Denúncia de comunidade do litoral nordestino contra os impactos de um dos maiores empreendimentos eólicos do País fez com que o Brasil figurasse em estudo internacional sobre os riscos enfrentados pelos defensores dos direitos humanos no contexto da transição global para as energias renováveis. O documento, de 82 páginas, foi lançado nesta semana e traz o caso de conjunto de aerogeradores implantado em 2008 no território quilombola do Cumbe, no município de Aracati, costa Oeste do Ceará.

“Energias renováveis e represálias: defensores em risco na transição para a energia verde no Brasil, Honduras, Moçambique e Filipinas” é o título do relatório, produzido pela ONG sueca SwedWatch. De acordo com o documento, a expansão das renováveis está associada a violações de direitos em várias partes do mundo.
O relatório é baseado em um mapeamento global e revela que defensores dos direitos humanos e do meio ambiente enfrentam sérias ameaças e represálias em países onde os projetos de energia renovável estão sendo rapidamente desenvolvidos. No Brasil, o caso contemplado evidencia os conflitos gerados pela implantação, em 2008, de 67 aerogeradores em uma zona de pesca artesanal utilizada também por quilombolas.
“Para além das preocupações com o impacto ambiental, a perda de meios de subsistência e os litígios sobre o acesso à terra e aos recursos naturais, as entrevistas com a ONG Instituto Terramar e com membros das comunidades afetadas também sugerem que a situação dos defensores foi afetada negativamente”, descreve o documento.
O Instituto Terramar, que colaborou com o relatório global, se dedica desde 1993 à justiça socioambiental na Zona Costeira do Ceará. “O número de defensores incluídos no Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos oriundos da zona costeira tem aumentado nos últimos anos, abrangendo vários setores econômicos, incluindo as empresas de energia eólica”, diz, em nota, a ONG.
De acordo com o Terramar, as disputas territoriais estão se intensificando, “com as empresas de energia eólica utilizando diversas estratégias para enfraquecer a organização comunitária e intensificar as disputas entre as pessoas que vivem lá”.
Histórico
Desde 2008 a comunidade divide a área do quilombo do Cumbe, no município de Aracati, com aerogeradores, tendo dificultado o acesso a áreas tradicionais de pesca. “Mesmo cedendo nosso território para a produção de eletricidade, nós não podemos beneficiar o pescado porque precisamos de equipamentos de refrigeração, mas não temos como pagar a energia elétrica”, relata liderança ouvida pela Eco Nordeste.
O projeto foi implantado sem a realização da consulta prévia, livre e informada, nem de estudo de impacto ambiental junto à comunidade quilombola e de pesca artesanal do Cumbe (Ceará). O empreendimento tem causado danos socioambientais contínuos e violações de direitos humanos, afetando o modo de vida, o território e os vínculos culturais da comunidade.
Para a comunidade quilombola, a chegada do empreendimento eólico aconteceu de surpresa. Não foi feito contato com a comunidade, como seria obrigação tanto dos atores financeiros envolvidos quanto do Estado brasileiro, sobretudo por se tratar de uma comunidade tradicional.
O projeto contou com o financiamento de 50 milhões de dólares pelo NIB (Nordic Investment Bank) e foi co-financiada pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e BNB (Banco do Nordeste do Brasil).
A comunidade, desde o início, manifestou seu posicionamento contrário ao empreendimento e à maneira de apropriação sobre o território. Ao longo do empreendimento, também denunciou o ostensivo trabalho da empresa na cooptação de pessoas do local, o que provocou sua cisão.

A dificuldade de acesso a áreas tradicionais de pesca é uma das questões que mais indignam a comunidade, além da falta de acesso à energia mais barata. “Mesmo cedendo nosso território para a produção de eletricidade, nós não podemos beneficiar o pescado porque precisamos de equipamentos de refrigeração, mas não temos como pagar a energia elétrica”, afirma liderança.
Contexto
Embora a ampliação da energia eólica, solar e hidrelétrica seja essencial para limitar o aquecimento global, esses projetos requerem grandes áreas de terra, que afetam frequentemente comunidades locais, ecossistemas e meios de subsistência e violam garantias e direitos fundamentais de muitas populações.
