A águia serrana ainda pode ser encontrada em vários cantos do Ceará | Foto: Fábio Nunes

Por Antonio Rocha Magalhães
Economista
Ex-Secretário de Planejamento do Ceará
armagalhaes@gmail.com

A caatinga não é uma coisa homogênea. As espécies mudam conforme o lugar e o relevo. A caatinga de segunda geração tende a se concentrar em poucas espécies que se comportam mais como invasoras: a jurema preta e o marmeleiro, no caso do sertão cearense. Entretanto, o que muda mesmo a paisagem da caatinga são as zonas elevadas, as serras e os serrotes. É aí que se observam a beleza dos relevos, as árvores enormes, a biodiversidade impressionante.

Nesse ponto, o município de Canindé se sente privilegiado. De um lado, ao nascente, tem o Bico da Arara, na Serra do Pindá. De outro lado, ao poente, tem o Arirão. Os dois lugares, de pedra, podem ser avistados à distância. São cercados de mistério e tomam formas diferentes, conforme o ângulo do qual são observados. O que se pode dizer, em geral, é que são belíssimos, de uma beleza única que nos faz olhar a natureza e nos perguntar como aquilo é possível.

Que se vê quando se está mais perto?

O Bico da Arara fica na Fazenda Transval, o lugar onde nasci. Se bem que não tenho muita lembrança de lá, porque muito cedo fui morar na cidade. Os meus irmãos mais velhos contam a beleza daquele local, assim como os seus mistérios. O Bico da Arara era vasado de um lado a outro, por uma passagem secreta, que só aqueles mais afoitos tinham conhecimento. Lá dentro havia sido lugar de moradia para populações milenares, que ali deixaram as suas armas de pedras, machados, facas e assim por diante. Também encontraram muitos minérios, especialmente o rutilo, que foi negociado durante a II Guerra Mundial.

Minha mãe falava do Bico da Arara como um lugar distante e inacessível, por isso misterioso, ao qual ela só se dispôs a ver de certa distância. Era necessário subir uma serra muito alta para chegar lá e ela não queria gastar suas energias para fazer isso.

A vegetação ao redor foi devastada, de modo que existe muito pouco do que costumava ser. Junto com isso, caçadores irresponsáveis dizimaram a fauna, especialmente os animais maiores, que já não habitam lá. Já não há onças, gatos maracajás. A vista à distância, entretanto, é a mesma, de modo que inexiste agora o ambiente de mistério.

E o Serrote do Arirão?

Este eu conheci nas minhas viagens ao redor, rumo ao distrito de Bonito, ou na estrada que liga Canindé a Santa Quitéria. Ele tem a forma do desenho do Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint Exupéry: pode parecer um chapéu, ou uma cobra engolindo um animal grande, ou outra coisa qualquer. Não há como ficar fitando-o sem exercer a imaginação, sem deixar que a mente resvale para lugares desconhecidos e crie explicações improváveis para aquela forma inusitada. Ele fica em um lugar que não é muito acessível, por isso foi preservado por mais tempo.

Havia, até há poucos anos, uma grande águia que habitava o Serrote do Arirão. Todos os dias, quando o sol indicava que ia clarear a face da terra, esse grande pássaro alçava voo, à procura de alimentos. Voava a certa altura, dava rasantes em determinados lugares onde poderia encontrar comida, isto é, animais menores que poderiam alimentar sua fome por aquele dia.

Uma vez, um caçador de Canindé conseguiu abatê-la. Ele, o caçador, mostrou toda sua alegria por abater pássaro tão grande, que media dois metros de uma ponta à outra das suas asas. A população que se achegou para ver também manifestava a sua admiração e pedia ao caçador para repetir, mais uma vez, em que circunstância e como havia conseguido aquele feito. Foi um tiro certeiro que atingiu o coração do animal. Descobriu-se, em seguida, que este era o último exemplar daquela espécie.

A águia é um abutre que não faz parte do cardápio dos humanos. Sua carne é proibida pela Bíblia, embora seja digerível pelo estômago das pessoas. A carne dessa Águia do Arirão não foi aproveitada. Portanto, tratou-se de um prazer do caçador de matar por matar. Com isso, foi extinta a espécie nessa região do Sertão. Nunca mais foi visto aquele pássaro com voar altaneiro, nas primeiras horas do dia, em torno do Serrote do Arirão.

O que mais admira é que o caçador teve muitas pessoas da comunidade apoiando-o e admirando-se do seu feito. Ninguém o censurou, embora alguém, sem se manifestar audivelmente, tenha ficado a ser perguntar até onde iremos com essa relação tão nefasta entre a espécie humana e as outras espécies.

Independentemente de classe social, raça ou cor, nossa atitude em relação às demais espécies animais e vegetais tem sido, ao longo da história, uma relação nefasta, capaz de a longo prazo cavar nossa própria sepultura.

Porque nossa vida é entrelaçada com a biodiversidade do Planeta e de cada lugar.

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