Boiada de Salles ameaça restingas e manguezais, com a revogação de regras do Conama

Por Alice Sales
Colaboradora

Durante reunião ministerial realizada em abril, Salles declarou que era preciso aproveitar a pandemia para “passar a boiada” de aprovação de flexibilização de leis ambientais. Mangues e Restingas são os os alvos mais recentes, com regras de proteção revogadas | Foto: Eduardo Queiroz

Fortaleza – CE. Um impasse na proteção de áreas de manguezais e restingas vem tramitando nos últimos dias e causando revolta por parte de ambientalistas, cientistas e representantes da sociedade civil, que consideram a decisão um retrocesso para as leis ambientais brasileiras. No último dia 28, deputados federais apresentaram projetos de decreto legislativo com o intuito de revogar a Resolução Nº 303 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), prevendo extinguir regras que protegem áreas de conservação ambiental que incluem mangues e restingas.

Assim, cada Estado deverá ficar responsável por definir seus próprios parâmetros para o estabelecimento de Áreas de Proteção Ambiental (APAs). Na ocasião, o Conama também decidiu liberar a queima de lixo tóxico em fornos usados para a produção de cimento e derrubar a resolução que determinava critérios de eficiência de consumo de água e energia para que projetos de irrigação fossem aprovados.

A pauta da reunião foi definida pelo titular do Ministro do Meio Ambiente (MMA) Ricardo Salles e não seguiu a tramitação padrão, quando a votação ocorre precedida por debates dentro das Câmaras Técnicas do Conama, a de controle e qualidade ambiental e gestão territorial e a de biodiversidade, áreas protegidas, florestas e educação ambiental.

Vale lembrar que o mundo inteiro tomou conhecimento e reagiu à fala de Salles, em gravação que revelou o conteúdo de reunião ministerial do dia 22 de abril, de que o momento era para aproveitar a “tranquilidade” pela distração da imprensa com a Covid-19 para “ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”.

De acordo com João Alfredo Telles, presidente da Comissão de Direito Ambiental (CDA) da Ordem dos Advogados do Brasil no Estado do Ceará (OAB-CE), para compreender o problema, é preciso olhar para o que ocorreu em 2019, quando o Conama sofreu um desmonte, tendo o seu colegiado reduzido de 96 conselheiros para o total de 23 membros. Atualmente o Conama, presidido por Salles, é composto em sua maioria por ministérios e membros do governo federal.

“O Conama era um órgão que funcionava como parlamento e tinha como característica ser democrático. Os projetos eram apresentados e envolviam o governo, a sociedade civil e ONGs na tomada de decisões. Com esse novo arranjo, a tramitação para a revogação da resolução está sendo feita de forma inconstitucional, uma vez que um dos princípios do Direito Ambiental é a democratização das decisões”.

Como uma das medidas para que o Brasil tenha uma melhor perspectiva para a conservação de seus ecossistemas, João Alfredo Teles, aponta o afastamento de Ricardo Salles do Ministério do Meio Ambiente, sob o argumento de Improbidade Administrativa, que é quando o agente público contraria os princípios básicos da Administração Pública. “A intenção da atual gestão é entregar as áreas de conservação aos empreendimentos e destruir a Política Nacional de Meio Ambiente”.

Intervenções Judiciais

Apesar das intenções de revogar resoluções do Conama, as decisões de Salles não deveriam ser absolutas. Segundo João Alfredo, as alterações pretendidas por Salles podem ser levadas à Justiça e ao Congresso Nacional, na tentativa de que sejam vetadas.

No último dia 29, em despacho liminar (temporário), a juíza federal Maria Amélia Almeida Senos de Carvalho suspendeu a anulação das regras que protegem restingas e manguezais no País. No dia seguinte, a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), deu 48 horas para que Ricardo Sales prestasse esclarecimentos sobre a revogação das regras do Conama.

Entretanto, a decisão liminar da Justiça Federal do Rio de Janeiro que proibiu a revogação das regras do Conama, foi suspensa. Desta forma, a revogação voltou a valer por decisão do desembargador federal Marcelo Pereira da Silva, do Tribunal Regional Federal da 2° Região, com argumento de que as resoluções em questão perderam a eficácia após o Código Florestal, de 2012.

Quanto ao Código Florestal, esse estabelece a proteção de mangues e restingas, mas somente o Conama apresenta critérios rigorosos e específicos para a aplicação das leis, sendo a única norma que estabelecia a obrigação de proteger uma faixa de 300 metros a partir da preamar.

Prejudicados pela revogação

A grande preocupação por parte de quem é contra a revogação das regras do Conama é a conservação do meio ambiente e a sustentabilidade de comunidades costeiras e ribeirinhas, que dependem desses ecossistemas.

Segundo Cristiane Faustino, assistente social, coordenadora de Processos Internos do Instituto Terramar e membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, além de os ecossistemas costeiros serem frágeis, as comunidades que vivem em áreas de mangues serão as mais prejudicadas. “Aqui no Ceará, podemos citar a Comunidade Quilombola do Cumbe, às margens do Rio Jaguaribe, no Litoral Leste do Estado, e a Comunidade do Curral Velho, no Litoral Oeste, que já são bastante prejudicadas pela carcinicultura, e pelas usinas eólicas, que são atividades que pressionam para a liberação dos manguezais, para desmatamento e exploração”.

