco, lutando por terra e moradia dignas. Até hoje, em centros urbanos, nunca vi uma área de risco hidrológico ou geológico que não fosse atravessada por outros riscos. O risco de ser vítima ou de perder alguém para a violência. O risco de adoecer ou de morrer sem a devida assistência. O risco de ficar desempregado e faltar dinheiro para comprar comida. O risco de ir para a escola e voltar mais cedo porque não teve aula.
No dia 12 de março deste ano, no aniversário de 486 anos do Recife, eu estive presente em uma solenidade onde foi dada a ordem de serviço para construção de uma creche prometida desde 2007. O atual prefeito da cidade, João Campos (PSB), secretários e vereadores estiveram presentes. Formou-se um engarrafamento de carros de alto padrão na via de acesso ao córrego, na parte baixa da comunidade. À esquerda do palanque montado, estavam as barreiras, de 20 a 30 metros, cobertas por lonas plásticas. Muitas delas já desgastadas pelo sol.
Aproveitando a ocasião, os moradores cobraram uma proteção definitiva e o prefeito se comprometeu a eliminar aqueles pontos de risco. Quando a solenidade acabou, ouvi uma mulher negra, com uma criança de colo, dizer que iria “invadir” o terreno da creche quando começasse a chover forte. A fala dela me levou a pensar que não existem abrigos públicos, em lugares seguros, para receber as pessoas antes de uma tragédia acontecer. Especialistas dizem que, sendo morador de área de alto risco, é importante sair de casa quando a chuva apertar. Mas sair para onde?
Ninguém sabe. Esse tipo de omissão acontece mesmo depois do aprendizado de 2022. Acontece na primeira cidade do Brasil a reconhecer a emergência climática. Já estamos no período de chuvas intensas (abril até junho), e o plano de contingência municipal, que determina as medidas a serem adotadas, ainda não foi publicado.
‘A dor ensina, mas as pessoas esquecem’
A dor ensina, mas as pessoas esquecem. Nem sempre esse esquecimento é natural, muitas vezes ele é produzido por quem detém o poder e os meios de comunicação. Por isso que, no caminho inverso, tenho me disposto a criar memória, especialmente para pessoas próximas, familiares e vizinhos. Algumas noites antes da solenidade no aniversário do Recife, participei de uma colagem e panfletagem junto ao coletivo Fala Alto, que lembrava o fato de o terreno da creche ter sido abandonado por 13 anos. O projeto só começou a sair depois de muita pressão do coletivo.
Na volta para casa, após subir a escadaria que une o córrego ao alto, parei para conversar em um beco. A pauta era a vulnerabilidade da comunidade em relação às fortes chuvas que se aproximam. Em determinado momento, uma moradora disse que a proteção da sua barreira fora feita após ela conversar com uma autoridade local. Ela, apoiadora declarada do atual partido à frente da Prefeitura, falou com orgulho, mesmo “furando a fila” graças à ajuda de alguém influente.
O Recife tem pontos de risco aos milhares (cerca de 9 mil) e os critérios de quem vai ser beneficiado primeiro por obras definitivas não são transparentes. À margem da “democracia”, ganha primeiro não quem tem maior necessidade, ou seja, locais com risco muito alto (grau 4), e sim quem é menos crítico, quem faz mais barulho, mas, sobretudo, quem conhece gente “mais importante”. O que me deixou preocupado na fala dessa vizinha nem foi a sua “esperteza”, e sim o fato de ela associar o seu direito constitucional a um favor pessoal dado pelo político.
Esse tipo de pensamento é o que eu mais tento combater na minha comunidade, pois ele dá brecha para que políticos, em sua maioria brancos, ricos e de sobrenomes poderosos, se aproveitem da vulnerabilidade do lugar. O morro, um espaço favelizado, reduto histórico de pobres e pretos, vive em crise mesmo antes do agravamento das mudanças climáticas.
Como em toda crise, uma minoria sai ganhando em detrimento de uma maioria. Não conheço um vizinho que não tenha presenciado ou ouvido falar de compra de votos, demagogia e/ou desonestidade intelectual nos altos e córregos da Zona Norte do Recife. É normalizado. Qualquer pessoa atenta consegue notar a cultura de dar pequenas melhorias e inaugurar obras públicas em anos eleitorais. Algo semelhante acontece em relação ao clima. A intensificação das chuvas não é priorizada durante a primavera e o verão, no período de estiagem. Mas sim quando elas já estão praticamente sobre as nossas cabeças.
No dia 22 de março, o Ministério da Ciência e Tecnologia assinou um acordo com o governo de Pernambuco para criação de um sistema de monitoramento de cheias e deslizamentos nos morros. Também no fim de março, a Agência Pernambucana de Águas e Clima (Apac) publicou um informe climatológico onde mostrava que o trimestre abril-maio-junho/2023 deve ter chuva entre normal e acima da média para o período. A previsão é de 337mm só no mês de junho.
