Esta matéria foi produzida pelo Saiba Mais  (RN) numa parceria com a Eco Nordeste (CE) para promover uma discussão sobre a importância, a beleza e os riscos que envolvem estas belas feições do litoral brasileiro.

Maioria das falésias ativas oferecem riscos no litoral do Nordeste | Foto: Isabela Santos

Por Isabela Santos
Repórter

Natal / Parnamirim / Tibau do Sul – RN. Os exuberantes paredões naturais litorâneos constituem pontos turísticos por todo o mundo. Mas especialistas alertam que as falésias sofrem constante erosão e a presença de pessoas e empreendimentos nessas áreas deve ser ordenada e rotineiramente reavaliada para reduzir riscos e evitar tragédias como a que vitimou uma família inteira na Praia de Pipa, em Tibau do Sul, no Rio Grande do Norte, em novembro de 2020.

O casal Stella Souza e Hugo Pereira e Sol, o filho deles de apenas sete meses, morreram ao serem atingidos por sedimentos de uma falésia. Esse tipo de desabamento que resultou na fatalidade tem sido recorrente na região. A Prefeitura de Tibau do Sul chegou a sinalizar pontos de maior risco, contudo, se o mar é capaz de abalar grandes formações rochosas, as placas fincadas na areia são facilmente carregadas pelas águas.

Só no Rio Grande do Norte, as falésias são encontradas em 14 municípios: Baía Formosa, Tibau do Sul, Nísia Floresta, Parnamirim, Natal, Maxaranguape, Rio do Fogo, Touros, São Miguel do Gostoso, Macau, Porto do Mangue, Areia Branca, Tibau e Senador Gerorgino Avelino.

Os paredões estão presentes em 105 quilômetros do litoral potiguar, numa área equivalente a 30% da zona costeira, estimada em 410 quilômetros. As falésias variam de tamanho, mas costumam ser muito verticais e chegam a até 50 metros de altura, com cores que vão do branco ao vermelho, passando por amarelo e cinza, denunciando as características dos minerais presentes ali. Também chamadas de arribas, as falésias estão presentes em 80% dos litorais do planeta e em 4.000 km da costa brasileira.

Relatório apontou 23 edificações sob risco

Após o acidente, o Ministério Público Federal (MPF) e o Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente do Rio Grande do Norte (Idema-RN) definiram a criação de um Grupo de Trabalho para acompanhar a análise de riscos na região, em parceria com o Instituto Técnico-Científico de Perícia do Rio Grande do Norte (Itep/RN), Defesa Civil do Estado, representantes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), da Prefeitura de Tibau do Sul e da Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM) do Governo Federal.

Um relatório preliminar foi organizado pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Mobilidade Urbana, indicando 23 edificações em área de alto risco na região. Dez estabelecimentos foram interditados, além de uma residência e duas escadarias. O documento, concluído em 1º de dezembro, é relativo a um estudo prévio, que deve ser finalizado nos próximos meses.

As cartas e mapas gerados nessa análise são capazes de auxiliar na decisão de intervenções que podem reduzir o grau de risco e na elaboração do plano de contingência da região. O município informou que novas medidas só serão tomadas com a conclusão da segunda parte da avaliação, ainda sem data exata para a conclusão.

Ainda de acordo com o relatório preliminar, os processos erosivos dos chapadões são bastante agressivos. No topo, pela ação natural dos ventos e de águas superficiais, e na base, cada vez mais pela ação do mar. E essa situação não é exclusiva de Pipa.

Falésias do Nordeste são mais suscetíveis

As unidades geológicas da Formação Barreiras apresentam sedimentos compostos por areia, argila e outros compostos, formando material que parece estável quando seco, mas com possibilidade de rompimento com a umidade | Foto: Isabela Santos

Todas as falésias sofrem processo erosivo, mas as que estão localizadas na porção oriental do Estado, onde a ocupação é maior, são mais afetadas. Vários trabalhos acadêmicos têm analisado problemas geotécnicos dessas formações. Os estudos são voltados para as questões ambientais e para a estabilidade e as características dos solos, inclusive como material para construção.

Segundo o doutor em Geociências e professor titular do Departamento de Engenharia Civil da UFRN, Venerando Amaro, as falésias potiguares, bem como a maior parte das que estão presentes no Nordeste, incluindo a faixa que vai do Espírito Santo ao Amapá, são da “Formação Barreiras”.

Essas unidades geológicas apresentam sedimentos compostos por areia, argila e outros compostos, formando material que parece estável quando seco, mas com possibilidade de rompimento com a umidade: “Formação Barreiras possuem rochas sedimentares, que são propensas a sofrer retirada, abrasão, diferente de outros setores onde existem tipos diferentes de costões rochosos mais resistentes, como é o caso do Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro”, explica o professor.

