Alagoas é o último Estado do Nordeste a licenciar um empreendimento de energia eólica, mas também é o primeiro a ter a chance de fazer isso seguindo os princípios de uma transição energética justa, inclusiva e sustentável.
Até agora, Alagoas é o único dos nove estados nordestinos que ainda não gera eletricidade a partir da força dos ventos. Mas em abril de 2022, começaram as negociações entre o governo do Estado e a Casa dos Ventos para implantar o Complexo Eólico de Mata Grande, com capacidade prevista de 264 megawatts. O projeto inclui 40 turbinas eólicas, divididas em quatro parques, cada um com 10 aerogeradores de 115 metros de altura, o que equivale a um prédio de 38 andares.
“Acredito que Alagoas tem uma posição privilegiada nesse sentido, e é crucial explorarmos essa possibilidade de maneira sustentável”, ressalta Cristina Amorim, coordenadora do Plano Nordeste Potência, iniciativa que busca incentivar a transição energética justa e sustentável nos estados do Nordeste, com destaque para os banhados pelo Rio São Francisco, como Alagoas.
De acordo com Amorim, que vem acompanhando os processos de implementação de parques eólicos no Estado, os procedimentos para o licenciamento do primeiro parque eólico em Alagoas já começaram, mas infelizmente enfrentam alguns problemas. Ainda assim, não os considera insolúveis.
“A grande questão para o Estado é acertar seu planejamento para evitar os conflitos sociais e ambientais que outros estados do Nordeste estão enfrentando atualmente. Alagoas possui um significativo potencial, tanto para a energia eólica quanto para a solar, e a região Nordeste tem se mostrado uma potência nesse setor. Desde o início deste governo, Alagoas tem dialogado sobre essas questões. Em 2023, houve um termo de cooperação que buscou fortalecer essas iniciativas. É essencial que o Estado aproveite essa oportunidade para desenvolver sua capacidade energética de maneira sustentável e justa.”
Além disso, Alagoas também está planejando ações para promover treinamentos, demonstrando interesse na transição energética de forma inovadora. Para tanto, Amorim destaca que é crucial que o Estado utilize esse momento como uma oportunidade, e realize um bom planejamento e preparação interna. “Assim, Alagoas pode conduzir um processo diferente do que temos observado em outros estados, evite os erros do passado e garanta que a transição energética seja realizada de maneira justa e sustentável.”
Diálogo com as comunidades
Para que a transição energética em Alagoas ocorra de forma justa, Cristina Amorim considera fundamental priorizar o diálogo com as comunidades, especialmente com a população rural, desde o início do processo de implementação. Esse diálogo é importante para a construção de salvaguardas socioambientais e para evitar os passivos que se observam em outros estados, como Rio Grande do Norte, Ceará, Pernambuco e Bahia.
“Portanto, é essencial que Alagoas aprenda com essas experiências, promova uma abordagem colaborativa que envolve as comunidades locais e garanta que suas vozes sejam ouvidas e suas necessidades atendidas. Essa participação ativa ajudará a evitar conflitos e a construir um futuro energético mais sustentável e justo para todos. É crucial que esse diálogo ocorra de forma prévia e considere a aplicação da Convenção 169 da OIT, que determina a consulta livre, prévia e informada das populações tradicionais. Essa consulta deve ser realizada pelo poder público, e não pelas empresas ou empreendedores”.
O papel do poder público, nesse caso, é garantir que as comunidades sejam devidamente informadas e que suas vozes sejam ouvidas e assegure que o processo de transição energética seja inclusivo e respeite os direitos das populações locais.
“Os territórios não são apenas espaços de produção de energia; eles abrigam pessoas com atividades produtivas e culturais que precisam ser consideradas. Portanto, é vital que o planejamento leve em conta as diversas utilizações do solo e as necessidades das comunidades locais. Essa abordagem garante que o desenvolvimento energético seja compatível com as atividades e a vida das pessoas que vivem na região e promovam uma convivência harmoniosa e sustentável”, acrescenta.
