
Embarquei na 10ª excursão do arqueólogo cearense Igor Pedroza ao Parque Nacional da Serra da Capivara, sudeste do Piauí, ciente de uma coisa – e tentando abstrair de várias outras: já li tudo e não sei de nada, vou só sentir. E assim foi, eu acho.
Dediquei-me num exercício de esvaziamento, que sigo aprendendo com a mestra do jornalismo sensível, Eliane Brum, para tentar me abrir ao máximo ao Outro, sem que o EU interfira tanto – grifo meu, porque o conceito é mais complexo.
Nada escapa de interpretação própria, a famosa bagagem de repertórios, mas existiu ali a tentativa do exercício. Obviamente me iludi na presunção, porque não fui pelo Jornalismo, muito menos alcancei o total esvaziamento; porém voltei transbordando.
Essa breve introdução é só um parêntese antes de tudo, sobre o que entendi como uma confluência de vários interesses e pontos de vista. Esse encontro, como uma encruzilhada de rios e suas nascentes, precisa ser contado.
Aos encontros

Anualmente, Igor organiza a expedição à Serra da Capivara para amigos, conhecidos e curiosos. Para fechar o ciclo de uma década, ele dobrou a meta e cumpriu a missão de levar um grupo ainda maior e heterogêneo – 80 pessoas, incluindo crianças e idosos – a se emocionar em um roteiro turístico patrimonial e sustentável, comprometido com o conhecimento científico e a comunidade local.
Para esse numeroso grupo, o arqueólogo contou com o trabalho de 10 guias turísticos, naturais da região, composta pelos municípios São Raimundo Nonato, Coronel José Dias e João da Costa.
As condutoras, maioria de mulheres, trabalham autonomamente ou organizadas em associações locais de turismo comunitário, como Os Pimenteira e a equipe Craôs, que estiveram nessa expedição. A formação e organização de guias é realizada há mais de 30 anos e tem papel fundamental na conservação patrimonial e ambiental do Parque.
Desde já, deixo aqui o agradecimento pela impecável condução e afetuosa atenção de Dona Cida, Auremília, Juliana, Luzimar, Eliete, Ramira, Antoniel, Thalita, Alexandra e Edijane, que têm um profundo conhecimento da região.
A entrada no Parque Nacional é gratuita, mas é importante frisar que só é autorizada com condução de guias turísticos cadastrados pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que com um valor fixo de R$ 300 podem guiar um grupo de até oito pessoas pelos quase 1.300km² de extensão do Parque.
Encontramos o grupo de guias no dia seguinte à chegada a São Raimundo Nonato. O dia anterior foi de almoço em complexo de restaurante, albergue, lojas de produção local e a fábrica da famosa Cerâmica Serra da Capivara, valentemente conduzida há mais de 20 anos pela pernambucana Girleide Oliveira, que resistiu a uma grave doença até janeiro deste ano.
Ela foi responsável pelo alcance internacional das peças de cerâmica, produzidas por artesãos nativos mobilizados pela arqueóloga Niède Guidon, cientista brasileira que revolucionou a região a partir da década de 1970.

A entrada
“A palavra de diante é quem leva a de detrás”, repete algumas vezes o comerciante Manoel Dias de França que tenta ler nosso rosto enquanto escutamos essa frase, que claramente causa alguma confusão nas nossas feições, já perplexas em meio a produtos muito antigos e esquecidos de sua mercearia.
É a primeira conversa com um filho daquela terra, morador da pequena cidade Coronel José Dias, principal porta de entrada para o Parque Nacional Serra da Capivara. “Um mundo tão grande, tão grande o mundo, e o homem americano veio morrer aqui, foi a Dra Niede Guidon que descobriu”, completa o sr Manoel.
O antigo maniçobeiro conta que o ciclo da borracha da maniçoba na região foi até o fim da década de 1950, que teve seu auge na 2ª Guerra Mundial. Depois tornou-se caixeiro viajante e abriu uma venda simples em frente à BR 020, estrada que corta a cidade e liga Fortaleza (CE) à Brasília (DF).
Ele ri ao contar tudo, como se ainda encantado com essa história do homem americano, mas sentencia sério ao se descrever como “o homem mais rico em tudo, por tudo”, e fala de sua esposa, Dona Elenita, que vai comemorar 80 anos em São Paulo, onde moram 9 de seus 10 filhos.
“Lá, quando você entrar no Parque, você sai e volta e não sabe se entrou, de tão grande”, e não sei foi se eu saí, Seu Manoel! O Parque se agiganta dentro mesmo. Imagina o tamanho de São Paulo capital, agora apaga a selva de prédios e deixa só a selva de grandes pedras e a vegetação de Caatinga à vista.
Essa é a paisagem e quase o tamanho real desse lugar admirado por Seu Manoel, que informa ser a Serra da Capivara o primeiro Parque do Brasil e que por ali já passou “tudo que é presidente”.

