Um grupo de 19 professores doutores do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Recursos Naturais (mestrado e doutorado) da UFC se reuniu e construiu um documento sobre as áreas verdes urbanas de Fortaleza no qual constatam que o empreendimento proposto para a área das dunas da Sabiaguaba é completamente inadequado no que se refere à legislação sobre a conservação da natureza, inadequado do ponto de vista do que ele representa em relação à relevância das áreas verdes no contexto urbano e não é admissível por uma sociedade que almeja um futuro ecologicamente e socialmente saudável. A Agência Eco Nordeste publica, nesta segunda-feira (27), a pesquisa, em primeira mão, com exclusividade.

A área do projeto proposto é a do canto superior esquerdo da imagem | Foto: Eduardo Magalhães / Fundação Cepema

Desde a colonização de nosso país pelos europeus, notadamente portugueses, muitos vindos de terras há muito desmatadas, que os cuidados com nossa natureza foram incapazes de preservá-la, ainda que experiências indígenas de longo tempo nos mostrassem alternativas de convivência com as matas e outros tipos de vegetação.

As civilizações conquistadoras nunca respeitaram os povos mais antigos, em todo o mundo, vários dos quais com saberes sobre os limites dos ambientes nos quais viveram por tempos muito longos e para quem as relações com o ambiente eram, antes de tudo, sociais, culturais e religiosas, nunca individuais.

Serviços Ecossistêmicos

Enquanto sociedade, não fomos educados a sermos sensíveis aos Serviços Ecossistêmicos que recebíamos da natureza. Entre estes serviços, ressaltam-se: as florestas e a arborização urbana, que promovem o que é denominado de bem-estar, notadamente mental e físico, mas também social, o que ocorre pelo uso dos serviços ambientais naturais, salientando-se:

  • purificação do ar, pela diminuição de poeiras na atmosfera;
  • atração de aves e manutenção de diversas outras espécies de animais, auxiliando na conservação da biota nativa da região;
  • redução da poluição sonora e da velocidade dos ventos;
  • constituição de diversos elementos estéticos e paisagísticos;
  • promoção de sombreamento;
  • diminuição do impacto direto das chuvas e favorecimento da drenagem de águas aos lençóis freáticos;
  • contribuição ao balanço hídrico, aumentando a umidade relativa do ar;
  • valorização da qualidade de vida local, pelo bem-estar promovido;
  • promoção de educação para a natureza;
  • auxílio na conservação da biota nativa da região, e
  • atenuação de valores elevados de temperatura e, em escala local, proporcionar a minimização de mudanças climáticas.

Estudos desenvolvidos em grandes cidades no mundo inteiro indicam que são constituídas ilhas de calor que, nas áreas vegetadas extensas, chegam a ter temperaturas médias inferiores em 7oC.

Limites da exploração

Compomos sociedades “modernas” que promoveram o domínio da natureza não respeitando seus limites de exploração, para a prática da agricultura, obtenção de recursos naturais e, principalmente, pela urbanização, que alteraram radicalmente as características físicas e biológicas locais e regionais. Nas áreas urbanas as alterações promoveram mudanças radicais, de forma que restaram poucos resquícios da biota nativa em suas áreas.

Unidades de Conservação

Devido à expansão das áreas ocupadas pelas sociedades humanas, em todo o mundo foram criados instrumentos de proteção da natureza que, no caso de nosso país, está sintetizado no Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC). Este sistema estabeleceu diversos níveis de proteção, que vão desde a limitação extrema à presença ou ações humanas nas áreas naturais até a exploração de recursos sem que sejam esgotados ou a exploração sustentável.

As Unidades de Conservação devem conter e proteger amostras significativas de diversos ecossistemas, capazes de manter viáveis as suas populações componentes.