Maria Ângela Nascimento dos Santos, que vive na comunidade de Sítio Salgado do Lino, próximo à Serra do Parafuso, onde o parque será implementado, conta que o que mais surpreendeu as comunidades do entorno foi a falta de comunicação sobre o projeto. Não houve um aviso claro ou uma consulta adequada à comunidade, o que gerou preocupação entre os moradores. “Essa ausência de diálogo torna difícil entender como as decisões estão sendo tomadas e quais impactos podem ocorrer na vida da população local”, ressalta a liderança.
Segundo a líder comunitária, as empresas fizeram contato direto com a Prefeitura e os gestores e que quando a comunidade percebeu, já havia uma movimentação intensa em torno da energia eólica, com os parques já mapeados e muitos documentos prontos. “Muitas famílias já assinaram contratos, e nós sentimos que há pouco a fazer. Estamos participando de eventos e audiências públicas, mas as empresas agem muito rápido, e não há tempo para um diálogo efetivo. A verdade é que estamos apenas perdendo com essa situação.”
A moradora do Sítio Salgado do Lino ressalta que um de seus maiores temores é ter que lidar com a fauna silvestre que estará ameaçada e descerá da serra para as comunidades em busca de refúgio. Mas nenhum outro temor é maior para ela e para a maioria dos moradores do que o de ter que sair de seu lugar, ser desapropriada, como ocorre em muitos casos, ou ter uma vida insalubre por causa da presença das torres de geração de energia.
“Estou preocupada com a segurança de todos, principalmente das crianças, e como vamos lidar com essas novas realidades. Pensar em ter que deixar esse lugar, sair daqui é muito angustiante. De repente, eu posso precisar sair de casa, e isso é muito angustiante. As
empresas de energia muitas vezes não se preocupam com as pessoas, e isso é algo que todos nós sabemos. Esse é o meu maior medo. Depois de 55 anos, eu estou estabilizada no meu cantinho, onde construí meu espaço, minhas plantas e meu quintal produtivo. Agora, tenho que pensar que, de repente, posso ter que deixar tudo isso para ir para onde? Essa incerteza é devastadora”.
E completa: “Estamos batendo de frente com os gestores que estão apoiando a chegada dos parques eólicos. Enquanto isso, estamos correndo atrás de recursos para fazer oficinas e outras atividades para sensibilizar as famílias. Estamos nos juntando para alertar as famílias sobre os contratos, pedindo para não assinar mais e para ficarem ligadas no que pode rolar com quem já assinou. Nossa maior briga não é contra a implementação em si, porque a gente entende que é importante, mas sim para garantir que as famílias sejam bem informadas e respeitadas durante todo esse processo. É preciso que as pessoas entendam que temos um potencial enorme que pode beneficiar a todos. Isso é bom, mas também precisamos lembrar que, se a energia é limpa, ela tem que ser limpa em todos os sentidos. O que tá acontecendo é que a energia limpa está sendo gerada, mas onde tá sendo implementada, a situação tá virando uma desgraça.”
Como caminhos para que as comunidades sejam respeitadas neste processo e que Alagoas seja pioneiro neste modelo de implantação, Cristina Amorim destaca que é importante que o processo de licenciamento ocorra após a fase de consulta e diálogo completo e bem estruturado. “Há uma tendência em muitos estados de utilizar relatórios ambientais simplificados que tratam os parques eólicos como se tivessem um impacto insignificante. No entanto, isso não é verdade, pois o impacto real depende de como e onde o parque será instalado.”
Outro ponto importante é realizar um estudo de impacto ambiental abrangente, que considere todas as questões bióticas, físicas e socioeconômicas, desde a licença prévia. Essa abordagem não apenas garante uma avaliação adequada dos impactos potenciais, mas também promove um desenvolvimento energético mais responsável e sustentável, que respeita as características e necessidades locais.
Amorim destaca que o poder público deve realizar uma análise cuidadosa para identificar todas as populações e atividades existentes na região. Um estudo de impacto ambiental bem detalhado e completo é fundamental para avaliar todas as situações que podem surgir e garantir que o desenvolvimento energético ocorra de forma sustentável, minimize impactos negativos e respeite as necessidades das comunidades locais.
“Relatórios ambientais simplificados muitas vezes não conseguem captar as complexidades das situações locais, o que impede a criação de ações mitigatórias eficazes. É possível que um parque eólico ou solar conviva com outras atividades, mas isso só será viável se todo o processo for conduzido de maneira exemplar e responsável”, explica.
