Termos e expressões racistas ainda fazem parte do cotidiano no Brasil

Eles estão no nosso dia a dia de forma normalizada e, muitas vezes, a falta de atenção à origem do significado é a desculpa para seguir repetindo discursos que representam e reproduzem injustiças e preconceitos existentes há séculos.

Foto do ensaio ‘Mulheres Negras Vivendo em um Mundo Paralelo’, da jornalista dominicana Katherine Reyes Paredes, cedido especialmente à Eco Nordeste

Por Adriana Pimentel
Colaboradora

Muitos de nós ainda não percebemos que diversos termos e expressões racistas estão entranhados em nossa língua. Você ainda chama aquela mesinha-de-cabeceira ou mesinha lateral da cama de criado-mudo? Sabe que o termo remete ao trabalho escravo de negros, os criados, que passavam toda a noite calados e segurando coisas para os senhores brancos? Já se pegou fazendo algum comentário sobre o mercado negro como o comércio ilegal? Parou para pensar que trata-se de uma associação negativa ao negro?

Se a comida está muito boa, diz-se que quem fez tem um pé na cozinha, expressão que se refere ao trabalho das escravas negras que trabalhavam exaustivamente na cozinha da Casa Grande, servindo aos seus donos.

Mas, esses termos também podem trazer uma violência ainda mais direta, como cabelo ruim, cabelo de bombril, quando não está preso está armado, uma imposição de que só os cabelos lisos são aceitáveis e bonitos e, com isso, a ditadura das chapinhas e pranchas que por anos condicionaram a mulher negra a seguir esse padrão.

O discurso social racista segue por outras áreas, como a palavra denegrir. Segundo Maristela dos Reis Sathler Gripp, doutora em Estudos Linguísticos, sempre que alguém utiliza essa palavra é para dizer que está sendo difamado ou injustiçado por outra pessoa. Mas, segundo o dicionário Aurélio, a definição de denegrir é tornar negro, escurecer. Neste caso, a palavra está no dicionário e pode ser usada. Mas, dependendo de como é usada, pode assumir a conotação racista ou não.

Você sabia que o adjetivo mulata(o) é derivado do substantivo mula, animal que nasce do cruzamento do burro com a égua para designar mestiço? Era como as filhas bastardas de homens brancos, geralmente senhores do engenho, com mulheres negras, geralmente escravas, eram chamadas. Este é, sobretudo, um termo racista, destaca Maristela dos Reis.

A expressão fazer nas coxas deriva de os escravos terem que moldar as telhas nas coxas deles e, como cada pessoa tem uma forma de corpo, elas saíam desiguais. E o termo passou a remeter a coisas mal feitas, feitas com desleixo, de forma apressada.

O próprio lápis cor da pele durante muito tempo foi o cor-de-rosa, como se esse fosse o único tom de pele possível. Sobre esse tema, vale a pena conhecer o curta metragem “Dúdú e o Lápis Cor da Pele”.

E como esses, são muitos os termos ainda usados que precisam de um trabalho de conscientização para serem eliminados do vocabulário popular.

Marco Antonio Lima do Bonfim é mestre e doutor em Linguística Aplicada,  professor-pesquisador no Mestrado Interdisciplinar em História e Letras da Universidade Estadual do Ceará (Uece), professor do Seminário Especializado virtual no Instituto de Pesquisa Afro-Latino-Americano da Harvard University (2020-2021) e também militante do Movimento Negro Unificado do Ceará (MNU), que tem 42 anos de resistência, lutando, denunciando e propondo políticas públicas antirracistas.

Para ele, “são termos associados de forma negativa, têm um sentido negativo, e essa associação é com o colonialismo, de se referir ao outro, sendo esse outro um sujeito negro. Aí é que reside o efeito racista, o efeito discriminar alguém pelas palavras. No meu dia a dia, quando eu escuto alguém dizer isso, eu busco problematizar com a pessoa esses significados coloniais ainda presentes”.

E continua: “por outro lado nós, do MNU, temos cada vez mais investido em práticas linguísticas, discursivas, que enegreçam mais os nossos posicionamentos. Ao invés de usarmos termos como esclarecer, está claro e correlatos, pois dá a entender que tudo deve estar claro, que tudo deve estar branco, nós temos usado escurecer, enegrecer, dando a ideia do nosso posicionamento enquanto sujeitos negros, de negar que algo deva ser necessariamente branco. Essas posturas também podem ser praticadas”.

Um preço que em alguns casos é pago com a própria vida, como vemos repetidamente na imprensa, jovens negros assassinados por “erro” com explicações inaceitáveis. Marco Bonfim destaca que “as pessoas que são lidas socialmente como brancas, herdaram colonialmente um lugar, uma vantagem racial, um privilégio. Por exemplo, uma pessoa branca que entra no supermercado, numa loja, não é perseguida por ser um/uma potencial assaltante. Para nós, a situação é diferente, eu sou um homem negro, e nós negros e negras, pagamos essa conta, eu sou professor na universidade e várias vezes fui questionado ao entrar no campus. Os guardas perguntaram quem eu era e não entendiam que eu era um corpo para estar ali também, tanto quanto as/os brancas/os”.

Mas, acredita que são muitos os caminhos para enfrentar o racismo: “entre eles, abrir oportunidades de trabalho a pessoas negras. Assim, o dinheiro gira entre elas também para que possam ter ascensão social, tanto quanto as pessoas brancas. Na escola, problematizar as imagens estereotipadas de pessoas negras que aparecem, por vezes, em livros didáticos, assim como a hipersexualização do corpo negro. Reconhecer os saberes, a ciência negra, por exemplo, os saberes das religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, combatendo aí o que se chama de racismo epistêmico”.

O conhecimento e a consciência de se entender dentro dessas relações sociais é outro caminho de combate ao racismo. Para Marco Bonfim “cada vez mais a branquitude, termo usado para nomear as pessoas brancas, deve reconhecer o seu lugar de vantagem racial e publicamente, em qualquer lugar, com quem estiver, lutar contra esse racismo antinegro. Nós temos que ter cada vez mais letramentos raciais para que as pessoas se racializem, não só pessoas negras, mas pessoas brancas devem entender-se como pessoas racializadas, que tem uma raça, como diz Silvio Almeida”.

‘Em um mundo paralelo’

Com o objetivo de tornar visíveis as diferenças que colocam as mulheres negras em um mundo fora de lugar, cheio de estereótipos e preconceitos, as fotos que ilustram essa matéria fazem parte do Ensaio fotográfico “Mulheres Negras Vivendo em um Mundo Paralelo”, da jornalista dominicana Katherine Reyes Paredes, cedido especialmente à Eco Nordeste.

A exposição em preto e branco é composta de 28 fotografias que reúnem ações racistas normalizadas e legitimadas no cotidiano, naturalizando preconceitos e fortalecendo o olhar racista.

Fruto das vivências das mulheres que são protagonistas desta exposição fotográfica, e das suas vivências como negra, Katherine Reyes capta por meio das lentes quais são essas atitudes plenas de privilégios que ainda persistem na linguagem, nos meios de comunicação e os cânones da beleza.

Graças ao apoio do Coletivo Afrofeminista e das diversas mulheres que emprestaram seus rostos para tornar visível esta realidade, hoje existe esta exposição fotográfica. A sua missão  é conscientizar e desmistificar os estereótipos existentes contra as mulheres não brancas.

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