Os principais objetivos das UCs são:

  • conservar as diversas espécies e os recursos genéticos que representam;
  • proteger espécies ameaçadas de extinção;
  • preservar e auxiliar na restauração da diversidade;
  • estimular o desenvolvimento sustentável;
  • promover a conservação da natureza;
  • proteger paisagens naturais e pouco alteradas, incluindo características geológicas, geomorfológicas e culturais, dentre outras;
  • proporcionar meios e incentivos à pesquisa científica e, valorizar sócio e economicamente a diversidade biológica;
  • facilitar atividades de educação e de interpretação ambiental, junto à natureza; e
  • proteger recursos naturais à subsistência de populações tradicionais, valorizando o seu conhecimento e cultura (SNUC, 2000).

Áreas verdes de Fortaleza

A área urbana de Fortaleza possui poucas áreas vegetadas nativas (FIGURA 1), protegidas ou não pela legislação, sendo a maioria bastante alterada pela retirada de madeira, depósito de lixo e entulho, construção de moradias e caça de animais, entre variadas atividades de perturbação. A área verde total calculada para o município de Fortaleza é de 3646 ha, ou seja, 11,6 % da área total do município. Com base em imagens de 2019, temos cerca de 13,6 m² de área verde por habitante.

FIGURA 1. Áreas verdes no Município de Fortaleza, Ceará.

Dunas da Sabiaguaba

O Parque Natural Municipal das Dunas e a Área de Proteção Ambiental da Sabiaguaba, juntamente com o Parque Estadual do Cocó, constituem a maior extensão de áreas conservadas contíguas naturais, situada no perímetro urbano da cidade de Fortaleza, cobrindo trechos de praia, de dunas móveis, dunas fixas ou semifixas, planície flúvio-marinho, de planície flúvio-lacustre e de tabuleiros litorâneos onde se desenvolvem, respectivamente, a vegetação pioneira de praia, a vegetação de dunas, a vegetação de manguezal, a vegetação de várzea e a floresta estacional semidecídua baixa, o que aumenta significativamente a complexidade biológica, já que os diversos ecossistemas interagem através dos fluxos de matéria e de energia, principalmente pela ação de ventos e das águas ou pelo deslocamento de animais, que se alimentam em um local e se deslocam para outros, onde eliminam seus excretas ou morrem, sendo decompostos.

Essas áreas, contíguas ou separadas, compõem um sistema integrado no nível de paisagem, onde há intensa relação entre ecossistemas não adjacentes, pelos fluxos de energia e de matéria que ocorrem principalmente pelos ventos, pelas águas ou por animais.

Alterações na paisagem influem diretamente nestes fluxos, principalmente a urbanização, quando há alterações significativas no mesoclima, pelo aumento das temperaturas médias diárias causadas pelo aquecimento da superfície do solo, em grande parte impermeabilizado, e pela alteração da circulação atmosférica no nível local.

A construção de imóveis também determina alterações significativas nas condições físicas e biológicas locais, pela impermeabilização que promove, pelos materiais utilizados na construção que, em geral, aumentam a temperatura média local pela alteração na circulação dos ventos.

Também há alterações no fluxo de água, com impedimento de sua penetração no solo ou com aterros de áreas alagáveis, consideradas Áreas de Proteção Permanente (APP), além da geração de fontes potenciais de poluição, como o esgoto doméstico ou o depósito de resíduos residenciais em áreas nativas, o que exigirá cuidados especiais para o tratamento de efluentes e o estabelecimento de sistema de coleta de resíduos eficiente.

Também há alteração significativa da biota quando há redução e fragmentação de hábitats. Essas alterações interrompem fluxos gênicos entre populações de organismos vivos, formando barreiras físicas ao livre trânsito de espécies nativas, causando um aumento no risco de extinção local de populações de vegetais e de animais.

Funções das áreas verdes urbanas

A qualidade de vida nas cidades está relacionada a várias características de infraestrutura urbana, de desenvolvimento socioeconômico e de indicadores ambientais, principalmente as áreas verdes públicas, associadas diretamente ao bem-estar da população, por promover saúde física e mental (LOBODA e DE ANGELIS, 2005)

Entre as funções de áreas verdes urbanas, ressaltam-se as:

  • psicológica, por meio de exercícios e atividades de recreação e lazer em contato com a natureza;
  • estética, aumentando a diversificação da paisagem urbana, principalmente com a vegetação natural;
  • social, possibilitando atividades de lazer;
  • educativa, proporcionando contatos com a natureza e promovendo em seu interior atividades de educação ambiental; e
  • ecológica, melhorando características no clima urbano, na qualidade da água e na conservação do solo, além de permitir a manutenção de uma biota diversificada, de microrganismos, plantas e animais.