A publicação faz uma compilação de quatro casos de projetos de energia renovável implantados em países com espaço cívico restrito e onde há fragilidades em termos de proteção e afirmação dos direitos humanos. Nesses locais, os ativistas que denunciam as violações dos projetos frequentemente enfrentam assédio, perseguição legal e, em alguns casos, até mesmo violência mortal.
“Não podemos construir um futuro verde às custas daqueles que são silenciados ou deslocados. A transição para a energia renovável não deve ocorrer à custa dos direitos humanos. Os defensores não são obstáculos – eles são aliados essenciais para garantir que isso seja justo, equitativo e sustentável”, diz Alice Blondel, Diretora da Swedwatch.
A autoria é da Swedwatch com a contribuição do Instituto Terramar, da Red de Abogadas Defensoras de Derechos Humanos e do Jalaur River for the People’s Movement (JRPM).
Abordagem colaborativa
orientada por dados
Para identificar riscos pouco documentados para defensores no setor de energia renovável, a Swedwatch realizou um mapeamento global de áreas de alto risco para defensores com foco na expansão da energia eólica e solar.
A análise combinou dados sobre espaço cívico da CIVICUS, aliança global de organizações e ativistas da sociedade civil, com projeções de expansão da energia renovável do Global Energy Monitor, ONG que cataloga projetos de combustíveis fósseis e energias renováveis em todo o mundo, e TransitionZero, organização sem fins lucrativos que desenvolve ferramentas tecnológicas para projetos de transição energética.
Os impactos e riscos que os defensores podem enfrentar no setor de energia renovável foram ilustrados a partir de entrevistas com defensores e membros de comunidades afetadas em Moçambique, Honduras, Brasil e Filipinas.
Os casos e entrevistados foram identificados em conjunto por quatro das organizações-membro da Swedwatch, incluindo a Sociedade Sueca para a Conservação da Natureza, Diakonia, Afrikagrupperna, e Act Church of Sweden, que também forneceram contribuições para o relatório. Além disso, a organização-membro da Swedwatch, a Solidariedade Suécia-América Latina, também apoia o relatório.
Os exemplos selecionados evidenciam situações representativas do alto risco enfrentado por defensores dos direitos humanos no setor de energia renovável. Nesse sentido, a escolha se deu para contemplar 1) diferentes formas de energia (solar, eólica e hidrelétrica); 2) diferentes regiões geográficas; e 3) diferentes tipos de restrições ao trabalho dos ativistas.
A seleção não se propõe a ser um mapeamento exaustivo, mas uma ilustração de como os defensores podem ser impactados em projetos de energia renovável quando o espaço cívico é restrito desde o início dos empreendimentos e as salvaguardas relacionadas aos defensores são negligenciadas.
Principais apontamentos do relatório da Swedwatch
● Mais da metade da futura capacidade de parques eólicos do mundo e dois terços da capacidade de parques solares estão projetados para serem desenvolvidos em países com espaço cívico restrito
● Vários dos principais países visados por projetos de transição para energia renovável também têm as maiores taxas de assassinatos de defensores: incluindo Brasil e Filipinas para a capacidade prospectiva de parques eólicos, e Brasil, Filipinas, Colômbia e México para a capacidade prospectiva de parques solares
● Estudos de caso de Moçambique, Honduras, Brasil e Filipinas apontam falhas na consulta às partes interessadas, transparência e respeito pelos direitos dos defensores. À medida que a transição ganha velocidade, é necessária uma documentação mais sistemática dos riscos enfrentados pelos defensores
● Empresas e investidores frequentemente falham em integrar completamente a devida diligência em direitos humanos (HRDD) e os riscos ao espaço cívico em suas práticas comerciais, e em integrar os defensores como partes interessadas valiosas
● Os governos devem tomar medidas decisivas para proteger os defensores e manter os padrões internacionais de direitos humanos no setor de energia renovável
Em 2023, o Brasil foi o segundo país com o maior número de mortes de defensores de terra e meio ambiente do mundo (dados da ONG Global Witness) apesar da existência do Programa de Proteção para Pessoas Defensoras de Direitos Humano desde 2004. O Brasil é também um dos países com percentual mais alto de geração de energia a partir de matriz renovável, e vem expandindo projetos de geração a partir das matrizes solar e eólica, com projeção de projetos de novas fontes como energia eólica offshore (marinha) e hidrogênio verde. Todos os documentos oficiais indicam que essa produção de hidrogênio verde projetada será destinada à exportação e não à demanda doméstica.

