Elas partem em busca de uma nova vida numa terra distante e desconhecida, mas, às vezes encontram o terror. Esta matéria, da Eco Nordeste, faz parte do Projeto ‘Um vírus e duas guerras, parceria colaborativa entre as mídias independentes Amazônia Real, AzMina, #Colabora, Eco Nordeste, Marco Zero Conteúdo, Portal Catarinas e Ponte Jornalismo.
Por Adriana Pimentel
Colaboradora
Barcelona-ES. Novas paisagens, idiomas, culturas, e, principalmente, hábitos. Um mundo novo para quem se atreve a cruzar a fronteira do país onde nasceu. Visitar ou viver no exterior é uma experiência instigante e desafiadora. Mas, para algumas brasileiras, o que seria um sonho e oportunidades de melhorar a vida, às vezes se transforma em desespero. Essas mulheres se veem presas em situações de violências: física, psicológica, sexual, moral, patrimonial e até mesmo de instituições públicas que deveriam oferecer proteção. Acreditar num amor, que em alguns casos começa de forma virtual, é a porta de embarque para o risco de serem mortas.
Amanda*, por exemplo, vive em Barcelona e só pode se comunicar para pedir ajuda no silêncio da madrugada, quando o companheiro e os filhos dormem. Quase analfabeta, ela não consegue entender as mensagens escritas e só pode receber orientações quando consegue fazer uma chamada telefônica para pedir ajuda. Um verdadeiro labirinto que a prende entre humilhações, gritos, agressões e até ameaças de morte, “o que nos faz ter ainda mais cuidado e atenção ao protocolo de segurança no atendimento”, descreve Maria Badet, jornalista, presidente do Conselho de Cidadania da Jurisdição do Consulado do Brasil em Barcelona e presidente e idealizadora da Associação Casa da Gente Brasil/Catalunya, em Barcelona, Espanha. Amanda é uma das mulheres brasileiras atendidas pela Associação.
A Casa da Gente conta com uma rede de oito advogadas, e mais de 10 psicólogas voluntárias. Um dos pontos fortes é o atendimento em Português porque a identificação com o idioma nativo, para quem tem dificuldade de comunicação no exterior, é um diferencial positivo nesse acolhimento. Todo o trabalho oferecido pela Associação é gratuito e traz na essência o desejo de ser uma base para as(os) brasileiras(os) em situação de vulnerabilidade no exterior. A entidade nasceu direcionada para uma Região, a Catalunya, mas, hoje atende a toda Espanha, graças à parceria/irmandade com a Associação Amigos do Brasil em Baleares (AABB), que fica nas Ilhas Baleares, Mar Mediterrâneo.
Queda nos atendimentos
Durante os meses de março a junho de 2020, período do confinamento na Espanha, as voluntárias da Casa da Gente e da AABB perceberam queda significativa na procura por parte das mulheres. Não que a violência tenha diminuído. Justo o contrário, o controle sofrido por elas de seus agressores estava mais rígido. “A gente atendia de três a cinco mulheres vítimas de violência de gênero por semana. Com a pandemia, esse número a princípio parou, e foi possível identificar que essas mulheres saíram de uma situação de maus tratos para tortura. Na comprovação desse fato, tivemos três casos de cárcere privado muito ‘duros’ e todos eles continuam pendentes porque infelizmente essas mulheres ainda não foram capazes de sair do ciclo da violência”, ressalta Maria Badet.
‘Ninguém é ilegal’
Estar em outro país sem as autorizações de moradia e trabalho é um dos principais motivos que contribuem para a mulher calar todas as violências que sofre num relacionamento abusivo porque normalmente elas estão amparadas pela documentação de seus parceiros e eles usam esse “poder” sobre elas como ameaça.
A documentação que autoriza a permanência da imigrante no país de seus companheiros é uma das ‘armas’ que esses homens usam para exercerem ainda mais opressão sobre elas, com a ameaça de entregá-las às autoridades locais com a acusação de que “são ilegais”. “Primeiro, essas mulheres precisam entender que não são “ilegais”, um termo abolido por uma luta de vários coletivos, inclusive do Sindicato dos Jornalistas.