As áreas verdes urbanas, naturais ou plantadas, possuem valor intrínseco para a sociedade por comporem áreas para convívio social e por oferecerem serviços ambientais que constituem ou promovem:

  • espaço para atividades recreativas e esportivas;
  • atenuação da poluição atmosférica ou acústica;
  • atenuação da temperatura ao seu redor;
  • estabilização dos solos, favorecendo a penetração das águas de chuvas, evitando o seu escoamento superficial, promotor de processos erosivos;
  • diversificação da paisagem construída, valorizando o ambiente visualmente;
  • proteção de nascentes e mananciais;
  • benefícios à saúde mental e física, como problemas cardíacos, a diabetes, a depressão, a pressão alta e a insônia;
  • proteção do seu entorno da ação de raios, já que árvores os atraem;
  • diminuição da radiação deletéria, como a ultravioleta (UV);
  • aumento de conforto ambiental pelo conjunto de alterações previamente indicadas, o que sintetiza:
  • a valorização do imóvel.

Empreendimento imobiliário

O empreendimento imobiliário objeto de discussão tem proposta de ser estabelecido em terreno de 50 ha no interior da Área de Proteção Ambiental (APA) de Sabiaguaba, que é uma Unidade de Conservação (UC) de Uso Sustentável, com alguma ocupação humana e atributos bióticos, abióticos, estéticos ou culturais importantes para a qualidade e o bem-estar das sociedades humanas e tem a finalidade de proteger a biodiversidade, regrar a ocupação de seus espaços e zelar pelo uso sustentável dos recursos naturais. É uma UC que pode ser constituída por terras públicas ou privadas (MMA, 2011), e que representa as áreas verdes de uso coletivo, que se destacam por seu elevado valor ecológico, estético e, sobretudo, social.

Na área proposta à implantação do empreendimento ocorrem áreas alagáveis, dunas fixas por espécies herbáceas e dunas fixas por floresta estacional semidecídua de pequeno porte (FIGURA 2), consideradas pelo Código Florestal como áreas frágeis, incluídas entre as Áreas de Proteção Permanente (APPs). Na área proposta ao projeto imobiliário, também ocorrem áreas alagáveis nos períodos chuvosos, que são ambientes extremamente frágeis.

FIGURA 2. Área da proposta do empreendimento imobiliário e adjacências, com indicação de distribuição de tipos de vegetação e geomorfológicas.

Conforme a Resolução CONAMA Nº 303/2002, as dunas são “unidades geomorfológicas de constituição predominante arenosa, com aparência de comoro ou colina, produzida pela ação dos ventos, situada no litoral ou no interior do continente, podendo estar recoberta, ou não, por vegetação”.

É relevante notar que nesta conceituação deu-se proeminência ao aspecto geomorfológico, caracterizando a duna em razão de sua aparência e de seu processo de formação. Esta Resolução definiu como APP qualquer área de duna, fixa ou móvel, estabelecendo a ela proteção total.

O conceito mais adequado de áreas úmidas é o que diz o Novo Código Florestal, para o qual áreas úmidas são os pantanais e as superfícies terrestres cobertas de forma periódica pelas águas, ou cobertas originalmente por florestas e outras formas de vegetação adaptadas à inundação.

As APPs são aquelas que, independentemente da cobertura vegetal, têm a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas, conforme entendimento legal.