As escolhas de localização para a instalação de projetos de parques eólicos no Ceará estão concentradas em áreas onde vivem comunidades tradicionais de pesca, extrativistas, quilombolas e indígenas, muitas vezes em situação socioeconômica vulnerável.
O relatório questionou as instituições financeiras sobre os dados levantados pela pesquisa, das quais apenas o NIB e BNDES responderam: o primeiro destacando que seguiu todas os procedimentos de diligência social e ambiental; e o segundo que têm acompanhado as críticas que têm surgido nos últimos anos sobre os projetos de energia renovável, especialmente no nordeste, e que tem promovido discussões internas e externas visando à mitigação desses impactos.
Os casos de Filipinas,
Honduras e Moçambique
Filipinas: Defensores indígenas das comunidades Tumandok foram supostamente ameaçados, assediados e mortos quando a polícia nacional e as forças armadas invadiram suas comunidades após líderes comunitários criticarem o projeto do reservatório hídrico Jalaur River Multipurpose, segundo uma organização da sociedade civil que atua na área. Defensores que relataram sobre o projeto da represa descreveram perseguição, vigilância e “red-tagging” – rotulação de terror pelo governo acusando defensores de serem insurgentes comunistas, criando um ambiente de medo e impunidade.
Moçambique: De acordo com entrevistas no relatório, o planejamento do projeto hidrelétrico Mphanda Nkuwa foi marcado por avaliações de impacto social e ambiental inadequadas, falta de transparência e supressão do engajamento cívico. Os defensores relataram ameaças, violação da liberdade de reunião e um desrespeito geral pelo seu direito de participar dos processos de tomada de decisão.
Honduras: Defensores dos direitos humanos enfrentaram intimidação legal por meio de SLAPPs (Ações Judiciais Estratégicas contra a Participação Pública) por sua crítica ao projeto solar Los Prados, segundo um grupo de advogadas de direitos humanos. Membros da comunidade envolvidos em protestos supostamente foram vigiados e submetidos a ações repressivas por forças de segurança. Os defensores também relataram campanhas de difamação na mídia, restringindo ainda mais sua capacidade de expressar preocupações.
Recomendações da Swedwatch
Na medida em que o mundo corre para cumprir as metas climáticas, uma transição justa deve incluir as vozes daqueles mais afetados por projetos de energia, e os defensores são essenciais para garantir que os projetos de energia renovável respeitem os direitos humanos e o meio ambiente.
“Governos, empresas e instituições financeiras devem trabalhar juntos para garantir que os direitos humanos sejam protegidos e que os defensores possam atuar sem medo de repressão ou violência. Engajar-se com defensores como parceiros valiosos, em vez de adversários, pode ajudar governos e empresas a garantir que os projetos de energia renovável estejam alinhados com as obrigações internacionais de direitos humanos, mitigar conflitos e promover o desenvolvimento sustentável”, diz Jessica Johansson, membro do programa da Swedwatch e autora principal do relatório.
Recomendações para os governos
● Adotar legislação sobre a devida diligência em direitos humanos (HRDD) obrigatória para as empresas e destacar os riscos para os defensores e a consulta significativa com os defensores
● Adotar leis sobre transparência das empresas e acesso à informação
● Estabelecer, fazer cumprir proteções para os defensores, garantir que possam atuar sem medo de retaliação e fornecer remédios legais eficazes para aqueles afetados por violações
Recomendações para empresas e investidores
● Fortalecer seus processos de HRDD com integração de riscos ao espaço cívico e garantia de um engajamento significativo das partes interessadas com os defensores
● Adotar e fazer cumprir uma política de tolerância zero contra retaliações direcionadas a defensores (e comunidades afetadas)
● Tomar as medidas apropriadas quando parceiros comerciais ou terceiros cometerem violações em relação às suas atividades comerciais