Glaucenira Maximino da Costa
Advogada brasileira há mais de 30 anos na Espanha
“Ninguém é ilegal. Pelo simples fato de nascer, você já é legal. Apenas está em situação irregular num país. E as pessoas que se encontram nessa situação, têm a seu favor a Lei de Estrangeria no Real Decreto 557/2011”, ressalta Glaucenira Maximino da Costa, advogada brasileira, uma referência na atuação em defesa de brasileiros(as) imigrantes na Espanha há mais de 30 anos.
Membro do Conselho de Cidadania da Jurisdição Consulado do Brasil Barcelona e líder dos comitês Jurídico e de Combate à Violência do Grupo de Mulheres do Brasil Barcelona, destaca: “Essas mulheres precisam saber que, ao denunciar e comprovar a violência que sofrem, têm direito de regularizar a situação no país, mesmo tendo chegado há pouco tempo à Espanha. O processo começa quando essa mulher usa os telefones de atenção a vítimas de maus-tratos pedindo ajuda e vai à Polícia e faz uma denúncia formal, que é o boletim de ocorrência (B.O). Com o relatório da promotoria, ela pode solicitar residência, benefício extensivo aos filhos menores de idade e, dependendo da situação, até mesmo aos filhos maiores. Assim, a mulher tem sua situação regularizada no país, podendo trabalhar e refazer sua vida”.
Faltam dados e políticas específicas
A falta de dados oficiais sobre as violências sofridas por imigrantes reflete a invisibilidade delas perante o sistema público e social. Qualidade e acesso aos dados oficiais, assim como no Brasil, são problemas também na Europa. Maria Badet diz que a situação piorou. Antes, eram disponibilizados os dados do serviço do 016, um disque-denúncia de atenção a vítimas de violência de gênero do governo da Espanha e, quando existia esse registro de atendimento, as mulheres brasileiras eram o segundo coletivo imigrante que mais ligava em busca do serviço. Mas isso foi há cinco anos. Hoje, por mais que ela procure respostas sobre a paralização desse levantamento, as autoridades competentes não informam. Essa carência prejudica a luta por mais políticas de proteção à mulher imigrante.
Para Gabriela Brochner, doutora em Ciências Políticas, professora da Universidade Europeia de Madrid e especialista em gênero, “diferentemente do Brasil, aqui não existem delegacias específicas para esse tipo de denúncia. Ficamos sabendo dos casos das mulheres brasileiras que sofrem ou sofreram violência quando pedem ajuda nas redes de apoio. Também não há políticas específicas para mulheres imigrantes, que muitas vezes se encontram em situações diferentes das mulheres com a cidadania espanhola”.
E continua: “O racismo é muito forte aqui e o tratamento homogêneo das mulheres faz com que a desigualdade que as mulheres imigrantes sofrem seja mais aguda, especialmente se vemos que a maioria das mulheres imigrantes têm trabalho precário e, muitas vezes, dentro de uma economia submergida na qual elas estão à margem do sistema”, afirma Gabriela.
Da apatia à agressividade
“Nossa! Como essa pessoa conseguiu fazer isso comigo?” Foi uma das principais perguntas que Tereza* se fez quando saiu da situação de violência psicológica que vivia. Um processo que chegou à prisão dela, por uma denúncia de ameaça à vida, feita pelo agressor. Daí, ela voltou a sofrer violência. Dessa vez na esfera institucional. Brasileira, administradora, negra, poliglota e independente, Tereza mora em Barcelona e já tinha superado todas as dificuldades de uma imigrante sem documentação regularizada no país, quando conheceu o ex-companheiro. Ele, 23 anos mais velho que ela, nascido no Leste Europeu. A comunicação entre eles era em Inglês, um dos primeiros obstáculos no relacionamento, que durou um ano e meio.
“Ao longo da relação, eu fui perdendo identidade. Sofria violência indireta, simbólica, as críticas foram ganhando força e destruindo a minha autoestima”, afirma. A saúde foi a primeira a dar o alerta de que as coisas não iam bem. Com alergias, feridas nos braços e na boca, não queria sair da cama nem para comer por depressão. O psicológico afetado atingia o seu comportamento, levando-a de um extremo a outro, da apatia à agressividade. “Eu cheguei a um ponto que já não sabia mais quem eu era”, destaca.