As APPs possuem características de grande importância para todas as espécies e para a conservação do ambiente. São consideradas ponto-chave na natureza, por concentrarem água necessária para dessedentação de animais e plantas; áreas de recarga dos lençóis freáticos; e áreas de estabilidade dos terrenos. Alterações nestes locais podem comprometer a qualidade ambiental das bacias hidrográficas de modo sistêmico (MMA, 2011). Na área específica da proposta do empreendimento imobiliário, são consideradas APPs as dunas e as áreas nas margens de cursos de água, a até 30m de distância do leito, o que inclui as áreas alagáveis.

Conclusão

Em conclusão, o empreendimento proposto é completamente inadequado no que se refere à legislação sobre a conservação da natureza, já que abrange, em seu interior, na maioria de seus 50 ha, APPs, principalmente as de dunas. De igual importância é a inadequação do empreendimento do ponto de vista do que ele representa em relação à relevância das áreas verdes no contexto urbano.

A história de intensa ocupação imobiliária e de destruição das áreas verdes no município de Fortaleza resultou em uma cidade com pouca representatividade de ambientes naturais conservados e, consequentemente, há uso muito restrito dos benefícios ecológicos e sociais que estes ambientes proporcionam. Diante da crise ambiental contemporânea, a continuidade dessa forma de interpretar e planejar as cidades não é admissível por uma sociedade que almeja um futuro ecologicamente e socialmente saudável.

Assinam este documento os seguintes docentes do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Recursos Naturais (mestrado e doutorado) da Universidade Federal do Ceará (UFC):

Prof. Dr. Waldir Mantovani- professor aposentado/USP e pesquisador visitante/UFC
Profa. Dra. Francisca Soares de Araújo/UFC
Profa. Dra. Lígia Queiroz Matias/UFC
Profa. Dra. Maria Iracema Bezerra Loiola/UFC
Profa. Dra. Arlete Aparecida Soares/UFC
Prof. Dr. Yves Quinet/UECE
Prof. Dr. José Roberto Feitosa Silva/UFC
Profa. Dra. Eunice Maia de Andrade/UFC
Profa. Dra. Roberta Boscaini Zandavalli/UFC
Prof. Dr. Robson Waldemar Ávila/UFC
Prof. Dr. Breno Magalhães Freitas/UFC
Profa. Dra. Maria Eugênia Ortiz Escobar/UFC
Prof. Dr. Sebastião Medeiros Filho
Profa. Dra. Suzana Cláudia Silveira Martins/UFC
Prof. Dr. Jober Fernando Sobczak/UNILAB
Prof. Dr. Rogério Parentoni Martins – professor aposentado/UFMG e pesquisador visitante/UFC
Prof. Dr. Rafael Carvalho da Costa/UFC
Profa. Dra. Carla Ferreira Rezende/UFC
Prof. Dr. Ítalo Antônio Cotta Coutinho/UFC

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARGOS, D.C.; MATIAS, L.F. Áreas verdes urbanas: Um estudo de revisão e proposta conceitual. Soc. Bras. de Arborização Urbana. REVSBAU – Revista da Sociedade Brasileira de Arborização Urbana. v.6, n.3, p.172-188. 2011.

KARSTEN, N.; SILVA, J.J.M.C. O novíssimo código florestal e suas implicações nas Áreas de Preservação Permanente. 8. Mostra da produção científica da Pós-graduação lato sensu da PUC Goiás. 19p. 2013.

LIMA, V.; AMORIM, M.C.C.T. A importância das áreas verdes à qualidade ambiental das cidades. Revista Formação, n. 13, p. 139-165. 2006.

LOBODA, C.R.; DE ANGELIS, B.L.D. Áreas verdes públicas urbanas: Conceitos, usos e funções. Ambiência. v.1, n.1, p. 125-139. 2005.

MMA. Áreas de Preservação Permanente e Unidades de Conservação & Áreas de Risco. O que uma coisa tem a ver com a outra? Brasília, Ministério do Meio Ambiente. 96p. 2011. (Série Biodiversidade n. 41)

MMA. SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. Ministério do Meio Ambiente. Brasília. 76p. 2011.

NUCCI, J.C. Metodologia para determinação da qualidade ambiental urbana. Revista do Departamento de Geografia v. 12, p. 209-224. 1998.

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