A Serra de Baturité é uma ilha de umidade e diversidade em pleno Semiárido. Mas o que significa a explosão imobiliária para toda essa exuberância?

A Serra de Baturité, um dos enclaves de Mata Atlântica no Ceará, é um refúgio ecológico reconhecido por sua biodiversidade única, que abriga 38 espécies que correm o risco de serem extintas. Dentre essas destacam-se as classificadas como Criticamente Ameaçadas de Extinção (CR): uru (Odontophorus capoeira), tucaninho (Selenidera gouldii), araponga-do-nordeste (Procnias averano), pintassilgo-do-nordeste (Spinus yarrellii), tovaca-campainha (Chamaeza campanisona), sapo-de-cascon (Rhinella casconi), malha-de-fogo (Lachesis muta); e uma espécie vegetal (Adenophaedra cearensis).
Este reduto de biodiversidade tem sido alvo da especulação imobiliária, movimento que vem causando a irreparável devastação da natureza do Maciço do Baturité para a construção de loteamentos e empreendimentos imobiliários. Nas últimas semanas, a informação sobre a criação de uma Autarquia de Meio Ambiente do município de Guaramiranga vem sendo motivo de preocupação entre os moradores da região, ambientalistas e cientistas.
Isso por que a autarquia poderá funcionar como um órgão facilitador de licenciamentos ambientais para tais empreendimentos, uma vez que no texto do projeto de lei que prevê a criação consta como uma das competências “administrar e executar o licenciamento ambiental de obras e atividades consideradas potencial ou efetivamente poluidoras e degradadoras do meio ambiente municipal, (…) executando atividades de fiscalização e controle ambiental”.
Gabriel Aguiar, biólogo, ambientalista e vereador de Fortaleza, considera que o caso de Guaramiranga é particularmente grave: “localizada em uma das maiores áreas de biodiversidade do Ceará, a região abriga 60% das espécies ameaçadas de extinção do Estado. Trata-se de uma área de brejo de altitude, com vegetação da Mata Atlântica em estado avançado de regeneração e espécies que correm o risco de desaparecer permanentemente”.

Aguiar ainda destaca: “a região conta com três unidades de conservação: a APA de Baturité, o Refúgio de Vida Silvestre do Periquito Cara-Suja e o Parque do Pico Alto. É uma área de extrema importância ecológica, que já enfrenta pressões ambientais intensas, especialmente da especulação imobiliária. Muitas dessas atividades ocorrem de forma ilegal, com desmatamento para venda e construção sem a devida autorização”.
Biólogo da Associação de Pesquisa e Preservação de Ecossistemas Aquáticos (Aquasis), que atua em prol da conservação de espécies do Maciço do Baturité, Fábio Nunes destaca que a legislação está sendo ignorada nos processos de licenciamento e fiscalização de obras na Serra de Baturité por parte dos órgãos de licenciamento, o que pode se agravar com a criação da autarquia, que não prevê corpo técnico qualificado para análise de processos complexos.
Heranças da Mata Atlântica
e da Floresta Amazônica
O Maciço de Baturité merece um olhar especial porque ele resguarda heranças de paisagens de milhares de anos, de uma época em que a Amazônia e a Mata Atlântica se uniam como um único bioma, conforme explica Flávio Nascimento, geógrafo e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC).
“Isso aconteceu há mais de 4.500 anos, quando a Mata Atlântica se expandiu para o oeste e a Amazônia para o leste. Todo o Ceará era coberto por essas duas formações vegetais. Com o aquecimento do clima, que caracteriza as condições climáticas atuais, as vegetações começaram a se retrair. As caatingas avançaram, e, como resultado, surgiram ambientes de refúgio, conhecidos como relicários ou redutos ambientais, como o Maciço de Baturité”, afirma.
A exemplo desta herança, o Maciço é abrigo da surucucu pico-de-jaca (Lachesis muta), espécie amazônica considerada a maior serpente peçonhenta do Brasil, que pode ser encontrada na região. “A presença de espécies como essa é resultado de condições biogeográficas históricas, que moldaram a fauna e flora da Serra de Baturité”, ressalta Nascimento.