E completa: “Essas áreas que precisam de proteção, são áreas em que as comunidades lutaram muito para preservar e ter o mínimo de garantia. Se forem desconsideras, é o mesmo que liberar essas atividades nessas áreas que deveriam ser conservadas”.

Luciana dos Santos é líder comunitária e pescadora na Comunidade Quilombola do Cumbe, em Aracati, no Litoral Leste do Ceará, e destaca que os manguezais e rios são fundamentais para a existência dos seus, que vivem da pesca. Para ela, a revogação das regras será uma medida devastadora para as comunidades tradicionais pesqueiras que vivem diretamente do mangue, do rio e precisam dessas áreas de manguezais vivas.

“Isso poderá ser exterminador para as nossas comunidades. Já vivemos em uma luta grande. Mesmo com as leis de proteção, ainda assim essas áreas são devastadas, imagine sem nenhuma lei que as protejam. A gente acredita que com isso cresça a especulação e o desmatamento nessas áreas que abrigam vidas tanto de fauna e flora, como humanas. A gente precisa desse ecossistema preservado porque é ele que nos sustenta. Ficamos tristes, desanimadas com tantos retrocessos, e agora com mais essa desproteção”, destaca.

Do ponto de vista ambiental

De acordo com Clemente Coelho Júnior, professor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Pernambuco (UPE) e cofundador do Instituto BiomaBrasil, as resoluções do Conama regulamentam o Código Florestal e acabam assegurando uma maior proteção a esses ecossistemas.

A grande preocupação por parte de quem é contra a revogação das regras do Conama é a conservação do meio ambiente e a sustentabilidade de comunidades costeiras e ribeirinhas, que dependem desses ecossistemas | Foto : Eduardo Queiroz

Para Clemente, essa proteção por parte das regras do Conama garante a conservação dos serviços prestados por aquele ecossistema, assim como a manutenção da biodiversidade costeira, a proteção do lençol freático, da vegetação e das áreas de desova de tartarugas martinhas, além de ajudar contra o processo de erosão, por exemplo.

“A restinga e o manguezal, quando conectados, protegem as bacias hidrográficas. Sendo revogadas as regras do Conama que protegem esses ecossistemas, a gente corre o risco de ter essas áreas ocupadas por atividades socioeconômicas, que trarão grandes impactos negativos ao meio ambiente. É importante ressaltar que manguezais são florestas com capacidade alta de sequestro de carbono, prestando serviços contra o efeito estufa”, ressalta.

Fabiana Barros Pinho, especialista em Gestão Ambiental e coordenadora de projetos do Ecomuseu Natural do Mangue, destaca que tanto as áreas de restinga como de mangues oferecem atrativos para a especulação imobiliária, uma vez que estão próximas de praias, lagoas, baias, e que são áreas valorizadas. “Em virtude disso, a especulação imobiliária aterra para a construção de casas, marinas e indústrias. O manguezal é rico em espécies  e as construções podem afetar absurdamente a habitat da região”.

Segundo Fabiana Pinho, as principais consequências, caso essas áreas sejam ocupadas por atividades da construção civil, são o despejo de esgoto doméstico e industrial, o assoreamento, a construção de estradas, o desmatamento indiscriminado e o acúmulo de lixo, redução de áreas verdes, diminuição das relações ecológicas, compactação do solo e mudanças de suas características e ocupação irregular, dentre outros.

Empreendimento Sustentável no litoral

Para provar que é possível erguer um empreendimento hoteleiro no litoral procurando reduzir ao máximo os impactos ambientais, o Hard Rock at Hotel, empreendimento construído pela VCI S.A, com previsão para ser inaugurado em 2021, na Praia da Lagoinha, situada no Litoral Oeste do Ceará, adota em sua construção medidas sustentáveis.

Como um exemplo a ser seguido pelo setor imobiliário e hoteleiro, o empreendimento prevê o tratamento dos resíduos sólidos, com separação e reciclagem. Quando pronto, terá reaproveitamento de águas cinzas, que serão usadas para regar todos os jardins do entorno do hotel. Além disso, a estrutura terá aproveitamento de águas pluviais, placas de energias solares e iluminação LED, que promove maior aproveitamento de energia, podendo chegar a até 80% maior em comparação à iluminação incandescente.

Com relação aos resíduos sólidos, o hotel possuirá câmaras frias para o tratamento do resíduo orgânico, de modo que tudo possa ser reaproveitado. No que diz respeito à jardinagem, há um trabalho de recuperação da vegetação natural da praia em algumas áreas.

“Nosso projeto respeita também a APA, que é nossa vizinha. No próprio projeto de paisagismo, estamos recompondo parte da vegetação que foi tirada anteriormente à nossa chegada, o que faz parte do projeto ambiental que estamos empregando. Não se consegue uma sustentabilidade turística se houver a destruição da natureza, dos mananciais, dos recursos naturais. Não adianta construir grandes hotéis destruindo o que há ao redor. É fundamental que a localidade seja preservada. Além de ser uma questão de consciência ambiental, quanto mais preservada a natureza estiver, mais atrativa é para o turismo, pois aumenta a experiência do turista”, finaliza Samuel Sicchierolli, presidente da VCI S.A.

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