Desde a criação, em 1979, o Parque tem sido ampliado na medida em que os sítios arqueológicos vão sendo revelados por pesquisas científicas. Toda a área é protegida e administrada pelo ICMBio, em parceria com a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM).
Mesmo com a delimitação do espaço, o berço do homem americano se estende em outras tocas, boqueirões, veredas e estradas para além do Parque. Seus passos e traços são encontrados não só ali, mas em várias outras regiões do Brasil.
Entretanto, sua qualidade de berço é incontestável. Por sua importância, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) o inscreveu na Lista do Patrimônio Mundial em 1991, e, em 1993, o Parque passou a constar do Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Em um relato apaixonado sobre a região, a médica e escritora Edna Bugni conta, em seu livro “Serra da Capivara: a surpresa do século” (2023), que são mais de 1.300 sítios arqueológicos catalogados, sendo aproximadamente 200 deles abertos à visitação, imersos em uma paisagem singular de formações areníticas, cânions profundos e boqueirões onde se acumula água. Um oásis de pedras úmidas serpenteando uma extensa planície da Caatinga, temperando o clima da região semiárida.
Duas estações bem diferenciadas se alternam e originam uma verdadeira metamorfose na paisagem, como apresenta o site da FUMDHAM. A aparência mais popular da Caatinga traz o tom cinza à vegetação, a terra seca e o calor duro, palpável nos troncos retorcidos e no céu aberto, sem nuvens.
Já o período chuvoso, que vai de novembro a março, despeja um grande volume de água que escorre pelas formações rochosas e causa forte efeito erosivo. Entretanto, a exuberância da flora e da fauna se manifesta nessa época e verdeja até onde a vista alcança, realça os tons vermelhos, amarelos, brancos e prateados da Serra da Capivara.
Um ciclo perene de vida e morte que transforma essa paisagem há milhões de anos. Lá, assim como a atual Caatinga predominante no Nordeste, estão testemunhos de que o Sertão já foi mar, e de lá pra cá, o clima tem causado profundas mudanças; a pura essência da natureza.
Até 10 mil anos atrás, “a condição de vida aqui era tão boa, tão boa que permitia você ter tempo livre para criar”, conta Igor sobre o mesoclima encontrado na Serra, enquanto cita as professoras Niède Guidon e Gabriela Martin.
“Na conceituação da pré-história do Nordeste do Brasil, pretende-se narrar o processo de ocupação humana das grandes extensões semiáridas – os sertões nordestinos – desde o pleistoceno, quando essas grandes áreas desfrutaram de climas diferentes ao atual e onde hoje está patente um processo lento, mas contínuo, de desertificação. Convivia, então, o homem com uma fauna rica em aves e mamíferos, hoje extinta, adaptada a terras pantanosas e ricas em fontes d’água”, descreve a arqueóloga Gabriela Martin, em seu livro, “Pré- História do Nordeste do Brasil” (2013), já em sua quinta edição.