O pesquisador também resgata aspectos antropológicos a respeito do Maciço quando explica que, desde os tempos dos naturalistas, essas áreas já eram reconhecidas como refúgios naturais. Durante períodos de seca, as comunidades indígenas migravam para essas regiões em busca de recursos, como caça, extrativismo e fontes de água abundantes.
“O Maciço de Baturité é uma região de mata úmida, com paisagens singulares e possui grande importância histórica, social e ambiental. Ele é considerado uma região de refúgio, onde ocorrem nascentes de bacias hidrográficas importantes, como a bacia do Rio Pacoti. Nesta área também há divisores de bacias hidrográficas, portanto é uma área de exceção que funciona como ‘ilha de umidade’ em meio ao Semiárido, sendo fundamental para a formação de rios e a manutenção da fauna e da flora local”, explica.
Segundo Flávio Nascimento, essas áreas precisam ser preservadas de maneira eficaz, já que desempenham um papel fundamental na manutenção dos recursos hídricos, de florestas e na qualidade dos solos. Além disso, possuem um potencial ambiental que pode ser explorado em diversos setores, como educação ambiental, pesquisa científica e desenvolvimento do ecoturismo.
Já reduzida a fragmentos críticos, os remanescentes de Mata Atlântica no Ceará estão protegidos pela Lei da Mata Atlântica (Nº 11.428/2006) e pela Constituição Federal (Art. 225), que vedam a supressão de vegetação primária e exigem licenciamento ambiental rigoroso para intervenções.
De acordo com dados do Atlas da Mata Atlântica, o Estado do Ceará registrou um aumento de 67% no desmatamento da Mata Atlântica entre 2021 e 2025, cenário que se repete na Serra de Baturité devido à omissão de fiscalização e à impunidade.
Danos causados pela devastação

Nascimento aponta que, na medida que o desmatamento avança, especialmente por causa da especulação imobiliária, podem ocorrer impactos graves e irreversíveis, como a diminuição da produção de água e o agravamento da crise hídrica local, já que a floresta do Maciço de Baturité é fundamental para a recarga de cabeceiras dos rios Pacoti, Aracoiaba, dentre outros, que abastecem cidades e comunidades rurais. Outro problema é o aumento da temperatura, que altera a sensação térmica e causa alterações em todo o equilíbrio ecológico.
A devastação do Maciço de Baturité pode trazer danos socioeconômicos profundos para a região, já que a economia dos municípios está fortemente ligada aos serviços que envolvem o turismo motivado por essas características únicas. “O desmatamento e a degradação do solo, levam à perda das potencialidades socioeconômicas, paisagísticas e ecológicas”, destaca.
O pesquisador alerta ainda para os riscos de deslizamentos de encostas, que podem ser ocasionados pela devastação das matas e pela degradação do solo: “com o aumento da ocupação do solo pela especulação imobiliária e o crescimento desordenado, aumenta o risco de deslizamento de encostas, o que leva a danos materiais, ecológicos, inclusive perdas de vidas humanas, como já aconteceu em um passado recente”.
Como forma de protesto e apelo pela conservação dos recursos naturais do Maciço do Baturité, o biólogo Fábio Nunes escreveu à Eco Nordeste reflexões que dão luz a fatos relevantes que envolvem este conflito na região. Nunes lida diretamente com a biodiversidade da Serra de Baturité, sendo um dos responsáveis por reverter a situação de ameaça de extinção do periquito cara-suja (Pyrrhura griseipectus), uma espécie exclusiva da região: Entre a ganância e o colapso ecológico
A criação da autarquia