A Serra do Parafuso
Flávia Moura Flávia Moura, bióloga, professora da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), que está observando o processo de implementação das eólicas no Estado, pondera que, apesar de ser um desafio, o fato de Alagoas ter começado um pouco mais tarde pode ser positivo.
“A chegada da energia eólica em Alagoas, embora significativa, apresenta desafios já vistos em outros estados, pois nem toda energia renovável é realmente limpa. Problemas sérios, como ruído e poeira, têm afetado comunidades vizinhas, e os projetos estão sendo licenciados de forma frouxa por serem considerados energias limpas. É essencial que os órgãos ambientais implementem uma legislação mais rigorosa para a energia eólica e solar que evite que a classificação de renovável sirva de pretexto para práticas irresponsáveis. Muitas áreas na Caatinga estão sendo degradadas, com desmatamentos sendo justificados em nome da geração de energia limpa”, pondera a bióloga.
Sobre a área onde o parque deverá ser implantado, trata-se da Serra do Parafuso, uma região singular e de difícil acesso, que abriga fragmentos de florestas. Além disso, é uma área relevante devido à sua altitude e à interceptação de ventos úmidos que vêm do Atlântico, favorecendo uma vegetação mais exuberante no topo. Essa área abriga não apenas a Caatinga arbórea, mas também representantes da Mata Atlântica, que refletem a antiga penetração da floresta no interior do continente. Na região, há a ocorrência do macaco-prego-galego, que é uma espécie ameaçada, e suas populações estão sob risco com a construção do complexo eólico.
Além disso, a área abriga aves de grande porte que nidificam nos paredões, incluindo a possibilidade de presença da águia-chilena, que depende de ambientes específicos para se reproduzir. “O impacto da construção desse complexo pode ser devastador para essas espécies, pois muitas pessoas não têm consciência dos danos que a instalação de parques eólicos pode causar aos ecossistemas locais. É fundamental que haja uma consideração cuidadosa das implicações ambientais antes de avançar com projetos desse tipo”, destaca.
Falhas nos Estudos de Impactos
Segundo Flávia, os procedimentos para implementação do Parque Eólico apresentam problemas que precisam ser corrigidos, sendo um deles uma incoerência e discrepância entre o Relatórios de Impacto Ambiental (Rima) e o Estudo de Impacto Ambiental (EIA).
“Durante a audiência pública, diversas questões sobre o projeto foram levantadas. Tive acesso ao Rima, que deveria servir como uma tradução do EIA. No entanto, o Rima revelou-se superficial, parecendo mais um folheto publicitário do que um documento informativo. Por exemplo, não havia informações sobre quantos hectares de floresta seriam desmatados, um dado essencial para avaliar o impacto do empreendimento. Quando questionei sobre isso, a empresa não respondeu. O atual formato das audiências públicas parece restringir o diálogo, onde perguntas são feitas, mas as respostas não abordam as preocupações da comunidade. Assim, esse modelo se transforma em um mero protocolo que desconsidera as questões levantadas”, ressalta.
A bióloga relembra que questionou quantos hectares de floresta seriam suprimidos, contudo a resposta foi vaga e não abordou a pergunta. Segundo ela, a empresa mencionou que, após a conclusão do empreendimento, ocuparia 70 hectares, mas isso não respondia ao questionamento sobre a área que seria desmatada, incluindo espaços para estradas e canteiros de obras. Após a audiência, Flávia Moura solicitou ao órgão ambiental o EIA. Embora tenha sido um processo burocrático e complicado, a pesquisadora pôde ter acesso ao documento.
Em posse do documento, a pesquisadora verificou que o EIA não condiz com o Rima, que menciona apenas cerca de 30 espécies identificadas em campo, enquanto no EIA constam mais de 200 espécies.
“Quando questionei o número reduzido de espécies durante a audiência, comentei que já havia encontrado mais de 60 em bancos de dados. A empresa alegou que as 30 espécies mencionadas foram aquelas coletadas diretamente, mas também usaram dados secundários para justificar a discrepância. Essa diferença de informações levanta preocupações sobre a precisão dos dados apresentados e a real diversidade da fauna na área afetada”, explica.