Até então, estamos na visão aérea desse lugar. A chegada da excursão foi um tanto assim. Depois do almoço, a entrada na Serra da Capivara foi pelo Museu da Natureza, localizado no Sítio do Mocó.
Lá, o que me despertou para a antiguidade foram os espelhos. Entramos por uma sala escura, que pela teoria científica dominante até aqui, representa o nada absoluto, um total breu silencioso e quente, que explodiu, originou estrelas, dentre elas o Sol, galáxias, e entre elas a Via-Láctea, os planetas, entre eles a Terra, até chegar a nós, humanos, partículas de toda essa imensidão química (quase) incalculável que é o Universo, que continua em expansão.
Um mísero contexto para resumir o que se apresenta nos espaços do Museu da Natureza, uma jornada pelo tempo-espaço para adentrar no contexto do Sudeste do Piauí e tudo que tem sido revelado na Serra da Capivara.
Há textos, imagens, painéis interativos, simulação de voo em realidade virtual, escutamos o gelo rachando enquanto miramos toda fauna e flora existente na região, comprimidas em pequenos bloquinhos que caem do teto. Um espaço mágico.
Mas também miramos espelhos, desde o teto. E daí reparei que todo museu tem no teto espelhos disformes, que compõem a cenografia interativa e bem equipada do espaço, mas também provoca a mirarmos nosso próprio reflexo.
Bem, se não foi a intenção da arquitetura criada ali, foi o que ressoou em mim, assim como a última sala, que conclui minha reflexão: a de nos situar, de estarmos no presente e podermos mirar no espelho a passagem do tempo, uma longa viagem ao nosso tempo, à nossa tão antiga humanidade presente na Serra da Capivara, Piauí, Nordeste do Brasil.
Toca da Mãezinha
Volto ao seu Manoel e à escuta que foi porta de entrada para o Parque. O enigma da “palavra de diante (ou de antes ou de adiante) é quem leva a de detrás” foi ecoando desde o primeiro dia de roteiros pelos sítios da Serra da Capivara.
Depois da Toca do Pajaú, a primeira visitada, com um painel fascinante de pinturas rupestres impressas na rocha arenítica, fomos para a Toca do Inferno. Claramente, o nome choca todo visitante que por ali passa.

“Na verdade, essa aqui é a Toca da Mãezinha”, introduz Dona Cida, uma de nossas guias formada há mais de 30 anos no ofício, quase metade de sua vida. Assim chegamos à trilha, a antiga BR 020, antes da delimitação do Parque, que dá acesso à deslumbrante formação rochosa mais adiante.
“Tem duas interpretações, ou por preconceito religioso ou por pessoas medrosas que passavam por aqui e ouviam os gritos na hora que mulheres ganhavam neném. Como eram almas de mulheres e bebês, o pessoal acreditava que isso aqui era o inferno, porque alma dos santos ou dos homens, nenhuma vai pro inferno”, conta Dona Cida.
O relato vem de Claudio, bisneto de Dona Maria dos Anjos, que também se assustou ao voltar para seu lugar de origem e descobrir como rebatizaram o local. A toca, ou “campo santo”, como chamavam, levava o nome de sua bisavó porque ela morava ali e tinha uma imagem de Nossa Senhora Aparecida, da qual a indígena catequizada era devota.
Ela rezava, benzia, cuidava do terreiro e recebia mulheres grávidas com partos difíceis. “As mães ficavam sete dias guardadas na toca”, depois desse período, Maria dos Anjos banhava mãe e criança e devolvia à família, completa Dona Cida.
Antes de pegar o rumo da Toca, Dona Cida pede o máximo de silêncio às 80 pessoas da excursão, porque ali tem uma grande colmeia de abelhas africanas no topo da entrada da rocha que se agitam com barulho e podem atacar.
Desconfio que seja uma forma de reivindicar respeito ao campo santo, e as abelhas protegem esse espaço desde que foram expulsas de seu lugar de origem, a árvore centenária e sagrada para os indígenas, que também era local de batismo e oratório de Maria dos Anjos.
Dona Cida conta que o imenso tronco foi cortado por causa das abelhas, e isso motivou Dra. Niède a trazer a apicultura para a região e levar os pedaços da árvore para a entrada do Museu do Homem Americano.
A beleza grandiosa do sítio arqueológico já inspirava um quase silêncio de contemplação, e a colmeia recebia atentamente o grupo na entrada da Toca, mas escapamos sem ataques.