Tereza*
Brasileira, administradora, negra, poliglota e independente
A situação foi se agravando. Os dois se agrediam fisicamente e por palavras. Em uma dessas situações, ele chegou a deslocar o ombro dela. Mas, o ponto de ruptura se deu na última briga, em maio, no confinamento pela Covid-19, quando, no meio de uma situação de muito estresse, gritos e agressões mútuas, Tereza pegou uma faca e o ameaçou. “Ele chamou a Polícia e, quando chegaram, só ouviram o depoimento dele, afinal era um homem branco europeu contra uma mulher negra latina”, questiona.
Com voz trêmula e lágrimas, nos conta que seus direitos foram violados várias vezes seguidas. “Foi presa na viatura, sem ser ouvida, sem ser informada para onde estava sendo levada, sem poder fazer uma ligação para avisar a ninguém. “Me levaram para a prisão do jeito que eu estava, de pijama”, revela.
“Lugar horrível, desumano, um subsolo, água do vaso sanitário no chão, pessoas batendo nas grades e gritando. Foram dois dias sem comunicação e muito desespero. Até que me deixaram ligar para uma amiga, no meio da noite. Só assim foi possível mobilizar outros amigos e os serviços da Casa da Gente, que acionou também o Consulado do Brasil”, relata.
“Todo esse processo, por mais traumático que tenha sido, teve seu lado positivo. Romper com o círculo vicioso dessas violências e receber todo o suporte jurídico e psicológico de instituições como a Casa da Gente e a Revibra me ajudaram e ainda me ajudam nesse processo”, conta Tereza emocionada.
Defesa no Direito Internacional
A comunidade brasileira também encontra assistência jurídica e psicológica oferecidas por profissionais voluntárias e em serviços gratuitos na Bélgica, Alemanha e Portugal, onde estão as coordenadorias da Rede Europeia de Apoio às Vítimas Brasileiras de Violência Doméstica (Revibra), uma organização com oito anos de atuação.
A essência da Revibra é a segurança jurídica às pessoas no âmbito do Direito Internacional. Hoje é uma especialista, dentro do contexto União Europeia – Brasil, da Convenção de Haia relacionada ao sequestro internacional de crianças e adolescentes. Inclusive lançou, neste ano, uma campanha de sensibilização sobre violência doméstica no contexto da guarda internacional, chamada “Mães brasileiras e Haia 28”, que pode ser encontrada em suas redes sociais. É um guia para a mulher migrante perante a justiça fora do Brasil.
Entender os seus direitos dentro dos sistemas judiciais, jurídicos no exterior e no contexto da migração, agravada pela questão de gênero e ainda mais no papel de mãe e vítima de violência doméstica, é realmente um cenário que enfraquece a mulher que luta para comprovar os danos que sofre.
“Elas se encontram desamparadas, quase órfãs. Um reflexo dessa situação, o mais preocupante, é que nós temos mulheres verbalizando pensamentos ou mesmo tentativas de suicídio. A Revibra tem esse intuito de dar proteção e suporte a essas vítimas”, ressalta Juliana Santos Wahlgren, cofundadora da Revibra, chefe do Departamento de Advocacia Política e de Litígio Estratégico da Enar, organização europeia de luta às diferentes formas de discriminação na Bélgica.
A Revibra trabalha muito em redes, como em Barcelona, com a Casa da Gente; e em toda a Europa. “Dentro da proteção imediata, o suporte local é o mais importante para reinventar a vida dessa mulher pelos instrumentos e ferramentas de ruptura com esses ciclos de violência”, explica Juliana.
Casos invisibilizados
Segundo a Coordenadoria de Pesquisa da Revibra, na Alemanha, o trabalho é direcionado ao mapeamento do perfil dessa mulher brasileira vítima de violência dentro do seu contexto social no país, incluindo saber que tipo de agressão ela sofre. Mas, as leis locais dificultam as análises. Por exemplo, o Centro de Dados do Judiciário Alemão e o Sistema de Polícia informaram que 125 mulheres já foram assassinadas no País até agosto deste ano. Mas, na Alemanha, como em Portugal, não existe a criminalização do feminicídio, ou seja, juridicamente não se reconhece o feminicídio. Existem dois tipos de homicídio na Alemanha e a maioria das denúncias envolvendo a morte de mulheres é punida com a forma mais branda.