Flávia Moura destaca ainda que diante de todas essas alegações, conversou com os grupos e destacou a necessidade de a empresa refazer todos os estudos e realizar uma nova audiência pública. No entanto, a empresa não apresentou alternativas locacionais adequadas. Por exemplo: na análise das alternativas, eles mencionam usar a Serra do Parafuso e uma serra vizinha, mas não justificam adequadamente por que essas áreas foram escolhidas.
“Essa falta de clareza em relação às alternativas é preocupante e compromete a transparência do processo. A ideia de sacrificar algumas áreas para atender à demanda por energia é complexa e deve ser cuidadosamente considerada. Se fosse possível otimizar a produção de energia em apenas duas serras, isso poderia preservar outros ecossistemas igualmente importantes. No entanto, é crucial que o Rima deixe clara a capacidade máxima, mínima, média e esperada de geração de energia, para que a população tenha uma compreensão realista dos impactos e benefícios desse empreendimento. Assim, poderíamos balancear a necessidade de energia com a preservação ambiental e evitar a degradação de áreas ainda intactas”, finaliza.
A Associação de Produtores Rurais de Crédito de Carbono Social do Bioma Caatinga, sediada em Alagoas, na pessoa do seu presidente, Haroldo de Almeida, informou que ainda se tem poucas informações sobre a implementação do parque eólico pioneiro no Estado, em Mato Grande, mas que tem gerado preocupação pela ausência de clareza e facilidade e de informações adequadas para que a população possa compreender.
“O principal é questionar como essa energia está sendo implantada na região. É necessário que essa implantação siga critérios sociais, ambientais e energéticos. Precisamos garantir esse tripé de sustentação para que a transição energética seja realmente eficaz e benéfica para todos”, afirma.
Segundo Haroldo, a Associação dos Produtores de Crédito de Carbono Social da Caatinga tem se posicionado com um alerta em relação ao Parque Eólico em Mata Grande e destacado vários erros no processo. Um dos principais pontos de preocupação é a realização da audiência pública, que, segundo a resolução do Conama, deve ocorrer com um mínimo de 45 dias de antecedência. No entanto, a última audiência pública foi convocada com apenas cinco dias de aviso prévio, o que levanta sérias questões sobre a transparência e a conformidade do processo. Essa situação evidencia a necessidade de uma revisão mais rigorosa dos procedimentos e a busca por maior diálogo com as comunidades afetadas.
“Acredito que o erro na convocação da audiência pública não se deve ao desconhecimento, mas sim a uma tentativa de apressar o processo, o que nos deixa em alerta. Outro ponto crítico é que os estudos foram disponibilizados com menos de cinco dias de antecedência, o que impossibilitou uma análise adequada por parte dos técnicos, especialmente considerando que nosso trabalho é voluntário. Assim, a Associação se posiciona contrária a todo esse processo, não à geração de energia ou à transição energética em si, mas à maneira como está sendo conduzida, com erros, falta de diálogo com a população e manipulações evidentes, além do desrespeito às normas estabelecidas”, destaca.
E continua: “por isso, junto com o colegiado territorial do Alto Sertão de Alagoas e a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), entregamos um requerimento no qual solicitamos o adiamento da audiência pública realizada. Acreditamos que essa audiência não atendeu aos pré-requisitos normais e necessários para os processos de licenciamento, o que compromete sua validade e legitimidade.”
A Associação também elaborou uma carta de orientações referentes às questões das energias renováveis na região. Também foi elaborada uma carta aberta aos políticos, que destacam os requisitos a serem atendidos para que haja uma transição energética sustentável e justa em Alagoas.
No Nordeste, existem 1.485 usinas eólicas autorizadas a operar, segundo dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). A Bahia lidera com 577 usinas, seguida pelo Rio Grande do Norte com 384, Piauí com 174, Ceará com 172, Paraíba com 98, Pernambuco com 60, Maranhão com 19 e Sergipe com 1.
Os estados que mais geram energia elétrica a partir do vento são Rio Grande do Norte (32,15%), Bahia (30,80%), Piauí (13,16%), Ceará (8,41%), Pernambuco (3,83%), Paraíba (3,24%), Maranhão (1,39%) e Sergipe (0,11%).