Lá dentro, Dona Cida mostra a pedra do parto e das rezas no lado esquerdo, o altar da santa no fundo da toca e no lado direito uma parede em tons de ocre, repleta do óxido de ferro, principal matéria-prima das pinturas rupestres, num local que por muito tempo só indígenas podiam acessar.
“A gente só vê o que a nossa mente conhece”, reproduz Dona Cida de uma fala que ouviu em algum lugar, ao contar sobre sua experiência como guia no Parque Nacional. Até fazer o curso para profissionalização de condutores, Cida nunca tinha visto as pinturas rupestres, mesmo nascida e criada em São Raimundo Nonato.
Para sustentar seus filhos sozinha, Cida investiu no curso para começar a trabalhar, incentivada por uma conduta da Dra. Niède, na época, de priorizar mulheres para diversos cargos no Parque Nacional, por meio da FUMDHAM, da qual foi criadora.
Para conhecer essa parte da história do Parque, da comunidade e o rebuliço-revolução que a arqueóloga causou na Serra da Capivara, sugiro escutar o projeto “Os Caminhos de Niède Guidon”, da jornalista Kelly Cristina Spinelli, no Spotify e outros tocadores de podcast.
‘Não toque, caboclo brabo pega’
A Toca do Inferno, ou melhor, Toca da Mãezinha ou Maria dos Anjos, foi um dos dois lugares nos quais ouvi a menção a indígenas durante a viagem. O outro foi na Toca da Roça do Brás, no dia seguinte. Destaco aqui porque é um fato curioso, que lembra o desconhecimento de Dona Cida sobre as pinturas.
A arte rupestre está presente em aproximadamente 500 sítios arqueológicos até então catalogados no Parque, de acordo com publicação de 2013 da professora Gabriela Martin. Em paralelo, no Sudeste do Piauí, não há registro oficial de povos indígenas que passaram ou residiram por ali.
As pessoas mal se identificam como indígenas na região, como sinalizam pesquisadores. Entretanto, os sinais estão por toda parte, principalmente na tradição oral dos nativos, e claro, na arte rupestre referendada localmente como “pintura de índio”.
Indígenas viraram lendas, um passado muito distante, diferente dos maniçobeiros, que se tornaram referência de ocupação onde hoje são identificados os sítios e parecem ser um elo conhecido entre o passado e o presente.

Em tocas, roças e boqueirões se instalavam os grupos de maniçobeiros, compostos por pessoas nativas, principalmente moradores do Zabelê, comunidade existente na área central do Parque que foi reassentada para área externa, e por migrantes do Ceará, Pernambuco e Bahia, predominantemente.
Construíam moradas de taipa cujas paredes eram os grandes painéis de pinturas e gravuras rupestres nas encostas da Serra, além de erguerem casas de farinha, fornos e pequenas comunidades em ciclos diferentes na primeira metade do século XX.
“Se tocar aí o Caboclo Brabo vai te assombrar” é uma das “livusias” que se escutam na Serra Branca, lugar de seres encantados e assombrações, na parte oeste do Parque Nacional e principal área de cultivo da maniçoba.
Precisei pesquisar o significado de “livusias” e encontrei a seguinte definição: “são os rastros deixados na terra por estes entes de outros mundos”, justamente “um atestado de existência”, segundo o artigo de Leandro Elias Canaan Mageste e Alencar de Miranda Amaral, na Revista de Arqueologia da Sociedade de Arqueologia Brasileira.
Muitas das livusias, relatos e até contatos com indígenas vêm da narrativa de maniçobeiros, como apresenta a pesquisa de Joseane Landim. Mas, sobre o Caboclo Brabo, eu escutei da guia Juliana, que escutou da avó, filha de indígena.
A Toca da Roça do Brás fica na antiga fazenda Jurubeba, na Serra Branca, e ali aconteciam festas e rituais, grandes rodas que os “mais velhos costumavam fazer”, e que a avó de Juliana chegou a ir duas vezes, até se assombrar na última e não voltar mais.
Nessas grandes rodas tinham os “cabocos brabos que minha vó falava”, relata a guia. Até hoje essas rodas existem, no interior de Coronel José Dias, puxadas por uma antiga moradora do Zabelê, como conta também Antoniel, outro guia da excursão, e resiste nos sincretismos de danças populares religiosas, como os Reisados e Rodas de São Gonçalo.