O artigo “Propriedades Geotécnicas dos Sedimentos da Formação Barreiras no Litoral do Rio Grande do Norte – Brasil”, produzido pelos professores da UFRN Olavo Francisco dos Santos Júnior, Roberto Quental Coutinho e Ricardo Nascimento Flores Severo, mostra que “o material do topo das falésias apresenta-se bastante heterogêneo, no que diz respeito à resistência a compressão simples, embora visualmente pareça homogêneo”.

O trabalho resume e interpreta de forma unificada outros vários estudos já realizados sobre o tema. Desse modo, verifica que a parte mais alta dessas costas de Tibau do Sul apresenta 54% das amostras como sendo fortemente cimentadas e 46% como moderadamente cimentadas.

Já o artigo “Avaliação da suscetibilidade do solo à erosão nas falésias do litoral oriental do Estado do Rio Grande do Norte” (publicado na Revista Brasileira de Geomorfologia v.22, nº1 de 2021), assinado por Venerando Amaro, Ricardo Carlos Carvalho, Maria de Fátima Alves de Matos, Maria Del Pilar Durante Ingunza e Ada Cristina Scudelari, investiga a área do Centro de Lançamentos da Barreira do Inferno (CLBI), em Parnamirim.

De acordo com mapa de risco da região estudada, o entorno imediato do CLBI tem baixo risco de erosão. Destaque é para o predomínio da vegetação natural preservada que recobre os limites territoriais do Centro.

“Atua como anteparo ao impacto direto das chuvas nos solos e no arrefecimento na energia de escoamento de partículas pelo fluxo da água em enxurradas”, explica o texto, concluindo que as classes com alta suscetibilidade do solo à erosão ocorrem em 13% e a classe muito alta representa 9% da totalidade da área de estudo, próximo ao mar, em dunas e falésias.

Venerando lembra que “risco” está associado a perdas materiais e de vidas: “Oferecerão maior risco os espaços em que há uso e ocupação, como vilas, cidades, bens públicos, no topo ou nas base das falésias. Aqueles onde não há ocupação podem ter alta suscetibilidade e, portanto, devem ser informações para a gestão pública evitar o uso”.

O pesquisador reitera que esses monumentos naturais em contato com o mar estão fadados à erosão, provocando o que os cientistas chamam de “movimento gravitacional de massas”, com tombamentos ou deslizamentos. A questão é natural e antrópica, ou seja, envolve também a ação humana.

A ocupação, tanto dos topos de falésias (linha de quebra ou talude), com construções e obras de infraestrutura, quanto das bases, com barracas e banhistas que aproveitam a sombra, expõe a falésia a um quadro erosivo maior e as pessoas ao risco. “Eu já vi setores em que jogam água com canos de esgotamento. Isso aumenta a exposição dessas pessoas ao risco”, lembra o professor.

O aquecimento global também tem sua parcela neste processo, resultando na elevação do nível do mar e ainda na alteração de eventos extremos, como ressacas, ventos fortes e precipitações, o que provoca ainda mais degradação.

A ocupação, tanto dos topos de falésias, com construções e obras de infraestrutura, como vem ocorrendo na Praia dos Lamartine, em Panamirim (foto), quanto das bases, com barracas e banhistas que aproveitam a sombra, expõe a falésia a um quadro erosivo maior e as pessoas ao risco | Foto: Isabela Santos

Outro ponto que merece atenção é a Praia dos Lamartine, em Panamirim. A área compreende parte de um grande bloco que se estende de Cotovelo até a Ponta do Flamengo, onde o topo se encerra com vegetação densa e casas de alto padrão do Condomínio Porto Brasil.

De acordo com o professor Venerando, há marcas de movimento de massa com queda de blocos e fluxo, inclusive com queda de plantas na região, onde é comum ver banhistas se abrigando do sol.

A dissertação “Monitoramento Por DGPS e Análise dos Processos Erosivos da Linha de Costa na Praia De Pirangi do Norte – Parnamirim / RN”, apresentada por Kleiton Cassemiro do Nascimento, com orientação do professor Olavo Francisco dos Santos Júnior ao Programa de Pós-Graduação em Engenharia Sanitária da UFRN, em 2009, já advertia sobre os riscos. A pesquisa investiga o período de 1999 a 2009.

O texto aponta os problemas gerados pela intensa ocupação. “Com o aumento desta procura por um espaço na zona costeira os valores dos lotes seguem o mesmo aumento, juntamente com diversos problemas de infraestrutura que acabam por gerar problemas com a sustentabilidade do ambiente costeiro. Verificou-se a ocorrência de pequenos deslizamentos e quedas de blocos, além do indício da ação do mar descalçando o sopé da falésia”, discorre o pesquisador.

A pesquisa acrescenta que as raízes expostas de árvores observadas no trecho indicam a existência de processos de movimento de massa, provavelmente ocasionados pela ação das águas pluviais combinado com a carga exercida pelas edificações localizadas na borda do tabuleiro.