O Projeto de Lei Municipal Nº 05/2025, que institui a Autarquia do Meio Ambiente de Guaramiranga, foi encaminhado pela prefeita Ynara Mota (Republicanos) à Câmara Municipal da cidade. A proposta foi aprovada pelos vereadores no dia 20 de março.
O Projeto de Lei que estabelece a criação da autarquia municipal determina que qualquer licenciamento ambiental em Guaramiranga deverá reservar 5% da área para preservação ou para a criação de áreas verdes, “sem prejuízo das legislações existentes”. Além disso, serão exigidas “medidas compensatórias ambientais, que variam entre 2% e 4%, dependendo do impacto causado”.
Essas diretrizes entram em confronto com a Lei Estadual Nº 13.688/2005, que regula as construções, tanto em áreas urbanas quanto rurais da APA da Serra de Baturité, onde Guaramiranga está localizado. Além das licenças relacionadas a construções na APA, a autarquia terá a autoridade para emitir a Autorização de Supressão de Vegetação (ASV), que autoriza a remoção de vegetação nativa para permitir o uso alternativo do solo, com o objetivo de instalar projetos de utilidade pública ou de interesse social.
De acordo com o PL, a principal meta da criação da autarquia é “garantir a preservação ambiental, proteger a saúde pública, promover a recuperação de áreas degradadas e estimular o desenvolvimento sustentável em Guaramiranga”.
Por outro lado, Gabriel Aguiar ressalta que a criação de autarquias municipais tem se tornado uma prática comum nos municípios do Ceará, com o objetivo de facilitar e acelerar o licenciamento de empreendimentos, muitas vezes com impactos ambientais negativos. Para que essas autarquias possam ser estabelecidas e operem adequadamente, é necessário que sigam as diretrizes da resolução 07 do Conselho Estadual do Meio Ambiente (Coema).
“Essa resolução impõe uma série de exigências para que os municípios possam realizar os licenciamentos ambientais de seus empreendimentos, sem depender da Semace ou do Ibama, dependendo do caso. Um dos requisitos é que os municípios possuam um conselho municipal de meio ambiente ativo, com reuniões regulares, atas documentadas, membros nomeados e a participação da sociedade civil. No entanto, poucos municípios cumprem essa exigência”, explica o vereador.
Além disso, Aguiar destaca que os municípios precisam ter um fundo próprio de meio ambiente, com orçamento suficiente para custear equipamentos, qualificação e atividades de fiscalização, o que também é uma realidade rara. Outro ponto importante é a necessidade de um quadro técnico concursado, composto por biólogos, geógrafos, geólogos e oceanógrafos, com estabilidade e autonomia para realizar o licenciamento, sem envolvimento político. E neste caso, essa estrutura é ausente, como na maioria dos municípios.
“A criação de autarquias deve ser voltada apenas para empreendimentos de impacto local. Caso o impacto ultrapasse o nível municipal e atinja a esfera estadual ou regional, a responsabilidade do licenciamento deve ser transferida para outros órgãos competentes. Todo esse cenário é facilitado por um sistema localizado em Baturité e Guaramiranga, que torna possível a ocorrência dessas violações ambientais. Esse sistema precisa ser denunciado, e os órgãos de fiscalização devem atuar com rigor para coibir essas práticas. O Ministério Público já acompanha a situação, mas é essencial que o monitoramento seja intensificado, com o mapeamento e investigação de todos os envolvidos ou que facilitem essa destruição ambiental”, finaliza.
Nota oficial
Em nota enviada à Eco Nordeste a Secretaria do Meio Ambiente e Mudança do Clima do Ceará (Sema) informou: “a descentralização da gestão ambiental, seja para licenciamentos, monitoramento e fiscalização de atividades de impacto local, é de interesse e de cooperação comum entre os Entes (federal, estadual, municipal), desde que se cumpra os critérios legais e obrigatórios para estas demandas.
Enquanto qualquer município não alcance os critérios estabelecidos, especialmente os constantes no Art. 6º, do Coema 07/2019, as ações administrativas de licenciamento e autorização ambiental serão e continuarão sendo realizadas pela Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) e pela Sema, quando se tratar especialmente de autorizações/ anuências em Unidades de Conservação (UCs) Estaduais, como é o caso de todo o Maciço de Baturité.
Outrossim, a aprovação de quaisquer autarquias em âmbito ainda de câmaras municipais, não respaldam ou validam o cumprimento e atendimento destas condições, as quais devem ser apresentadas obrigatoriamente ao Coema.
De valia sempre ressalvar que a defesa, a conservação e o equilíbrio do desenvolvimento sustentável precisam e devem ser garantidos por todos os Entes.”