De certa forma, os assombros indígenas criaram uma aura de proteção para os vestígios de povos ainda mais antigos, como revelou-se ao conhecimento local após início dos estudos científicos nos sítios.
E pelas últimas décadas, guias turísticos e outros trabalhadores da estrutura em torno do Parque, além de nativos da Serra da Capivara, têm fortalecido a importância e a grandeza das descobertas feitas na região, apropriando-se e se reconectando com sua ancestralidade, que é também nordestina, brasileira, sul-americana, americana, afinal.
Arte antiga na pedra

Danças, animais, seres antropomorfos, árvores, pessoas e bichos em árvores, cenas de caça, de sexo, de parto, famílias, astros, abstrações, espirais, rios ou cobras ou outros seres rastejantes, e até marinhos, vistos ou imaginados nos milênios que transcorriam.
São entre 6 e 12 mil anos antes do presente, desde que os primeiros humanos registraram sua presença ali, em abrigos de grandes paredões ou, porque não, imensas galerias.
A exuberante arte rupestre na Serra da Capivara foi o que literalmente saltou aos olhos do mundo, e de fato é onde existe a maior concentração de registro rupestre em todo o Planeta.
Junto com outras evidências que compõem o que se caracteriza como sítio arqueológico, também abala as estruturas de teorias consolidadas sobre a origem humana no continente americano, abala desde o colonialismo científico às mentalidades colonizadas no sul global.
Aqui eu reflito na leitura de excelentes livros, como a já citada publicação de Gabriela Martin, e o recente e profundo trabalho do jornalista Bernardo Esteves, “Admirável Novo Mundo”.
Mesmo que as pinturas não possam ser datadas por carbono-14 ou outra técnica, por falta de componentes orgânicos válidos, os locais onde foram feitas guardam vestígios de fogueiras em carvões fossilizados, ossos, instrumentos líticos e cerâmicas.
Ainda assim, desde 1973, na primeira expedição de Niède, com Águeda Vilhena e Silvia Maranca, até as missões arqueológicas franco-brasileiras que se seguiram nos anos e décadas seguintes na Serra da Capivara, muitas das datações realizadas, de pinturas a fogueiras, seixos a ossos, sofreram resistência no meio científico internacional.
Entretanto, o conjunto de fatores estudados, discutidos, refutados e comprovados, não só no Parque Nacional como em outros sítios do Brasil e América Latina, confirma que a ocupação das Américas não teve início linear somente do norte ao sul, desde a Beríngia, como estudiosos norte-americanos e europeus sacramentavam.
A cultura Clovis, conhecida por seus instrumentos líticos refinados, encontrados no sul dos Estados Unidos e datados de 13 mil anos, aproximadamente, virou primazia, a famosa polícia de Clovis que perseguia estudos que a contestassem.
Resumindo, ainda que se encontrem indícios de ocupação mais antiga na Serra da Capivara, de 50 a 100 mil anos – fogueiras e até fezes fossilizadas nas imediações do Boqueirão da Pedra Furada, é consenso que mais de 20 mil anos separam os humanos que ali viviam de nós, que cá estamos. E isso é imenso.
Nossa ancestralidade se expande, é validada e tem valor imensurável para a ciência, que se lança a desafios cada vez maiores, pela existência de recursos de tecnologia avançada, incluindo a Arqueogenética, e que tem, por outro lado, a escassez dos mesmo e de incentivos à pesquisa no Brasil, principalmente no Nordeste.
E tem valor ainda mais extenso a nós, brasileiros na atualidade, que ainda nos perdemos em narrativas colonialistas, onde uma identidade originária nos escapa, desconecta e apaga povos originários do presente.
Longe do lugar-comum do turismo, onde mergulhamos em mares ou cachoeiras, o deslocamento curioso para as profundezas do Brasil lança nossos sentidos a uma descoberta intensa, onde olhos d’água tecem os fios de rios, abrindo e aguando caminhos que atravessam terras áridas.
Entre cavernas, tocas e nascentes, humanos da antiguidade comunicaram com criatividade, técnica e abstração, sobre a vida que viviam. Não é uma pré-História, mas a História antiga, como a corrente arqueológica de Eduardo Góes se refere ao período anterior à escrita – afinal, quando a História começa?

Hoje, ela se torna nossa história, quando nos permitimos conhecer e entender o que é patrimônio, identificar o que nos toca e o quanto de nós tem ali, seja numa figura de formatos sofisticados seja noutra de traços infantis, sejam nos movimentos de dança sejam nos de caça.
É isso que o turismo patrimonial e ecológico possibilita, o deslocamento, o contato, o reflexo. Além de impulsionar um movimento circular de economia local, valorização do território, proteção ambiental, cultura patrimonial, produção de conhecimento, divulgação científica, investimentos e o que mais resultar dos esforços de todas as partes. E a nossa parte, enquanto cidadãos, turistas, leigos e curiosos, é comparecer e levar a palavra adiante.
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