De acordo com Venerando Amaro, existem vários métodos de contenção de arribas, mas são onerosos e muitas vezes inviáveis para aplicar em todas as regiões de falésias. “A contenção de áreas muito extensas envolve grande esforço e é muito cara. Existem mecanismos de contenção de falésias, mas eles valem a pena? Ou é mais fácil fazer um ordenamento mais planejado em que você distancie as pessoas da exposição ao risco?”, questiona, ponderando que há questões bastante subjetivas na análise do risco e que por essa razão o estudo precisa entrevistar a população afetada e conhecer a situação socioeconômica dos moradores.

Risco da revisão do Plano Diretor de Natal

O professor Amaro destaca que os recentes acontecimentos são mais um alerta para o cuidado que Natal deve ter com a revisão do Plano Diretor da cidade, mecanismo legal que orienta a ocupação do solo urbano. Ele explica que o bairro de Mãe Luiza, na Zona Leste, entra no conjunto de movimento gravitacional de massa, onde as dunas mais elevadas geralmente estão em cima de falésias.

Com grande especulação imobiliária para ampliar a verticalização da Orla de Natal, o bairro popular, que tem histórico de deslizamento, é um dos pontos mais polêmicos da discussão e está ameaçado. Em junho de 2014, fortes chuvas abriram uma cratera na Rua Guanabara, uma das mais movimentadas do bairro, desmoronando casas e deixando famílias desalojadas.

De acordo com o trabalho “Movimento de Massa Ocorrido na Vertente Adjacente à Praia de Areia Preta – Natal – RN”, assinado por seis pesquisadores, ocorreram dois movimentos de massa subsequentes na vertente adjacente à Praia de Areia Preta, destruindo residências de baixa e média renda na parte superior da encosta e toda a infraestrutura do entorno, enquanto os edifícios de alto padrão foram poupados, tendo sido feitas recomendações para perícia técnica.

Nesse caso, toda a massa deslizada corresponde a areias de dunas e detritos e indica que a unidade basal, que é Formação Barreiras, não foi afetada. “Existe um topo de duna ‘urbanizado’ em que foi retirada a vegetação, passou rede de drenagem e esgotamento sanitário onde foi possível e não teve manutenção. Ficaram ali rachaduras e, num momento de evento extremo, a pressão desse espaço sobre o ambiente favorável ao movimento resultou na catástrofe, com fluxo de sedimentos e detritos. O episódio deveria ser usado como exemplo pra evitar que o processo se repita no futuro”, chama atenção, ao destacar que vários hotéis da via costeira ocupam áreas de risco em falésias.

Gerenciamento costeiro nacional

A Associação Brasileira de Entidades Estaduais de Meio Ambiente criou, em 2020, o Grupo de Trabalho para o Gerenciamento Costeiro (GT GERCO), que reúne 17 estados. A primeira reunião foi realizada em agosto do ano passado.

A coordenação do grupo é da técnica do Idema-RN, Ana Marcelino, com a cooperação dos dois representantes do G17 no GI-GERCO, Gil Scatena, da Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo; e Andrea Olinto, da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade de Pernambuco (Semas-PE).

“Estamos fazendo um trabalho bem interessante, para minimizar a ineficiência do Ministério do Meio Ambiente, que não estava a fim de dar continuidade aos planos programas e projetos em andamento. Os 17 estados costeiros estão dando boas respostas”, disse Ana Marcelino.

O objetivo do Grupo de Trabalho é expor para os secretários de meio ambiente e gestores o que pode ser realizado para a efetivação da governança do GERCO no nível estadual, visando o fortalecimento da Política de Gestão Costeira (Planos) a partir da iniciativa dos estados.

Esse tipo de política pública nasceu com a redemocratização do País, após a Ditadura Militar. Em 1988 foi sancionada a lei que instituiu o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (PNGC), um dispositivo que estrutura e orienta as responsabilidades entre União, Estados e Municípios para a devida gestão do patrimônio costeiro.

As falésias são consideradas Áreas de Preservação Permanente (APP) pela Resolução nº 303/02 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que proíbe qualquer tipo de ocupação numa faixa de cem metros, contados da sua borda. Entretanto, apesar de protegidas pela legislação, existem muitas ocupações irregulares em bordas de falésias, que causam fortes impactos ambientais.

O levantamento de falésias do Idema/RN salienta que, mesmo após a edição do Código Florestal, em 1965, pela Lei 4.771/1965 e das Resoluções Conama que o regulamenta, a ocupação em APPs, especialmente em áreas expansão urbana, teve continuidade.

“Com a edição do Novo Código Florestal, Lei 12.651/2012 e da Lei 13.465/2017, que dispõe sobre a regularização fundiária rural e urbana, dentre outras matérias, foram indicados os mecanismos para o enfrentamento do assunto, destacando-se que a mitigação / inimização e monitoramento das condições de risco, geralmente associadas às ocupações em APPs, constitui-se importante aspecto a ser considerado na análise relacionada à decisão sobre a viabilidade de permanência, ou seja, de regularização de cada situação específica de ocupação de APP, incluindo aquelas incidentes sobre borda de falésias”, finaliza.

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