Regra para lavas louças e roupas
Aqui em casa, neste intervalo mais crítico, existe a regra de só lavar os pratos e colocar as roupas na máquina depois de estiar. Acontece que a área de serviço fica muito próxima da encosta, e, por segurança, é aconselhável não permanecer por perto. Se o motivo não fosse tão dramático, eu até comemoraria o fato de poder procrastinar trabalhos domésticos sem culpa.
Quando o “inverno” chega, é claro que ser jornalista impacta na atenção que dou às notícias. Mas tenho reparado que as pessoas ao meu redor, família e vizinhos, também ficam mais atentas, especialmente à previsão do tempo que sai nos telejornais locais. Antes de tomar café ou bem na hora do almoço, a gente tem nossos ouvidos ocupados por termos científicos, como Ondas de Leste. Fica sabendo que ela é uma perturbação atmosférica que traz nuvens carregadas, sob influência dos ventos alísios, da costa oeste da África para o leste nordestino.
Um percurso transatlântico que muito se assemelha à história das comunidades da Zona Norte do Recife, nascidas como refúgio após a abolição. O bairro de Água Fria, onde moro, “nasceu” tendo como principal referência histórica um terreiro fundado por uma mulher preta nigeriana chamada Ifatinuké.
Ela, assim como a chuva, veio da costa oeste da África para o leste nordestino. Ao que tudo indica, veio liberta, e ajudou a criar uma comunidade às margens de uma cidade colonial. Ainda hoje, mais de um século depois, os altos e córregos de Água Fria têm uma população negra entre 70% a 80%. Nesses lugares “marginais”, onde os pontos de risco atravessam a paisagem, fica simples entender por que cada vez mais pessoas têm usado o termo racismo climático.
No começo de abril, aqui no Recife, saiu uma notícia boa. Fiquei sabendo que a Prefeitura havia encaminhado um empréstimo de R$ 2 bilhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), sendo R$ 1,5 bilhão destinado para o Projeto ProMorar. Esse projeto tem o objetivo de aumentar a resiliência de áreas vulneráveis da cidade às mudanças no clima, além de promover iniciativas de moradia popular
Estourar um champagne
A notícia por inteiro me causou felicidade. Mas um trecho em especial eu precisei reler para ver se acreditava. Nas palavras do atual prefeito, João Campos (PSB), “todas as encostas do Recife que têm maior grau de risco (3 e 4) serão contempladas” no contexto deste investimento. Logo, a encosta grau 3 aqui de casa também vai ser beneficiada.
Quando repassei a informação para minha mãe, próximo das 22 horas, ela falou: “vamos estourar um champagne”. O que acabou não acontecendo porque eu pedi calma. Ainda não havia motivos para comemorar. Minha irmã, uma pessoa pragmática, saiu do quarto, entrou na conversa, e disse assim: “se essa barreira sair eu escorrego daqui até embaixo”. Achei uma promessa perigosa dada a altura, mas apoio fazer essa loucura após tantos anos de espera.
Outro detalhe que me chamou atenção na notícia foi terem dito que o processo de urbanização será feito com base na escuta e participação popular. Assim, realmente espero que isso aconteça. É difícil não se indignar ao presenciar agentes do poder público subestimando o conhecimento que os moradores detêm sobre suas comunidades. Eles vêm de fora, centralizam as decisões entre si e sequer as expõem. Deixam a gente totalmente no escuro. A gente não sabe, por exemplo, quantos pontos de risco (grau 3 e 4) existem na cidade.
Um dia desses fui saber se já existia algum projeto em relação à barreira aqui de casa. E não encontrei nada via transparência ativa. Tive que recorrer à Lei de Acesso à Informação (LAI), e, ainda assim, recebi uma resposta com poucos detalhes. Disseram que “o projeto de estabilização da encosta está em fase de finalização para posterior licitação e execução da obra”. Prazos não foram dados. Mas percebam: eu só fiquei sabendo da existência do projeto por que fui atrás. Também tem o fato de trabalhar com comunicação. Do contrário, continuaria no escuro a respeito de algo que me afeta. Eu não consigo imaginar mais de 200 mil recifenses, moradores de áreas pobres e vulneráveis, buscando esclarecimentos via LAI.
Quero muito que o projeto ProMorar cumpra o seu objetivo, pois seria uma transformação na proteção da vida e na qualidade de vida da cidade. Para milhares de pessoas, a chuva, enfim, deixaria de ser sinônimo de medo. O mínimo para que possamos viver bem. Mas até o sonho futuro a gente tem o “inverno” de 2023 para enfrentar. Torço para que a tragédia não se repita, e que as nossas planícies, córregos e altos marginais possam ter a oportunidade de criar boas memórias.