E ainda, contrariando o dado oficial do governo de 125 mortes de mulheres, as ativistas na defesa dos direitos das vítimas de violência de gênero afirmam que, na verdade, são pelo menos 138 mulheres assassinadas. “O que explica esses 13 casos a mais para as ativistas? A resposta é o que significa na prática: a questão da violência institucional. Quando a mulher estrangeira, sem documentos, é encontrada morta e não existe quem vá fazer a denúncia de que ela foi assassinada por um parceiro ou mesmo ex-companheiro, isso não é documentado como um possível caso de feminicídio e esses casos se tornam invisíveis. É o horror em cima do horror. Esses casos simplesmente desaparecem para o sistema de notificações”, revela Márcia Baratto, coordenadora da Revibra Alemanha.
Revibra Portugal reforça conscientização
Apostar nas campanhas de conscientização é uma ferramenta de prevenção à violência contra a mulher. Esses informativos apresentam os riscos que a mulher corre ao se aventurar a viver uma relação afetiva no exterior, principalmente nos casos em que esse “romance” tem como base a internet, com poucas informações sobre o parceiro e as condições de vida no país dele. “Isso envolve, também, a questão subjetiva, da mulher que idealiza e romantiza a Europa. É uma situação extremamente prejudicial porque o fator gênero é determinante para a ocorrência da violência, tanto que é um fenômeno cultural, social, histórico. A gente tenta desconstruir essa romantização”, afirma Talitha Vaz, técnica de apoio à vítima e coordenadora da Revibra Portugal.
Mesmo diante de todos obstáculos apresentados até aqui, e que dizem respeito à luta em defesa da garantia dos direitos da mulher vítima de violências, principalmente as que estão em outros países, todas as ativistas e representantes das organizações da sociedade civil que oferecem serviços de apoio, suporte e segurança às mulheres identificam como o maior desafio o primeiro passo, o momento de essa mulher tomar consciência e identificar que está vivendo uma situação de violência doméstica e decidir acabar com esse sofrimento. Só a partir daí é possível começar o trabalho de resgate dos direitos dela que são violados durante o tempo que sofre as violências.
Maria Badet
jornalista, presidente do Conselho de Cidadania da Jurisdição do Consulado do Brasil em Barcelona e presidente e idealizadora da Associação Casa da Gente Brasil/Catalunya
Para ajudar a uma mulher em situação de violência doméstica é preciso ter uma escuta ativa atenta. Segundo Maria Badet, a dica principal é, se tiver alguma dúvida mais específica, procurar os canais oficiais no país onde está. “Pela minha experiência de mais de 13 anos abordando mulheres vítimas de violências, a violência física te faz dar o grito, mas, a psicológica te faz achar que você não pode dar o grito. Primeiro é escutar, é entender, é apoiar e ajudar a buscar caminhos. Ao invés de tentar dar uma reposta imediata, o melhor é buscar se informar, para chegar àquela pessoa com a informação mais qualificada. O que faz muitas vítimas não terem a coragem de denunciar é o desconhecimento”, finaliza.
* Nome fictício para preservar a identidade da vítima.
Serviços de proteção e apoio a mulheres brasileiras no exterior
Espanha
Associação Casa da Gente Brasil / Catalunya (Barcelona)
Associação Amigos do Brasil em Baleares (AABB)
Telefones nacionais: 016 ou 900 900 120
Consulado do Brasil (Barcelona)
Bélgica, Alemanha, Holanda, Luxemburgo, Portugal e outros países da União Europeia
Rede Europeia de Apoio às Vítimas Brasileiras de Violência Doméstica (Revibra)
Portugal
Serviço de informação às vítimas de violência doméstica
Número verde (gratuito): 800 202 148
SMS 3060 (gratuito) – “Escreva quando não pode falar”
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Parabéns, jornalista Adriana Pimentel, brasileira nordestina, pelo manejo de sua lente, que forneceu elementos importantíssimos para o texto denunciador. Parabéns a todos que lutam pela valorização da mulher.