A poética sabedoria dos povos originários mostra como a natureza provê e ensina. Esta é mais uma reportagem da série sobre o Nordeste e o Clima, feita durante a Caatinga Climate Week

O tempo passa diferente para o povo árvore-passarinho, como são conhecidos os Xukuru do Ororubá, no agreste pernambucano. Mais precisamente, na Serra do Ororubá, em Pesqueira, onde a tradição é ser fiel aos ancestrais, se aprende desde cedo que a mata é um lugar sagrado e a floresta é quem ensina, no tempo dela. Ao viver a filosofia da dispersão de sementes para restaurar o território, reverenciam o passado e dão vida ao presente e futuro. E foi assim que Jamilly Santos, de 21 anos, descobriu o mundo: “me criei dentro do território, dentro das matas e desde o primeiro dia de vida já pertencia a esse solo sagrado. Temos que cuidar, preservar, porque é dessa preservação que a gente vai garantir o amanhã para as novas gerações”.
Lá na Serra, o coletivo Jupago Kreká promove cuidado à floresta e alimento por meio de agricultura agroecológica e banco de sementes, tudo pautado pelo saber ancestral, de onde emergem os conceitos da didática de árvore e pedagogia de passarinho. Isso se traduz no Ororubá: Urú (pássaro) e Ubá (árvore). Quem conta é a liderança indígena Iran Neves Xukuru: “é a tecnologia da floresta, que se baseia na observação da natureza e é inspirada no beija-flor colibri”, que tira o néctar da flor, preservando-a. O manejo da floresta, explica, é “estar atento ao tempo da natureza”.
Cosmoagricultura e saber ancestral

A agricultura adotada e disseminada pelo coletivo Jupago Kreká se dá pela defesa da terra e pelos “cuidados e encanto-manejo da floresta” No alto da Serra, onde o clima é mais arejado e tem mais disponibilidade de água, há o cultivo de hortaliças, frutas de época e lavoura de sequeiro, com milho, diferentes tipos de feijão e macaxeira, por exemplo.
A produção é diversificada e adaptada a cada microclima existente na Serra do Ororubá. Enquanto no Vale do Ipojuca a agricultura irrigada pelo rio tem foco na cultura de sequeiro e criação de caprinos, na zona semiárida tem os sistemas produtivos e criação bovina. O roçado por lá, defende Iran, deve ser entendido como “um meio para a floresta, e nunca um fim.”
“Eu sou muito crítico com relação às tecnologias sociais que prevalecem sem considerar as tecnologias ancestrais. A terra é sagrada, o solo é sagrado, a agricultura é um ato de religião, de religação, então, às vezes, a gente trabalha a terra-produção e não discute a garantia de vida para aquelas pessoas que querem trabalhar a terra, a relação com a terra, o cuidar da terra”, destaca.
Resistência e memória

Falar de saberes, fazeres e resistência dos Xukuru do Ororubá é falar do banco de sementes crioulas. Ou, como a jovem Jamilly diz, “banco de memórias, resgate daquilo que nossos antepassados deixaram para a gente e do que podemos passar para outros jovens e crianças”. Dentro das diversas garrafas PET que armazenam variedades de sementes de feijão, milho, fava, por exemplo. Só de fava, “a gente tem mais de 30 espécies diferentes”, orgulha-se Jamilly.
No Centro Casa de Sementes Mãe Zenilda Xukuru, guardiões se encontram para o que chamam de “partilha da pedagogia ancestral”. Também como forma de restaurar a Caatinga, cuidam do viveiro de mudas que produz cerca de 20 mil brotos por ano e cujas sementes são coletadas em viveiros naturais do território. Tem muda de mulungu, de angico, imburana de cheiro, barriguda, ipês, entre outras.
Mudanças Climáticas e tecnologias
Os Xukuru do Ororubá estão atentos à questão climática. “A Caatinga é muito eficiente no sequestro de carbono e muito sensível a mudanças mínimas. A gente consegue se antecipar e perceber as mudanças, tendo essa experiência acumulada de um bioma seco, mas extremamente eficiente. A Caatinga verdeja só sentindo o orvalho,” reforça Iran Xukuru.
Somam-se aos saberes e fazeres ancestrais de produção e proteção das matas, tecnologias como cisterna calçadão, barragem subterrânea, cisterna de placa, quintal produtivo, sistemas agroflorestais, banco de sementes nativas e reúso de água, o que contribui para o enfrentamento à crise climática.
Como protagonista soberana, a tecnologia de floresta, que é perceber o ritmo da própria natureza para a produção e manutenção de paisagens saudáveis.
É pra pisar devagar

Proteger as matas é proteger vidas. Das matas vem o alimento e também as medicinas. A jovem Jamilly trabalha para fortalecer essa missão: “me sinto muito gratificada de poder ser indígena e ser da Caatinga, levar nossa voz cada vez mais longe”.
“Aprender com ela (Caatinga) nos mantém vivos, sábios e preenchidos por todo esse saber e conhecimento que tem aqui. Por isso, anda devagar pra não tropeçar, pra não pisar no ciscado do preá, no riscado do calango, porque são inscrições e estão dizendo algo. A Caatinga é a nossa fábrica de produção de mundos”, ensina Iran Neves, liderança Xukuru.
* A jornalista Andréia Vitório esteve na Serra do Ororubá durante a Caatinga Climate Week, a convite da organização do evento.
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